Inglaterra

Drogas no futebol: Relato chocante de ex-Liverpool levanta questão sobre pós-aposentadoria

Danny Murphy contou ter se viciado em cocaína após se aposentar

O ex-jogador Danny Murphy, com passagens por Liverpool e Tottenham, deu um relato chocante ao podcast Ben Heath Podcast. O inglês, hoje comentarista, detalhou como se viciou em cocaína no período pós-aposentadoria, quando o ex-atleta se vê sem a adrenalina do futebol de alto rendimento e sem perspectiva de futuro pela ausência da organização bem definida do dia a dia nos clubes.

– Quando você não tem futebol, os problemas se tornam enormes. Quando você joga futebol, a adrenalina e a dopamina, todas essas coisas mantêm você com visão de futuro e com energia. Tive uma crise de cocaína e de fumar maconha. A bebida, eu poderia viver sem ela. Eu não era alcoólatra. Eu poderia sentar em uma casa com álcool e não beber. Por um tempo eu fiquei [viciado em cocaína]. Cheguei ao ponto em que pensei que não conseguiria fazer as coisas sem isso [a cocaína]. O que era um absurdo, claro que eu poderia.

– Você gerencia isso inicialmente, você pode fazer isso uma vez por semana, duas vezes por semana, dando a si mesmo um terceiro dia extra. Eventualmente, ele [a droga] se acumula e se apodera de você. – completou.

Esse período após a retirada dos gramados costuma ser complexo para os atletas e alguns até definem como “limbo” por não saber o que fazer. Existe a frase “um jogador morre duas vezes, sendo a primeira quando pendura as chuteiras”. A fala de Murphy entra exatamente nisso, sobre essa ausência do esporte de rendimento e, no caso dele, uma lacuna que acabou sendo preenchida pelo vício em cocaína.

Para entender mais do assunto e como os atletas chegam nesse caminho, a Trivela foi atrás de especialistas em saúde mental, que detalharam esse processo difícil do pós-carreira e a quebra nesse ritmo intenso de uma hora para outra.

Como conta o Dr. Alexandre Valverde, psiquiatra e neurodivergente, a atividade física durante o período de atividade nos gramados pode ser um fator “viciante” para esse atleta.

– A própria atividade esportiva acaba sendo essa atividade adictiva, como se a pessoa ficasse de um certo modo ‘viciada no esporte', principalmente se o atleta usar essa atividade como escapatória para os outros problemas da vida.

A interrupção dessa rotina bem estrutura dos clubes e a ausência da perspectiva do próximo jogo pode causar vício em atletas que tem uma tendência genética.

– Cada história tem sua razão, motivação [para resultar em um caso de vício], mas existem três pilares nesses casos: o contexto, a substância e a pessoa. Se o atleta tem uma tendência genética a ser mais impulsivo, a ter comportamento adictivos [de vícios], ele pode depois sair dessa estruturação rigorosa do futebol na aposentadoria e não saber o que fazer com o dia a dia dele – explica Valverde.

À Trivela, João Ricardo Cozac, psicólogo do esporte e presidente da Associação Paulista da Psicologia do Esporte e do Exercício, contextualizou que muitos desses atletas também saem cedo de casa e não vivem momentos importantes da infância e adolescência. Tudo isso resulta em um adulto que não se desenvolveu completamente.

– A profissionalização precoce dos atletas, em geral, exige que eles tenham que abandonar períodos muito importantes do desenvolvimento humano, como a infância, adolescência e entrada na fase adulta. Quando você abandona uma vivência natural dessas etapas, é muito comum que lacunas sejam criadas e que vão envolver dificuldade na criação e na estruturação da identidade, de quem é o indivíduo.

– E aí, quando o jogador para e encerra sua carreira, ele teve o conteúdo suficiente para constituir quem é o indivíduo. Ele desde sempre se entende por atleta. E sabemos que as carreiras se encerram muito precocemente, por volta 32 ou 35, quando se cuida bem fisicamente. – completa Cozac.

Qual a importância dos clubes nesse processo?

Já que normalmente o jogador sai de casa muito cedo em busca do sonho, os clubes, ao menos, deveriam dar esse suporte ao atleta na saúde mental e no autoconhecimento, algo essencial segundo os especialistas ouvidos pela reportagem.

– É muito importante que os clubes possam dar oportunidade para o autoconhecimento desses atletas, para o auxílio na formação das suas identidades pessoais para além das esportivas. […] Os trabalhos de prevenção e promoção de saúde mental são essenciais para diminuir essa possibilidade do uso de drogas de atletas e também fazer um trabalho de prevenção de saúde pensando no que esses jogadores vão fazer quando deixaram os gramados. Esse dia chega e o atleta aí já é um indivíduo, tem a vida toda dele para ser vivida de forma saudável, equilibrada e feliz. – diz o psicólogo do esporte João Ricardo Cozac.

– O jogador precisa ter o cuidado de não se expor esses lugares onde há o consumo de drogas, reconhecer as próprias fragilidades, ter acesso a um acompanhamento em saúde mental, isso é super importante. Esse atleta tem que ser acompanhado, do mesmo jeito que ele tem o fisioterapeuta, o preparador físico e outros profissionais, ele deve ter um psiquiatra ou um psicoterapeuta também para fazer esse acompanhamento mental – reitera o Dr. Alexandre Valverde.

A discussão sobre saúde mental no futebol evoluiu muito nos últimos anos, mas ainda há um longo caminho a se trilhar. As falas do brasileiro Richarlison ajudam muito na quebra desse preconceito que há com os tratamentos da psicologia e da psiquiatria. Vivendo uma fase ruim, o atacante se reencontrou após sessões de terapia que o ajudaram a superar um problema pessoal.

– A gente vê a performance física dos atletas e supõe que só tenha a ver com a preparação do corpo, mas não e todos os atletas comentam isso. Tem muito mais a ver com questão de disciplina, autocontrole e conhecimento da própria mente de como a pessoa funciona. E isso acaba tendo influência sobre o desempenho esportivo do jogador de uma maneira muito mais importante do que só o treinamento puro e simplesmente físico. – finaliza Valverde.

Foto de Carlos Vinicius Amorim

Carlos Vinicius AmorimRedator

Nascido e criado em São Paulo, é jornalista pela Universidade Paulista (UNIP). Já passou por Yahoo!, Premier League Brasil e The Clutch, além de assessorias de imprensa. Escreve sobre futebol nacional e internacional na Trivela desde 2023.
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