Kleiton Lima saiu, mas deixou herança maldita às Sereias da Vila: traumas, abuso psicológico e ‘guerra fria’
Kleiton Lima saiu do Santos, mas deixou herança maldita às Sereias da Vila: traumas psicológicos e 'guerra fria' com diretoria
Dois meses após a saída de Kleiton Lima do comando das Sereias da Vila, as consequências da conturbada passagem do técnico pelo clube ainda são sentidas no vestiário. A Trivela entrevistou jogadoras, ex-funcionários do Santos e teve acesso à gravação de uma reunião entre as atletas e a diretora de futebol feminino, Aline Xavier, que esclarece eventos que deixaram traumas no elenco.
A confirmação das denúncias e os novos relatos foram contados sob a condição de anonimato pelas próprias jogadoras. Por essa razão, os nomes foram omitidos nesta reportagem.
Procurado, o Santos decidiu não se manifestar e disse que o caso segue sendo apurado internamente.
Assédio moral levou jogadora a tentar suicídio; Sereias estão sem atendimento psicológico
Os problemas no elenco santista começaram muito antes das 19 cartas escritas por jogadoras – à mão e de forma anônima – serem publicadas pelo ge no dia 7 de setembro. A psicóloga Luiza Garutti, demitida após os relatos anônimos virem à tona, revelou à Trivela que as reclamações sobre o comportamento de Kleiton e denúncias de assédio moral já eram recorrentes há alguns meses.
Em maio deste ano, a terapeuta convocou uma reunião, com a presença do próprio Kleiton, para destrinchar os pontos que havia ouvido em sessões. A intenção de Luiza era alertar Kleiton de que o tratamento dele para com algumas jogadoras estava se tornando prejudicial para a saúde mental delas e, consequentemente, poderia afetar o desempenho dentro de campo.
– Todo treinador ou treinadora tem total liberdade para chamar uma atleta de canto para conversar. Isso é natural. Desde que o Kleiton entrou na equipe, esse tipo de coisa sempre aconteceu e ninguém queria saber do que estava sendo falado, porque era uma conversa entre treinador e atleta. Só que nessas conversas, propositalmente privadas, ele começou a perder a mão. Passou de orientação, cobrança e explicação para coisas que faziam as atletas se sentirem humilhadas e constrangidas – afirmou Luiza.
O sofrimento das atletas foi um ponto muito presente nos relatórios feitos pela psicóloga, que acompanhava de perto o dia a dia das Sereias. Ela tentou, em algumas oportunidades, informar a diretora de futebol feminino, Aline Xavier, de que havia jogadoras em profunda angústia. Inclusive, a sensação de medo e desamparo é citada em alguns momentos na última reunião entre jogadoras e diretora.
Entre as cartas divulgadas, uma em especial chama a atenção por conter a palavra suicídio. No trecho em questão, a jogadora escreveu: “Também passei a pensar em suicídio e entrei em profunda depressão”. O caso pegou as próprias companheiras de surpresa.
Após ouvir relatos de outras jogadoras, a reportagem chegou à atleta que escreveu a carta em questão. Em depoimento também cedido sob condição de anonimato, ela confirmou que tentou suicídio duas vezes após ter sido “excluída e anulada como pessoa e atleta” pelo treinador.
Além disso, a atleta disse que “forçou muitas conversas com a Xavi”, antes de escrever a carta anônima, para pedir ajuda. No entanto, a diretora “fez de tudo para limpar a imagem de Kleiton”.
O Santos ainda não contratou um profissional para cuidar exclusivamente da saúde mental das Sereias, desde que demitiu Luiza, há mais de dois meses. A psicóloga diz se preocupar muito com a parte emocional das atletas afetadas, que agora lidam com transtornos como ansiedade e depressão.
– De verdade, eu não me preocupo comigo. Nós (funcionários demitidos) sabemos que não tem nada que possa dar errado na vida da gente, mas nos preocupamos muito com elas. Algumas delas ainda estão lidando com os traumas.
Suposto complô contra Kleiton teria motivado demissões em massa
De acordo com os depoimentos, a relação entre Kleiton Lima e Aline Xavier interferiu no julgamento da diretora de futebol feminino em relação às denúncias. Os dois construíram uma amizade durante a primeira passagem do técnico pelo Santos, que comandou a equipe até 2010. A ex-zagueira vestiu a camisa alvinegra de 2006 a 2011, até o clube encerrar as atividades da modalidade.
A mandatária não teria levado as denúncias em consideração por acreditar que se tratava de um complô para derrubar o treinador. As jogadoras entrevistadas julgam que esse teria sido o motivo para a demissão em massa de funcionários, incluindo a psicóloga, que era muito próxima ao elenco.
Ao todo, nove profissionais foram demitidos, incluindo o analista de desempenho, Júlio Resende, também acusado de assédio moral nas cartas. Porém, os demais membros da comissão técnica, que não estavam ligados às denúncias, foram dispensados. Até a produtora de conteúdo para as redes sociais das Sereias foi demitida, sem mais explicações, no dia seguinte ao que o caso veio à tona.
– O treinador da equipe de futebol feminino do Santos FC, Kleiton Lima colocou seu cargo à disposição, o que foi aceito pela diretoria. Também deixam seus cargos a auxiliar técnica, Fabi Guedes, a preparadora física, Vanessa Monte Bello, o analista de desempenho, Júlio Resende, o preparador de goleiras, Gabriel Ribeiro, a psicóloga, Luiza Garutti, o massagista, Tarso Ajifu e os fisioterapeutas, Dhouglas Antonini e Lucas Wasem – notificou o clube.
Por conta do suposto revanchismo de Xavi, o clima entre elenco e diretora é de “guerra fria”. O contato das atletas é cada vez mais distante com a gestora, da mesma forma em que o sentimento de descaso, relatado por elas, só cresce.
Kleiton Lima notificou jogadora por calúnia e difamação
A reportagem teve acesso a uma notificação judicial enviada por Kleiton Lima a uma jogadora do elenco santista por calúnia e difamação. A causa contesta a acusação de assédio sexual e pede mais de R$ 52 mil em danos morais.
– Uma vez na feira eu estava esperando perto de uma barraca de pastel. Lá o treinador chegou e perguntou se eu estava comendo pastel, aí eu respondi “não, estou esperando as meninas”. Então ele deu a volta por mim, olhou para minha bunda e disse: “acho que não”, insinuando que minha bunda parecia grande, então isso significava que eu estava comendo pastel – disse a atleta intimada em sua carta anônima, que é citada no processo.
No documento legal, Kleiton diz que a atleta espalhou sua versão do dia em questão para o elenco das Sereias, em represália ao fato de ter sido sacada do time titular. A defesa do técnico utiliza a mesma perspectiva de um suposto complô contra ele para acusar a jogadora implicada judicialmente de fazer parte de um conchavo.
– Boa parte do grupo passou a se juntar para ‘derrubar’ o técnico através da elaboração de cartas anônimas com conteúdos mentirosos e infundados; enviaram tais cartas para a coordenadora do departamento de futebol feminino, Aline Xavier, que, ao tomar conhecimento das narrativas apresentadas nas cartas anônimas, desconsiderou tal conteúdo, não concordando com o tal pedido – afirma a defesa de o treinador.
- A atleta decidiu não se manifestar sobre a causa.
O que diz Kleiton Lima
Trivela reproduz na íntegra a resposta enviada pelo treinador diante das acusações feitas:
Não falo sobre o assunto porque o justo não se justifica. Estou tomando medidas legais cabíveis e entre elas há um processo judicial contra uma atleta por calúnia e difamação.
Seguindo as orientações dos meus advogados não posso me pronunciar, porque o processo está em segredo de justiça. Fui acusado falsamente por cartas anônimas, sem que ninguém tenha assumido a autoria dessas narrativas.
Quando alguém faz algum tipo de acusação tem que provar. Tenho uma carreira profissional de quase 30 anos de forma ilibada, consolidada e vitoriosa, nunca tive nenhuma queixa nesse sentido durante toda a minha trajetória.
Usaram desse artifício para tentar denegrir minha história e minha reputação de forma covarde e asquerosa. Sugiro que busquem o resultado da apuração do caso com a direção do Santos FC.
Uma oferta de ajuda
Caso você sofra de depressão ou possui algum entrave ligado à saúde mental, procure ajuda. Também o faça se você se sentir depreciado, com a autoestima baixa, desesperançoso com a vida e/ou se isolar das relações sociais. Não hesite em buscar auxílio ou o atendimento com um profissional – por exemplo, no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de sua cidade ou região, ligado ao SUS, ou mesmo na Unidade Básica de Saúde mais próxima. Você também pode procurar o CVV, o Centro de Valorização da Vida. O canal realiza apoio emocional e prevenção ao suicídio. Através do número 188, atende gratuitamente pessoas que desejam conversar, sob total sigilo. O contato também pode ser feito pelo site oficial, por e-mail ou mesmo por Skype. Quando você pede ajuda, você: “é respeitado e levado a sério; tem o seu sofrimento levado em consideração; fala em privacidade com as pessoas sobre você mesmo e sua situação; é escutado; é encorajado a se recuperar”.
E se você conhece alguém em uma situação de risco, não deixe de procurar essa pessoa e de oferecer ajuda. O Ministério da Saúde também possui uma página em que orienta como identificar, agir e prevenir o suicídio. Reconheça os sinais, conforme a indicação da Superinteressante e do Ministério da Saúde: “frases ou publicações nas redes sociais que falem de solidão, culpa, apatia, autodepreciação, desejo de vingança ou hostilidade fora do comum; isolamento, não atendendo a telefonemas, interagindo menos nas redes sociais, ficando em casa ou fechadas em seus quartos, reduzindo ou cancelando todas as atividades sociais, principalmente aquelas que costumavam e gostavam de fazer; preocupação com sua própria morte ou falta de esperança, com sentimento de culpa, falta de autoestima e visão negativa de sua vida e futuro; diminuição ou ausência de autocuidado; aumentar o uso de álcool ou drogas, mudanças drásticas de peso, dirigir perigosamente; perguntas sobre métodos letais, como facas, armas ou pílulas; enaltecer e glamorizar a morte; desfazer-se de objetos pessoais e dar adeus”. Vale ressaltar que, embora não seja a maioria das pessoas doentes que cogita ceifar a própria vida, os transtornos mentais são um fator de risco ao suicídio. Em compensação, há sempre uma saída. O avanço da medicina ligada à saúde mental é significativo e a atenção dada pelo sistema público de saúde ao tema cresceu nos últimos anos.
Diante da possibilidade de ajuda, o Ministério da Saúde orienta “a encontrar um momento apropriado e um lugar calmo para falar sobre suicídio com essa pessoa. Deixe-a saber que você está lá para ouvir, ouça-a com a mente aberta e ofereça seu apoio. Incentive a pessoa a procurar ajuda de profissionais de serviços de saúde, de saúde mental, de emergência ou apoio em algum serviço público. Ofereça-se para acompanhá-la a um atendimento. Se você acha que essa pessoa está em perigo imediato, não a deixe sozinha. Procure ajuda de profissionais de serviços de saúde, de emergência e entre em contato com alguém de confiança, indicado pela própria pessoa. Fique em contato para acompanhar como a pessoa está passando e o que está fazendo”.
Segundo dados da OMS, “mais de 800 mil pessoas morrem por suicídio a cada ano em todo o mundo, o que equivale a uma morte a cada 40 segundos, sendo que a cada três segundos uma pessoa atenta contra a própria vida. No Brasil, foram 11.821 suicídios oficialmente registrados em 2012, o que representa, em média, 32 mortes por dia. Estima-se que o número de suicídios seja maior do que o registrado, devido ao estigma. Milhões de pessoas são afetadas pelo luto ao suicídio a cada ano. Estudos indicam que cada caso de suicídio tem sério impacto na vida de pelo menos outras seis pessoas de forma direta. Sentimentos ambivalentes são comuns em relação ao ente querido que faleceu de suicídio, como luto, raiva, culpa e outros. É importante aceitá-los como naturais, conversar com familiares e amigos, além de buscar atendimento médico e/ou psicológico, se necessário”. Não deixe de se abrir, se você enfrenta o luto por suicídio.
* Este texto foi escrito seguindo orientações da Associação Brasileira de Psiquiatria e do Ministério da Saúde à imprensa, apoiado também em reportagem da BBC. Você, colega jornalista, pode se informar sobre a maneira de noticiar um suicídio através dos links.