O título que revolucionou a história do Milan: 30 anos do Scudetto de 1987/88

Por Emmanuel do Valle e Leandro Stein
O passado glorioso do Milan costuma ser contado através de seus títulos na Champions. A era hegemônica do clube a partir dos anos 1980, entretanto, depende de outra taça, tão importante quanto qualquer Orelhuda. O Scudetto de 1987/88 define rumos fundamentais aos rossoneri, e não apenas porque culmina no bicampeonato europeu logo depois. Aquela foi a primeira conquista sob as ordens de Silvio Berlusconi. A primeira conquista que referendou a revolução tática implementada por Arrigo Sacchi, até então um treinador pouco reconhecido, ainda vivendo seu primeiro ano em Milão. A conquista que interrompe um jejum de nove anos do clube e reafirma a sua reconstrução, após anos difíceis. A conquista que consagra a dupla holandesa formada por Gullit e Van Basten, o capitão Franco Baresi, o fenômeno Paolo Maldini e outros tantos jogadores emblemáticos.
A Serie A de 1987/88 guardou, além do mais, uma disputa acirradíssima. Durante anos abastados de craques, existiam vários times fortes. E em uma corrida que se arrastou até as últimas rodadas, o Milan precisou buscar a taça no San Paolo, encarando o Napoli, que havia se mantido na liderança ao longo de toda a campanha. A três jogos do fim, os rossoneri desbancaram o time de Maradona e Careca. Então, em 15 de maio de 1988, um simples empate na visita ao Como coroou a trajetória praticamente irretocável dos milanistas. Detalhes que tornam a história mais notável, e que recontamos abaixo.
Prólogo: entre um Scudetto e outro
Na tarde de 6 de maio de 1979, os milanistas comemoraram seu décimo scudetto (que os deu direito a usar a famosa estrelinha na camisa) ao empatarem sem gols com o Bologna no San Siro, confirmando o título matematicamente com uma rodada de antecedência. Foi também após aquele torneio que o ídolo Gianni Rivera decidiu pendurar as chuteiras. Aquela temporada também marcou a primeira conquista de um jovem defensor que passaria dentro de não muito tempo a ocupar o posto de bandeira do clube, tal qual o “Bambino D’Oro”. Seu nome era Franco Baresi.
Naquela tarde de festa, os tifosi mal poderiam imaginar as inúmeras turbulências as quais o clube rossonero atravessaria na primeira metade da década seguinte. O anticlímax viria já no ano seguinte: após terminar a Serie A na quarta colocação, o clube teve seu rebaixamento decretado por seu envolvimento no escândalo do Totonero, que maculou a história de diversos clubes e jogadores no Calcio. A equipe conseguiu subir, mas se arrastou melancolicamente na elite ao longo da temporada 1981/82, afundado na zona de degola durante quase toda a competição. Cair em campo era uma nova humilhação.
O segundo retorno à Serie A em 1983, selado com uma campanha bem mais consistente na divisão de acesso, indicava a possibilidade de um respiro maior na máxima categoria. E o time terminou bem no meio da tabela, na oitava posição, em 1983/84. Para a temporada seguinte, o clube decidiu trocar sua dupla de estrangeiros, apostando nos ingleses Ray Wilkins (ex-Manchester United) e Mark Hateley (ex-Portsmouth), e chamar de volta o técnico sueco Nils Liedholm, antigo ídolo do clube como jogador e que havia conduzido os rossoneri ao último scudetto (e, posteriormente, também se sagrara campeão com a Roma).
De início, o Milan obteve um bom quinto lugar, que valeu a volta aos torneios continentais após cinco anos. Ainda naquela campanha, o clube voltou à final da Copa da Itália, mas perdeu a taça para a Sampdoria. Na temporada seguinte, porém, pouco depois de uma desastrosa eliminação em casa para os belgas do Waregem na Copa da Uefa, os graves problemas financeiros levaram à saída do presidente Giuseppe Farina em janeiro de 1986, sendo substituído temporariamente por Rosario Lo Verde.
O clube seria resgatado da falência em 20 de fevereiro, data da aquisição do clube por seu novo dono, o magnata das comunicações Silvio Berlusconi, que assumiu a presidência em caráter oficial pouco mais de um mês depois. O novo mandatário recebeu o time na terceira posição da liga, mas distante oito pontos da líder Juventus. E o desfecho foi ainda pior: com apenas duas vitórias nas últimas nove partidas, a equipe despencou para o sétimo lugar, ficando de fora das competições europeias.
Para a primeira temporada completa de Berlusconi na presidência, a de 1986/87, o elenco passou por uma reformulação, com a chegada de nomes como o goleiro Giovanni Galli (ex-Fiorentina), o lateral Dario Bonetti (ex-Roma), o meia Roberto Donadoni (ex-Atalanta) e os atacantes Daniele Massaro (ex-Fiorentina) e Giuseppe Galderisi (ex-Verona, trocado por um já decadente Paolo Rossi). Após voltarem em baixa da Copa do Mundo do México, Wilkins e Hateley também ganharam mais uma oportunidade de emplacar.
Só que o time mais uma vez cumpriu campanha muito irregular e passou longe do scudetto, terminando em quinto, sete pontos atrás do campeão Napoli e tendo de jogar um playoff com a Sampdoria pela última vaga na Copa da Uefa (o qual venceu com gol de Massaro na prorrogação). Para completar, o time foi eliminado da Copa da Itália ainda nas oitavas de final pelo pequeno Parma, da Serie B. O time da Emilia-Romanha havia conseguido um feito: passou três jogos completos sem sofrer gol dos milanistas, e ainda venceu duas vezes no San Siro pelo placar mínimo, na fase de grupos e no mata-mata.
Na nova faxina, nem mesmo o técnico Nils Liedholm escapou, demitido a cinco rodadas do fim da Serie A e substituído interinamente por Fabio Capello, ex-meia do clube. A dupla inglesa Wilkins e Hateley seguiu para o futebol francês. O meia Agostino Di Bartolomei foi para o Cesena. Até mesmo os recém-chegados Bonetti e Galderisi deixaram o clube, seguindo para Verona (por empréstimo) e Lazio, respectivamente.
A temporada da revolução
Para 1987/88, as novidades são inúmeras, a começar pelo patrocinador, com a marca do grupo financeiro Mediolanum passando a estampar uma camisa que se tornará clássica. Mas as maiores acontecem no comando do time e nas vagas destinadas aos estrangeiros. Lembram-se do Parma, que dera um nó tático nos rossoneri nas três partidas pela Copa da Itália do ano anterior? Pois seu treinador, que impressionara enormemente Berlusconi, é o escolhido de modo imediato e surpreendente para conduzir a equipe que tenta recuperar o scudetto. Seu nome é Arrigo Sacchi.
Já quanto aos craques importados, com a reabertura dos portos italianos (que andaram congelados por algumas temporadas) o clube decide arriscar e aposta numa dupla holandesa – vale lembrar que a Laranja Mecânica está então há sete anos sem conseguir se classificar para os principais torneios internacionais de seleções. Quebra o recorde mundial de transferências para tirar o meia Ruud Gullit do PSV. E, por uma oferta de ocasião, fisga o atacante Marco Van Basten, autor do gol do título do Ajax na Recopa de 1987.
O clube traz ainda um terceiro estrangeiro, o atacante argentino Claudio Borghi, do Argentinos Juniors, campeão mundial com a seleção de seu país no México. Mas pela regulamentação da época que permitia apenas dois forasteiros por clube, ele é logo repassado ao Como, por empréstimo. Quanto aos reforços caseiros, o Milan traz dois volantes: Angelo Colombo, da rebaixada Udinese, e o experiente Carlo Ancelotti, por quase uma década um dos motores do meio-campo da Roma. Por fim, do ex-clube de Arrigo Sacchi vêm os defensores Roberto Mussi e Walter Bianchi, além do meia Mario Bortolazzi, que volta de cessão.
Estes jogadores se juntam aos ótimos valores italianos que já se encontravam no clube. Além dos já citados Giovanni Galli, Roberto Donadoni e Daniele Massaro e do capitão Franco Baresi, há ainda a regularidade do lateral-direito Mauro Tassotti, o estilo sóbrio do zagueiro Filippo Galli, a versatilidade do meia Alberigo Evani, o faro de gol do atacante Pietro Paolo Virdis (artilheiro da Serie A na temporada 1986/87, com 17 gols) e ainda a juventude de um lateral-esquerdo que estreara em janeiro de 1985 e se firmara como dono da posição já a partir da temporada seguinte: um garoto de 19 anos chamado Paolo Maldini.
Após algumas experiências nas primeiras rodadas, já é possível perceber um time-base: Giovanni Galli, titular da seleção italiana na última Copa, é o camisa 1. A defesa, postada em linha, contrariando a configuração com a qual o futebol do país se acostumara, tem Tassotti na lateral direita e Maldini na esquerda, com Baresi comandando a linha de impedimento ao lado de Filippo Galli pelo centro. No meio, quase numa outra linha, Colombo é o jogador mais defensivo, com Ancelotti ligeiramente mais à frente, fazendo um misto de volante e armador, tendo Donadoni mais aberto pelo lado direito.
Gullit aparece como um homem de ligação do meio com o ataque. Seu parceiro, de início, é o compatriota Van Basten. No entanto, logo após a quinta rodada, uma cirurgia no tornozelo esquerdo tirará o centroavante de ação por nada menos que seis meses. O rodado Virdis (ex-Cagliari, Juventus e Udinese), que já vinha jogando, passa a ser o único jogador de referência na frente. Quem ganha uma vaga no time é o meia-esquerda Evani, completando hermeticamente a linha de quatro no meio-campo.
A concorrência pesada
Cabe ressaltar que este Milan, se hoje parece um timaço, na época era visto como uma equipe em formação. Não se colocava necessariamente como o maior candidato ao título, em tempos áureos da Serie A, recheada de craques internacionais. Até pela campanha oscilante dos milanistas no ano anterior, a configuração de forças se diferia.
O favorito ao Scudetto, um passo à frente dos outros, era o Napoli, e não apenas porque a equipe havia erguido a taça no ano anterior. Contar com Diego Maradona no auge da carreira, levando os napolitanos às glórias que esperaram por décadas, já seria suficiente para acreditar em outra campanha grandiosa. O time treinado por Ottavio Bianchi, contudo, ganhou ainda mais força. A diretoria veio ao Brasil e comprou Careca, centroavante da Seleção e em ótima fase também no São Paulo. O novo matador se associaria, além de Maradona, também a Bruno Giordani – formando o célebre trio Ma-Gi-Ca. Mais atrás, os celestes mantinham outros nomes importantes daquela era, como Alessandro Renica, Francesco Romano, Andrea Carnevale e Salvatore Bagni, ou os ascendentes Fernando De Napoli e Ciro Ferrara.
Vice-campeã, a Juventus atravessava um momento de transição, que logo se provaria complicado: superar o adeus de Platini. O craque se aposentara no fim da temporada anterior, e o impacto sobre o nível de jogo da Velha Senhora logo se evidenciou. Naquele momento, porém, os bianconeri apostavam suas fichas em Michael Laudrup, já uma realidade aos 23 anos. Trouxeram o insaciável Ian Rush, assegurado ainda no ano anterior, ocupando a segunda vaga a estrangeiros. Também foram comprados o organizador Marino Magrin, adorado na Atalanta, e o defensor Luigi De Agostini, campeão com o Verona. Além do mais, seguiam firmes bastiões do sucesso na primeira metade da década, como Gaetano Scirea, Antonio Cabrini e Stefano Tacconi.
Já a Internazionale, terceira colocada, tentava acertar seu prumo em um período de seca. Giovanni Trapattoni era o técnico desde o ano anterior, trazido justamente para retomar as glórias nerazzurri. À disposição, grandes nomes do calibre de Walter Zenga, Daniel Passarella, Giuseppe Bergomi, Giuseppe Baresi e Alessandro Altobelli. Aldo Serena reforçava o ataque, de volta ao clube após uma breve passagem pela rival Juventus. Já na cota para forasteiros, a saída de Karl-Heinz Rummenigge levou os interistas a buscarem Enzo Scifo, jovem de 21 anos que despontava no Anderlecht e exibia seu talento na seleção belga.
Existiam ainda outros times a se observar. Campeão dois anos antes, o Verona havia sido o quarto colocado em 1986/87 e, treinado por Osvaldo Bagnoli, tentava se renovar com uma série de contratações. Na frente, de qualquer maneira, a confiança permanecia em Preben Elkjaer Larsen. Campeã da Copa da Itália, a Sampdoria exibia um projeto ambicioso, sob as ordens do rodado Vujadin Boskov. Toninho Cerezo e Hans-Peter Briegel eram os estrangeiros. E entre os italianos, enquanto o ótimo Pietro Vierchowod comandava a defesa, eclodia a célebre dupla formada por Roberto Mancini e Gianluca Vialli.
A Roma vinha de uma campanha de meio de tabela, e por isso investiu em reforços, entre eles Fulvio Collovati e Rudi Völler. Zbigniew Boniek continuava como cérebro no meio e o garoto Giuseppe Giannini vivia sua afirmação. O Torino, que igualmente decepcionara, trouxe o dinamarquês Klaus Berggreen e o austríaco Toni Polster como seus novos astros internacionais. E a Fiorentina, entre outras novidades, buscou Sven Göran Eriksson para o comando. O treinador pediu a compra de Glenn Hysén, preenchendo a cota ao lado de Ramón Díaz, embora a sensação fosse mesmo o prodigioso Roberto Baggio, de 20 anos. Um novo ídolo para ocupar o coração dos violetas, considerando que o amado Giancarlo Antonioni acabara de deixar o Artemio Franchi.
No mais, menção honrosa aos brasileiros que se espalhavam pelos azarões. Junior se mudou ao recém-promovido Pescara, que comprou também o iugoslavo Blaz Sliskovic. Dunga chegou, aos 23 anos, para reforçar o Pisa. Já Casagrande trocou o Porto campeão europeu pelo Ascoli.
Os deslizes e a Bola de Ouro
A quem desconfiava do Milan ou de seu treinador pouco referendado, o início da campanha até parecia dar razão às reticências. O time não começou tão bem assim. Nas cinco primeiras rodadas, os rossoneri conquistaram apenas duas vitórias. A estreia deu sinais positivos, com os 3 a 1 sobre o Pisa fora de casa, comandados por Gullit e Van Basten. Porém, logo na sequência, o time de Arrigo Sacchi perderia em casa para a Fiorentina e não sairia do 0 a 0 na visita ao Cesena. Depois de uma vitória revigorante sobre o Ascoli e de um bem-vindo empate fora com a Sampdoria, o Diavolo ocupava a quinta colocação. Estava embolado com Juventus, Inter, Fiorentina, Pescara, Roma, Sampdoria e Verona. Quem nadava de braçada mesmo era o Napoli, com 100% de aproveitamento.
O Milan conquistou uma das principais vitórias da campanha, coincidentemente, justo após perder Van Basten. O momento era de pressão e os jornais criticavam o trabalho de Arrigo Sacchi. Então, na visita ao Verona dentro do Marcantonio Bentegodi abarrotado, pela sexta rodada, Silvio Berlusconi deu seu respaldo ao técnico. Entrou nos vestiários e avisou aos jogadores: “Ele vai ficar, vocês eu não sei”. Algo correspondido dentro de campo, com uma atuação consistente e a vitória por 1 a 0, definida por Virdis – novamente dono absoluto do ataque. E se o início de novembro trouxe um golpe duro, com a eliminação na Copa da Uefa diante do Espanyol, futuro vice-campeão do torneio, os milanistas ao menos poderiam concentrar suas forças na Serie A.
Em meio às oscilações, ganharam de Pescara e Avellino, além de empatarem com o Empoli. Já no confronto direto contra a Roma, o descontrole da torcida dentro do San Siro prejudicou bastante. O placar permanecia zerado quando, no início do segundo tempo, dois rojões foram atirados na direção de Franco Tancredi. A primeira explosão aconteceu próxima das pernas do goleiro romanista, enquanto a segunda foi na altura do rosto. Inconsciente, o camisa 1 foi levado diretamente ao hospital, onde passou dois dias internado, sem sofrer danos sérios. Por incrível que pareça, o jogo continuou, com o estreante Angelo Peruzzi assumindo a meta giallorossa. Virdis deu a vitória por 1 a 0 ao Milan, mas, dias depois, a justiça desportiva puniu os anfitriões e concedeu o triunfo por 2 a 0 aos visitantes.
Não havia tempo para lamentar. Até porque a sequência do Milan na virada do ano era duríssima, em três rodadas capitais. A começar pelo clássico contra a Internazionale, em 20 de dezembro. E os rossoneri não podem reclamar da sorte na vitória por 1 a 0, em que o gol saiu logo aos quatro minutos, graças a uma lambança dos rivais. Ricardo Ferri foi recuar uma bola de cabeça e encobriu Walter Zenga, que não se recuperou a tempo.
Após o dérbi, aconteceu a pausa para as festas de fim de ano. Também, um momento especialmente feliz a Gullit. O holandês fazia um excelente primeiro turno, comandando o Milan na campanha que o deixava na zona de classificação à Copa da Uefa. E o bom início no novo clube, somado ao sucesso anterior no PSV, levaram o craque a conquistar a Bola de Ouro. A France Football anunciou sua vitória em 29 de dezembro de 1987. Com 106 pontos, superou o português Paulo Futre e o espanhol Emilio Butragueño no Top 3 – em uma época que, vale lembrar, a honraria era restrita a europeus, o que tirava da disputa candidatos como Maradona e Rabah Madjer.
A afirmação com goleada
O rótulo a Gullit logo seria posto à prova. Em 3 de janeiro, o Milan voltava a campo pela Serie A. E as cobranças sobre o talento de 25 anos seriam grandes: sua equipe recebia o líder Napoli no San Siro. Contra os líderes do campeonato, que ainda estavam invictos, o time de Arrigo Sacchi acabou fazendo uma de suas melhores partidas.
O pesadelo do Milan começou cedo. Aos dez minutos, um lançamento de Maradona quebrou a linha de impedimento dos anfitriões. Careca matou no peito e finalizou por cima de Giovanni Galli, num golaço. Só que os milanistas não sentiram o baque. Pelo contrário, comandados pelo próprio Gullit, cresceram na partida. O holandês cruzou para Colombo empatar aos 19 e, depois de duas bolas na trave, Virdis marcaria em um lance de insistência, virando aos 24. Em meio à pressão, os napolitanos se deram por satisfeitos com a diferença mínima rumo ao intervalo. Já no segundo tempo, Gullit driblou o goleiro para deixar o seu e um chute venenoso de Donadoni fechou a contagem em 4 a 1. O esquadrão mostrava o melhor de sua ofensividade.
O resultado botou o Milan na segunda colocação, a três pontos do Napoli. Ainda assim, Roma e Sampdoria também se juntavam à perseguição dos líderes. Para consolidar a posição, outro jogo duro aos rossoneri, visitando a Juventus em Turim. Giovanni Galli fez grandes defesas no primeiro tempo, mantendo o placar zerado. Já na segunda etapa, brilhou o Bola de Ouro. Após escanteio cobrado por Donadoni, Gullit subiu livre e emendou de cabeça, garantindo a vitória por 1 a 0 – que acabou bravamente segurada por seus companheiros atrás. Os milanistas seguiriam de vento em popa.
Na virada dos turnos, o Milan demoliu seus adversários. Goleou o Como por 5 a 0 (com mais dois de Gullit), bateu o Pisa e, depois do empate com a Fiorentina, superou o Cesena. O desempenho no San Siro, sobretudo, era excelente. E, apesar do empate fora com o Ascoli, carrasco pouco antes nas oitavas de final da Copa da Itália, o time de Arrigo Sacchi voltou a se reafirmar com o triunfo por 2 a 1 sobre a Sampdoria em Milão. Maldini anotou o gol da vitória na etapa final. Com o resultado, os genoveses, que esperavam se aproximar, acabaram ficando pelo caminho.
O problema do Milan era mesmo acompanhar o Napoli. Depois do revés no San Siro, os napolitanos acumularam sete vitórias consecutivas, em noites fenomenais de Maradona. Ao final daquela 20ª rodada, a 10 jornadas do término do campeonato, os celestes sustentavam uma vantagem de cinco pontos sobre o Milan, ainda na segunda colocação. E quando os sulistas derraparam, perdendo para a Roma e empatando com o Empoli, os milaneses não conseguiram se aproximar tanto assim, com igualdades ante Verona e Torino.
Na sequência, o Napoli conquistou cinco pontos em seis possíveis até a 25ª rodada, mesma marca do Milan ao bater Pescara e Empoli, além de empatar com o Avellino. O resultado contra o Empoli, aliás, tinha sua importância. Van Basten acabara de retornar de lesão e entrou em campo no segundo tempo. Quinze minutos depois, deu uma belíssima finta de corpo no marcador e acertou um chutaço de fora da área, garantindo o 1 a 0 no placar. Diante da boa forma de Virdis, ainda assim, o holandês não seria imediatamente integrado aos titulares.
Sprint final e a tarde histórica em Nápoles
Nos cinco compromissos finais, o Milan voltaria à sua série de jogos mais dura. Visitaria a Roma, encararia a Internazionale no dérbi, faria o jogo primordial contra o Napoli dentro do San Paolo e finalizaria a maratona contra a Juventus no San Siro, antes de um pouco mais de tranquilidade, encerrando a campanha diante do Como. Os quatro pontos de desvantagem em relação aos napolitanos, em tempos nos quais os triunfos valiam apenas dois, exigiam uma reviravolta. Só que os celestes, é bom dizer, também não teriam moleza. No mesmo período, duelariam com Juventus, Verona, Fiorentina e Sampdoria, além do próprio Milan.
Num jogo intenso no Estádio Olímpico, o Milan cumpriu a primeira parte de sua tarefa. Derrotou a Roma por 2 a 0, com Virdis abrindo o placar no primeiro tempo e Massaro definindo nos minutos finais. Ao mesmo tempo, a Juventus ajudava, derrotando o Napoli por 3 a 1. Na semana seguinte, o clássico contra a Inter. Mais uma vitória por 2 a 0, com domínio total do Diavolo. Desta vez quem abriu o placar foi Gullit, em chute violento que quase afundou Zenga para dentro do gol. E após o intervalo, Virdis roubou a bola próxima da área para driblar o arqueiro interista e fechar a conta. Os nerazzurri mal passaram do meio-campo. A felicidade dos milanistas era complementada pela boa notícia que vinha do Marcantonio Bentegodi: após o empate com o Verona, o Napoli ficava apenas um ponto à frente. Então, viria o “jogo do título” no San Paolo.
A atmosfera em Nápoles, como era de se esperar, estava cercada de tensão. Um dia antes, Maradona afirmou que não gostaria de ver bandeiras rossoneri nas arquibancadas. E o técnico Ottavio Bianchi não escondeu seu objetivo de segurar o empate, diante da ótima forma de seus oponentes. Arrigo Sacchi, por outro lado, mantinha a confiança. Anunciou a escalação titular logo na véspera e afirmou: “Se eu quisesse, poderia permanecer em casa, porque meu time está muito bem treinado, sabe o que precisa fazer de cor”.
Em uma tarde quente e seca, Nápoles até parecia deserta. Afinal, a população inteira se concentrava – se não em corpo, ao menos em espírito – dentro do San Paolo. Quase 83 mil lotaram as arquibancadas em pura ebulição, no meio de papéis picados, serpentinas e fogos de artifício. E o jogo estava nas mãos do Napoli, que prevalecia em sua retranca, após meia hora de pouco futebol. No entanto, em um lance fortuito, o Milan abriu o placar aos 36. Após cobrança de falta, o chute de Evani espirrou na barreira, mas Virdis foi oportunista o suficiente para aproveitar dentro da área.
Do outro lado, todavia, existia um tal de Diego Armando Maradona. E nos acréscimos do primeiro tempo, os milanistas cometeram o erro de conceder uma falta na entrada da área, bem de onde o camisa 10 não perdoava. Cobrança perfeita, na gaveta de Giovanni Galli, que retomava o empate rumo ao intervalo. Para o segundo tempo, Arrigo Sacchi ousou. Tirou Donadoni e colocou Van Basten.
Com o passar dos minutos, Ottavio Bianchi também resolveu buscar a vitória, colocando Bruno Giordano no lugar de Salvatore Bagni. Pois a Ma-Gi-Ca do Napoli viraria pó, com o time aberto à fúria do Milan. O segundo gol saiu aos 23 minutos, em jogadaça de Gullit pela direita, mandando a bola na cabeça de Virdis, que não perdoou. E oito minutos depois aconteceria o terceiro. Mais um lance de Gullit, que serviu Van Basten, livre para definir. Um descuido da defesa rossonera permitiu que Careca descontasse logo na sequência, mas os napolitanos não teriam energias para ir além dos 3 a 2. Em reconhecimento à superioridade dos adversários, agora líderes, a torcida celeste aplaudiu os vencedores.
Restavam mais duas rodadas, o que mantinha o campeonato aberto. Mas, a esta altura, o abatimento atrapalhou o Napoli. Sem Maradona, o time perdeu na visita à Fiorentina por 3 a 2. Permitiu que o Milan abrisse dois pontos de vantagem, ao empatar sem gols com a Juventus no San Siro, em tarde na qual Tacconi evitou a festa antecipada dos anfitriões. Os compromissos finais aconteceriam em 15 de maio. Os napolitanos pegariam a embalada Sampdoria. Os milanistas visitariam o Como, com chances de ser rebaixado. Um empate bastava aos líderes.
O Napoli sequer criou esperanças. Aos dois minutos, Virdis abriu o placar ao Milan com um tiro da entrada da área. Os napolitanos até saíram em vantagem contra a Samp, graças a Andrea Carnevale, mas permitiram que os blucerchiati virassem. Assim, nem mesmo o empate do Como no início do segundo tempo, que determinou o placar em 1 a 1, estragou a festa milanista. Depois de nove anos, o clube reconquistava o Scudetto. Sacchi ganhava moral. Berlusconi iniciava a sua era gloriosa.
O Milan fechou a campanha com 45 pontos, três a mais que o Napoli. Venceu 17 partidas e sofreu apenas duas derrotas, ainda que apenas uma tenha se dado em campo, lá na segunda rodada. O ataque, com 43 gols, ficou bem abaixo dos 55 dos napolitanos, mas a defesa compensou, vazada apenas 14 vezes – média inferior a 0,5 tentos por compromisso. Virdis, a estrela da sorte, balançou as redes 11 vezes e foi o goleador da equipe – com quatro gols a menos que Maradona, o artilheiro do campeonato. Mas vale ressaltar também a importância de Gullit. Além de assinalar nove tentos, somou dez assistências. O craque da temporada, apesar da importância de outros jogadores, como Colombo, Baresi e Giovanni Galli.
O início de uma história maior
Pouco mais de um mês depois da conquista do Scudetto, os dois principais talentos ofensivos do Milan voltaram a celebrar. Van Basten e Gullit foram instrumentais na conquista da Euro 1988 pela Holanda, enfim uma taça que reconhecesse a qualidade da Oranje. Quando voltaram a Milão na temporada seguinte, diante da permissão aos clubes para contratarem um terceiro atleta estrangeiro, ganharam a companhia de mais um compatriota: Frank Rijkaard. A dupla holandesa virava o célebre trio, em time que ainda viu a afirmação de Alessandro Costacurta (presente em 11 partidas na campanha do Scudetto) e deu as primeiras chances a Demetrio Albertini.
O Milan não conquistou o Campeonato Italiano em 1988/89. Em compensação, a sua revolução se enraizou, entre a inteligência da defesa e o talento do ataque. Acabaram buscando algo maior, faturando a Copa dos Campeões em 1989. Em uma trajetória marcante, quase interrompida pelo Estrela Vermelha, o ápice veio com os 6 a 1 sobre o Real Madrid pentacampeão espanhol nas semifinais. Já na decisão, inapeláveis 4 a 0 sobre o Steaua Bucareste. E no ano seguinte, os milanistas repetiriam a dose. Deixaram Real Madrid, Mechelen e Bayern de Munique pelo caminho, antes de ganharem do Benfica na final em Viena.
Olhando hoje, talvez o peso do Scudetto de 1988 se perca em meio às façanhas europeias consequentes. Mas este é um título que não pode ser menosprezado na história do Milan. Foi ele que referendou o trabalho de Arrigo Sacchi, impulsionou os investimentos de Berlusconi, consagrou boa parte dos craques que ansiavam por um título de expressão. E tudo isso em uma disputa tão apertada contra o Napoli. O caráter do timaço dos rossoneri se forjou dentro daquela tarde efervescente no San Paolo.