Diáspora e identidade cultural: as raízes africanas por trás da nova camisa do Arsenal
Gunners lançaram camisa em homenagem à comunidade africana em Londres e ostentam longa trajetória com o Continente Mãe

O Arsenal prestou uma bonita homenagem a diáspora africana em Londres com o lançamento da segunda camisa para a temporada 2023/24.
Todo preto, o uniforme conta com detalhes em vermelho e verde, trio de cores que representa o movimento pan-africano.
Também há uma arte em zigue-zague feita por Foday Dumbuya, fundador da Labrum London, marca de roupas com foco na cultura britânica africana.
— Como um imigrante de segunda geração crescendo em Londres, assisti a alguns jogadores incríveis do Arsenal com herança africana. Esses jogadores foram modelos incríveis para mim, jogando o jogo de uma forma bonita, mas também representando a comunidade mais ampla com a qual me conecto. O Arsenal, como clube, tem uma conexão muito forte com esta comunidade, então é um momento de muito orgulho ter colaborado neste design com eles. — disse Dumbuya, nascido em Serra Leoa, ao site dos Gunners.
A linha também conta com camisas casual e pré-jogo, além de duas linhas com agasalhos ostentando designs de tradições do continente africano.
Para entender parte dessa ligação entre Arsenal e a África, a Trivela ouviu especialistas e buscou a raiz dessa história que iniciou há quase 70 anos, mas ganhou força a partir dos anos 90.
A diáspora africana na Inglaterra
O termo diáspora diz respeito a imigração forçada ou incentivada de um povo, seja por questões de preconceito, política, religião, etc.
Na realidade africana no Reino Unido, a diáspora aconteceu em diferentes períodos da história e permanece até hoje.
Primeiro, ainda no século 16, quando a Inglaterra, já como uma potência econômica, recebia diferentes povos pelos portos. Depois, com a colonização e a escravidão de nações como Egito, Nigéria e muitas outras, alguns conseguiam a libertação e se instalaram em cidades portuárias (Londres, Liverpool, South Shields).
No século passado, o Reino Unido também fez acordos com ex-colônias para a imigração de mão de obra após a Segunda Guerra Mundial, não apenas com países africanos, também com forte presença de caribenhos.
— Essa comunidade africana vai crescendo em termos de influência e de importância também, tanto que, por volta das décadas de 80 e 90, começam a ser eleitos os primeiros parlamentares negros da história do Reino Unido e grande parte deles vem de Londres — apontou a pesquisadora Camila Zambo, integrante do podcast Ponta de Lança, em entrevista à Trivela.

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As comunidades no entorno do Arsenal que inspiram o clube
Seria impossível o Arsenal se manter alheio a essa diversidade na população londrina e, obviamente, captou muitos torcedores das comunidades de imigrantes por seu sucesso nos gramados.
— A área do Arsenal no norte de Londres conta com uma comunidade negra muito importante. E se pegar ali Ellington, Hackney e Camden, são áreas que às vezes contava com um tipo de investimento abaixo ou não tinham [por parte do governo], principalmente se comparado à parte sul mais próximo de Chelsea, que já tinham as pessoas mais endinheiradas e segue até hoje — detalhou a pesquisadora, que também é torcedora dos Gunners.
Antes da camisa africana, a comunidade jamaicana ganhou um uniforme pré-jogo em homenagem ainda em 2022.
Ao mesmo tempo, esses torcedores passaram a assistir o Arsenal e se viam representados naquele equipe histórica dos anos 90 sob comando de Arsène Wenger.
Os jogadores como uma outra forma de representação à comunidade africana
Em um longínquo 1957, o Arsenal contratou o primeiro africano de sua história. Trata-se do sul-africano Daniel Le Roux, que só atuou cinco vezes pelo clube londrino antes de retornar ao país-natal.
Não foi uma passagem de sucesso, longe disso, e não abriu as portas para que mais jogadores do continente atuassem no clube.
Na verdade, essa ligação vem a partir dos anos 90, com o boom da Premier League e a chegada de Wenger, em 1996. Após Le Roux, outros 23 jogadores que nasceram ou representaram seleções africanas jogaram pelos vermelhos londrinos, praticamente todos com Wenger ou após ele.
Em 2002, os Gunners se tornaram o primeiro time inglês na história a escalar nove jogadores negros em um jogo competitivo.
Todo esse histórico rendeu um livro chamado Arsenal Black, publicado pelo pesquisador Clive Chijioke Nwonka com apoio da gestão do time.
Essa obra aborda como o clube se tornou uma “característica importante e pouco examinada da cultura e identidade negra britânica moderna”.
Dos jogadores históricos com influência africana estão o ídolo histórico senegalês Patrick Vieira, com 405 jogos e 10 títulos, o nigeriano Nwankwo Kanu – este, inclusive, aparece no vídeo de anúncio da nova camisa -, Thomas Partey, único africano do elenco atual, vindo de Gana, e muitos outros.
— Vieira ohhh, Vieira ohhh, he comes from Senegal, he plays for Arsenal! — a música cantada pelos torcedores do Arsenal em homenagem ao ídolo senegalês naturalizado francês.
A influência também está em jogadores com ascendência do Continente Mãe, casos de Bukayo Saka, cria da base e a cara do atual Arsenal, filho de nigerianos, e de Willian Saliba, com raízes em Camarões.
Os jogadores africanos que passaram pelo Arsenal desde 1957
- Ismael Bennacer – Argélia
- Laurén – Camarões
- Alexandre Song – Camarões
- Carlin Itonga – República Democrática do Congo
- Mohamed Elneny – Egito
- Pierre-Emerick Aubameyang – Gabão
- Quincy Owusu-Abeyie – Gana
- Emmanuel Frimpong – Gana
- Thomas Partey – Gana
- Kaba Diawara – Guiné
- Kolo Toure – Costa do Marfim
- Emmanuel Eboue – Costa do Marfim
- Gervinho – Costa do Marfim
- Nicolas Pepe – Costa do Marfim
- Christopher Wreh – Libéria
- Jehad Muntasser – Líbia
- Marouane Chamakh – Marrocos
- Nwankwo Kanu – Nigéria
- Alex Iwobi – Nigéria
- Armand Traore – Senegal
- Patrick Vieira – Senegal
- Daniel Le Roux – Africa do Sul
- Emmanuel Adebayor – Togo
- Gilles Sunu – Togo
A comunidade de torcedores do Arsenal na África
Com tantos jogadores históricos africanos, os Gunners não são admirados apenas em Londres. A influência do futebol jogado e dos atletas também chegou no continente africano.
Foi o que contou o correspondente Renato Senise em uma coluna no portal do PL Brasil, quando visitou Adis Abeba, capital da Etiópia, para cobertura da Cúpula da União Africana neste ano.
— O motorista que me levou ao hotel disse que o Arsenal é tão popular na Etiópia, que em dias de jogos importantes, Addis Abeba fica pintada de vermelho. Camisas para todos os lados. Diversos bares mostram a partida. — escreveu Senise.
O jornalista encontrou não uma, mas várias camisas dos vermelhos do norte de Londres no dia que esteve lá.
Ele questionou repórteres de Angola sobre a influência e soube todo o continente é fã do futebol inglês, mais especificamente Arsenal e Manchester United pelo sucesso nos anos 90.
— Segundo eles, isso acontece em todo o continente. Foi no finalzinho dos anos 1990 que as transmissões de jogos europeus começaram a se espalhar pela África. Na época, Arsenal e Manchester United lutavam pelo domínio do futebol inglês. Mas o Arsenal tinha um futebol mais bonito, atraente, o que fez a maioria acabar escolhendo os Gunners para torcer. — apontou, em outra parte da coluna.
Essa visão é reiterada por Camila Zambo. O futebol de toque do clube inglês fez o povo da Etiópia e outros pontos da África se apaixonarem e virarem verdadeiros torcedores também pelo aspecto cultural.
— O Arsenal deixa de jogar um futebol super pragmático para ter um futebol mais envolvente, de troca de passes para construir uma jogada, legado seguido até hoje. Criou identidade do Arsenal e eu imagino que para o futebol africano isso tem muita proximidade, por exemplo, da forma, da cultura. Até com a América do Sul e principalmente com o Brasil também — afirmou a integrante do Ponta de Lança.
A contraditória parceria com Ruanda
No entanto, apesar do Arsenal ser um importante agente social na representatividade da comunidade negra britânica, também ostenta contradição.
O clube é patrocinado pelo governo de Ruanda, tendo na manga da camisa (desde 2021) e em placas de publicidade no Emirates Stadium (2018) a frase “Visit Ruanda“.
O país africano é presidido por Paul Kagame desde 1994, conhecido por ser um torcedor do Arsenal, o que gerou críticas por interesse pessoal, visto que saiu dos cofres de um país pobre os 40 milhões de libras pelo patrocínio.
Segundo Camila Zambo, a presidência de Kagame aposta no investimento no clube inglês como uma forma de limpar sua imagem perante ao mundo, o chamado sportwashing, por conta de corrupção no governo e os casos de xenofobia com os vizinhos da República Democrática do Congo.
— Ruanda faz aí sportwashing danado, tenta esconder corrupção, preconceito étnico e a influência no genocídio e na política do Congo. Acho isso terrível, uma coisa que eu gostaria muito que o Arsenal cortasse, mas infelizmente não vai, porque Ruanda tem uma ascendência até sobre o governo britânico. — concluiu a especialista.
A ascendência citada é um convênio no qual imigrantes africanos considerados “ilegais” na Inglaterra são deportados para Ruanda, o que poderia ser para quem nasce na RD Congo um cenário complexo pelas diferenças étnicas.
A Suprema Corte Britânica chegou a definir que o plano de imigração do governo para Ruanda é “ilegal”, mas os Gunners não cancelaram a parceria.
Vítima de um genocídio sangrento em 1994, responsável por cerca de 800 mil mortes em aproximadamente 100 dias, Ruanda é acusado por organizações de direitos humanos de repressão contra a mídia e oposição política.
A ONG Human Rights Watch alega que a tortura no país africano é comum, assim como a falha na condução das investigações em “mortes suspeitas”. A Anistia Internacional diz que os “desaparecimentos de anos anteriores permanecem sem solução”.
Na última terça-feira (16), a Comissão Eleitoral Nacional (CNE) do país africano informou que Kagame lidera a corrida presidencial com 99,15% dos votos.
Os opositores Frank Habineza e Philippe Mpayimana, somam 0,53% e 0,32%, respectivamente.
Esse é apenas o resultado parcial das eleições. A definição será anunciada em 27 de julho, quando, provavelmente, o torcedor do Arsenal permanecerá por pelo menos mais cinco anos no cargo.