Fifa e Federação da Zâmbia colocaram jogadoras em risco em caso de acusação de abuso sexual
A manutenção de Mwape como técnico da Zâmbia em meio a investigações colocou as jogadoras em posição de risco e surgiram novas denúncias de abuso durante a Copa

O técnico da Zâmbia, Bruce Mwape, comanda o time em uma situação muito controversa. Ele é acusado de abuso sexual, além de assédio, contra as jogadoras da sua seleção. Isso tudo antes da Copa do Mundo Feminina, da qual o país africano participa. Nesta quinta-feira, ele foi acusado de esfregar a mão no seio de uma jogadora do time dois dias antes da vitória histórica da Zâmbia contra a Costa Rica, na terceira partida da seleção africana no torneio.
A Fifa confirmou que recebeu uma reclamação oficial sobre o incidente, ainda na segunda-feira, na Nova Zelândia. Antes do torneio, já havia sido revelado que Mwape era investigado por alegações de abuso sexual contra suas jogadoras. Mesmo assim, ele permaneceu no cargo, mesmo com o presidente da Federação de Futebol da Zâmbia, Andrew Kamanga, ciente da acusação.
Qual a acusação contra Mwape e por que ela só foi feita após o jogo
Segundo fontes próximas ao elenco, diversas jogadoras viram Mwape esfregando suas mãos no peito de uma das jogadoras na última sexta-feira, depois do treinamento. “Não é apropriado que um técnico toque os seios de uma jogadora assim”, afirmou uma fonte ouvida pelo Guardian.
Testemunhas do assédio discutiram sobre fazer a denúncia imediatamente, mas preferiram esperar a campanha do time ser completada por medo de não serem escaladas por terem causado problemas ao time. A Zâmbia, naquele momento, já estava eliminada da Copa do Mundo depois de perder seus dois primeiros jogos, duas goleadas por 5 a 0, para a Espanha e para o Japão. Terminaram a fase de grupos com uma histórica vitória sobre a Costa Rica por 3 a 1.
A denúncia foi feita por um delegado da Fifa, que acompanhou a delegação da Zâmbia durante a sua estadia na Nova Zelândia, e foi feita de forma anônima diretamente a um representante da entidade, com receio de membros da Federação de Futebol da Zâmbia as punirem. Foi esse representante da Fifa que levou a denúncia ao conhecimento da entidade.
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Quais as denúncias anteriores contra o técnico
Mwape assumiu como técnico da seleção feminina da Zâmbia em maio de 2018. Sob o seu comando, a Zâmbia conseguiu a inédita classificação à Copa do Mundo Feminina — ampliada de 24 para 32 seleções na edição de 2023.
Segundo a Federação da Zâmbia, em setembro de 2022 foi feita uma investigação em relação a abuso sexual do técnico na seleção feminina. Mwape e o técnico da seleção sub-17, Kaluba Kangwa, também é acusado dos mesmos crimes. Kangwa deixou o cargo depois da investigação começar, embora não tenha sido feito nenhum anúncio sobre a sua saída. Mwape continuou no cargo.
“Se ele (Mwape) quer dormir com alguém, você tem que dizer sim. É normal que o técnico durma com as jogadoras no nosso time”, denunciou uma jogadora, que não quis se identificar, ainda em julho, antes da Copa do Mundo. Na época, a Fifa afirmou que estava ciente das acusações e que havia uma investigação em andamento e, por isso, não poderia comentar.
Antes do primeiro jogo, Mwape foi questionado e negou as acusações. “Já faz um ano agora. Vocês ainda estão falando sobre as mesmas alegações. No que me diz respeito, são alegações falsas”, afirmou o técnico.
O assunto foi novamente pauta antes do segundo jogo da Zâmbia na coletiva de imprensa do treinador. Desta vez, ele não respondeu: o assessor de imprensa da Fifa decidiu interromper e pediu que as perguntas se restringissem a “questões de futebol do torneio apenas”. Uma clara censura a uma pergunta absolutamente legítima, que inclusive o técnico teria o direito de não responder, se não quisesse. Mas não deveria ter sido impedida. O técnico aproveitou a deixa para afirmar: “A verdade da questão deverá vir à tona”.
O que a Fifa disse sobre o caso
A Fifa confirmou, em comunicado, que recebeu a denúncia de abuso sexual feita contra Bruce Mwape. Embora não tenha dado detalhes, confirmou que há uma investigação em andamento e promete tomar as medidas mais duras possíveis caso a culpa seja comprovada.
“A Fifa leva qualquer alegação de conduta inapropriada extremamente a sério e tem um claro processo para qualquer pessoa no futebol que queira denunciar um incidente. Podemos confirmar que essa denúncia foi recebida em relação à seleção zambiana feminina e está atualmente sendo investigada. Não podemos dar mais detalhes em relação a uma investigação em andamento por razões óbvias de confidencialidade”, diz comunicado da Fifa.
“Qualquer um que deseje relatar alegações ou informações relativas a abusos no futebol pode fazer isso através da plataforma de denúncias confidenciais da Fifa, com toda a informação que é enviada à Fifa tratada com o mais estrito sigilo. Além disso, a Fifa oferece apoio e assistência para garantir a segurança daqueles que derem testemunho em casos judiciais da Fifa. Onde a culpa for comprovada, a Fifa irá impor as sanções mais fortes possíveis, incluindo remover as pessoas do esporte para sempre. Nosso histórico mostra isso”, diz ainda a nota da entidade.
Sua manutenção no cargo colocou em risco as jogadoras
A presunção de inocência é um conceito fundamental do direito em qualquer lugar (ou deveria ser), mas o caso é que o técnico acusado continua com acesso às jogadoras, em uma posição de poder, e, no caso de ele ser culpado, continua com acesso a seguir cometendo abusos.
Tanto a Federação da Zâmbia (FAZ) quanto a Fifa foram lenientes demais no processo. Não basta dizer que há uma investigação em andamento. As investigações de 2022 precisavam ser levadas a sério e a sensação é que tudo foi empurrado com a barriga e as jogadoras foram ignoradas. Seria importante ir até o fim, seja para qual resolução chegar, inclusive se fosse para garantir que o técnico é inocente das acusações.
A demora em resolver um caso assim cria uma nova situação de perigo para as jogadoras, a parte mais frágil da situação. Tanto que surgiu uma nova denúncia contra o técnico com um caso de abuso durante o torneio. Em um caso como esse, seria prudente, para dizer o mínimo, que o técnico fosse afastado do cargo. Até para evitar que situações assim aconteçam.
No caso de ele ser inocente, poderia voltar ao cargo, se os dirigentes assim quisessem, embora fosse, digamos, muito pouco inteligente pela clara má relação com as atletas. O que não dá é fazer as jogadoras continuarem correndo o risco de, sendo ele culpado das acusações, continuar com poder e influência sobre elas, justamente o cenário que levou ao suposto abuso. A falta de ação é, novamente, um cenário que cria um risco desnecessário a quem está na ponta mais frágil da história. O acusador continua em uma posição de poder direto sobre aquelas que são, supostamente, suas vítimas. É uma situação que não poderia chegar em uma Copa do Mundo. É uma irresponsabilidade de todos os envolvidos.
Jogadoras não receberam pagamentos devidos
A maioria das jogadoras e inclusive da comissão técnica da Zâmbia ainda não receberam o pagamento devido como premiação pela participação da seleção do país nos Jogos Olímpicos de Tóquio de 2020, que aconteceram em 2021.
Isso mesmo depois de receberem garantias do presidente do país, Hakainde Hichilema, antes mesmo do torneio. A dívida com algumas das jogadoras está na casa de US$ 60 mil, incluindo um bônus de US$ 5 mil pela vitória sobre a Costa Rica.
No último mês, a Fifa afirmou que cada jogadora que disputasse a Copa do Mundo receberia US$ 30 mil depois de um acordo fechado com a FIFPro, a Associação Mundial dos Jogadores Profissionais, que descreveu o acordo como “resultado de uma tremenda ação coletiva global de mais de 150 jogadoras de seleções nacionais” e depois de meses de “negociação construtiva com a Fifa”.
Só que mesmo isso pode ser um problema. As jogadoras temem que esse dinheiro nunca chegue às suas mãos. Isso porque o pagamento da Fifa é feito via federações nacionais. No caso, o pagamento, então, será feito para a Federação da Zâmbia, que seria responsável por distribuir às jogadoras. Considerando o histórico de não ter pagado as jogadoras antes, é um temor plenamente justificável.
Procurada para falar sobre o assunto, a Fifa, através do presidente Gianni Infantino, se explicou. “Nós fazemos recomendações, mas somos uma associação de associações. Então, quaisquer pagamentos que façamos será via associações e então as associações farão os pagamentos relevantes às suas próprias jogadoras”, afirmou Infantino.
“Há diferentes situações em diferentes partes do mundo — impostos, residência e assim vai. Eu brinco algumas vezes que não podemos artificialmente imprimir dinheiro. Se pudéssemos, isso seria ótimo, mas no fim, nós podemos distribuir, podemos pagar o que geramos”, continuou o dirigente.