Sectarismo, traição, rivalidade: A história da transferência que deixou Celtic e Rangers em chamas
Durante a última semana, Steven Gerrard discursou contra os cânticos sectários que persistem entre os torcedores do Rangers. O treinador se posicionou depois que um setor do Estádio Ibrox acabou fechado pela Uefa por um jogo, em punição aos insultos contra católicos entoados na partida ante o St. Joseph’s, de Gibraltar, pela Liga Europa. “Espero que esta seja a última vez que tenhamos que lidar com questões sobre o comportamento da torcida. Queremos que os torcedores estejam nos jogos, se divirtam e apoiem o time. É isso que significa torcer. Temos uma das melhores torcidas do mundo. Então, quando você ouve algo assim, mancha a nossa reputação”, declarou Gerrard. Uma esperança que pouco parece se sustentar, diante da história da agremiação.
Coincidentemente, há 30 anos, a Old Firm vivia um de seus episódios mais famosos ao redor do sectarismo. Em julho de 1989, Maurice “Mo” Johnston chegou ao Rangers e, em agosto, disputou o seu primeiro clássico contra o Celtic. O atacante da seleção escocesa, que passara as duas temporadas anteriores no Nantes, se sugeria como uma grande contratação à linha de frente dos Teddy Bears, não fosse um “pequeno” detalhe: Johnston era católico. Ele tornou-se o primeiro jogador abertamente católico a ser comprado pelos Gers desde a Primeira Guerra Mundial. Como se isso não bastasse, Super Mo também havia sido ídolo do Celtic antes de atuar na França e tinha apalavrado seu retorno a Parkhead, com direito a uma pomposa apresentação vestindo a camisa alviverde semanas antes de mudar de ideia. O artilheiro representava uma “quebra” dentro da agremiação protestante e gerou um unânime ódio entre as duas torcidas rivais. Ao menos, conquistou a confiança dos azuis com gols.
O sectarismo na Old Firm
Antes de falar sobre o peso da contratação de Mo Johnston, é preciso entender as bases da rivalidade entre Celtic e Rangers. A Old Firm, afinal, não se concentra apenas no futebol. E um momento crucial para originá-la aconteceu nos anos de 1840, duas décadas antes da unificação das regras do futebol. Durante aquele período, a Irlanda atravessou uma das grandes crises de sua história, chamada de “A Grande Fome”. Por conta de uma praga que atingiu as plantações de batatas, os irlandeses encararam quatro anos de miséria extrema, que se agravou pela negligência do Império Britânico – então responsável por governar a ilha, ainda unificada. Cerca de um milhão de pessoas morreram, enquanto mais um milhão migrou a outros países. A Escócia se tornou um dos principais destinos.
“A Grande Fome” ajudou a acirrar as diferenças na região. Ela potencializou as tensões étnicas e religiosas, já que a maior parte dos irlandeses eram católicos. Além disso, também motivou o nacionalismo e o desejo por uma república independente na Irlanda. E esses reflexos se sentiram não apenas no território irlandês, mas também nas cidades que abrigaram os tais imigrantes que fugiam da fome. Glasgow entra neste contexto e, décadas depois, também o futebol. O Celtic surge em 1887 como uma iniciativa ligada aos católicos para auxiliar a população irlandesa que convivia com a pobreza na cidade.
A ideia de fundar o Celtic aconteceu na Igreja de Santa Maria, inspirada por aquilo que o Hibernian já realizava em Edimburgo desde 1875. O clube católico de Glasgow deveria disputar partidas para arrecadar fundos e, assim, contribuir às iniciativas de caridade dos irlandeses – como a oferta de refeições gratuitas na região leste da cidade ou outros trabalhos ligados a crianças carentes. Ao final, a imagem dos alviverdes como um bastião da comunidade irlandesa em Glasgow impulsionou a popularidade do novo time. O nome, as cores, os símbolos: tudo possuía laços com essas raízes na ilha. E uma população, que se via marginalizada e enfrentava preconceitos dos escoceses “nativos”, começou a se sentir representada dentro de campo. Desta maneira, passou a encher as arquibancadas.
Adversário do primeiro jogo da história do Celtic, o Rangers surgiu 15 anos antes. Os Teddy Bears foram fundados em 1872, sem necessariamente uma restrição religiosa em suas origens – embora estivessem ligados à comunidade presbiteriana. Em seus primórdios, a imprensa relatava até mesmo uma amizade entre os clubes. A animosidade só ganhou força com o início do profissionalismo no futebol escocês. Diante da recusa do Queens’ Park em abandonar o amadorismo, Rangers e Celtic se tornaram os principais representantes de Glasgow no Campeonato Escocês, criado em 1890. O sucesso de ambos dentro de campo, somado ao aumento da popularidade do esporte e ao cenário sócio-político da cidade, no fim das contas, é que deram os contornos sectários à Old Firm.
Celtic e Rangers serviam para contrapor diferentes grupos, não apenas escoceses e irlandeses. Também existiam disputas entre protestantes e católicos, unionistas e republicanos, progressistas e conservadores. Logo, adotar as cores de um time não era uma questão apenas de gosto esportivo, era assumir a própria identidade. Desta forma, a oposição entre dois clubes que antes se tratavam de maneira amistosa cresceu dramaticamente e os conflitos nas arquibancadas se tornaram constantes a partir da virada à década de 1910.
Em 1912, outro episódio importante aconteceu quando uma companhia naval de Belfast, que possuía políticas anti-católicas, inaugurou uma nova unidade em Glasgow. O sectarismo veio à tona e seus trabalhadores contribuíram para que o Rangers se aproximasse ainda mais dos protestantes e dos unionistas. Já nos anos posteriores, as rebeliões dos católicos irlandeses pela república se ampliaram. A partir de 1921, com a independência, a divisão entre Eire (República da Irlanda) e Ulster (Irlanda do Norte) se refletiu na Old Firm. Celtic e Rangers representavam uma bandeira a mais em meio à cisão da ilha.
A regra não escrita
Foi justamente neste período, na virada à década de 1920, que o Rangers instituiu uma regra não escrita em sua política de contratações. Até então, não existiam empecilhos na compra de jogadores católicos, que compuseram alguns dos elencos nos quase 50 anos de existência da agremiação – com menção principal ao centroavante Archie Kyle, que superou os 50 gols entre 1904 e 1908. Porém, o contexto recrudescido influenciou a diretoria a evitar as transferências de membros que se assumissem abertamente católicos. A influência dos grupos unionistas e conservadores transparecia no Estádio Ibrox. E não impediu, por exemplo, que o egípcio Mohamed Latif se transformasse no primeiro muçulmano a atuar pelos Gers após a Copa de 1934.
Até então, prevalecia a negação de tal medida em Ibrox. A primeira grande admissão pública de que o Rangers não contratava católicos aconteceu em 1965 – outro momento simbólico, em que as tensões aumentavam na Irlanda do Norte. Após defender os Teddy Bears por 11 anos como profissional, o atacante Ralph Brand se transferiu ao Manchester City e apontou ao jornal ‘News of the World' que a diretoria mantinha uma política de contratações anti-católica. Questionado sobre o tema meses depois, o vice-presidente Matt Taylor justificou como “parte da nossa tradição” e que uma mudança os faria “perder apoio”. Até mesmo por causa dos conflitos cada vez mais sangrentos na região, não se ousou quebrar a barreira naquele período.
Em 1976, ouviu-se uma manifestação contundente de Willie Waddell, antigo ídolo que assumira como diretor de futebol do Rangers anos antes. “Estamos determinados a encerrar a imagem do Rangers como um clube que pratica o sectarismo. Não teremos barreiras na contratação de jogadores”, apontou, em declaração inserida em meio à crescente onda de hooliganismo no futebol britânico. Entretanto, ele pareceu apenas colocar panos quentes sobre o questionamento frequente. A diferença entre o discurso e uma prática realmente efetiva foi grande.
Quatro anos mais tarde, após os episódios de violência na final da Copa da Escócia, a Igreja da Escócia (principal grupo protestante do país) propôs em assembleia uma moção para que o Rangers acabasse com suas práticas excludentes na contratação e se distanciasse publicamente do sectarismo. “As tensões seriam afrouxadas se todos os clubes, e o Rangers em particular, negassem as discriminações e provassem que o sectarismo não tem lugar no esporte escocês”, posicionou-se a instituição. Mesmo com a aprovação da moção, o alto número de abstenções entre os membros da Igreja na votação impediu que a iniciativa gerasse o impacto esperado. O tabu se arrastava.
O Celtic, por outro lado, não possuía o mesmo tipo de restrição. Havia claramente uma cultura católica dentro do clube, mas que não culminava necessariamente na exclusão de protestantes em seu elenco. O maior exemplo disso é ninguém menos que o lendário Jock Stein. Em seus tempos de jogador, ele peitou a desaprovação do pai para assinar com o clube católico e se tornou até mesmo capitão dos Bhoys. No entanto, já como técnico da base após pendurar as chuteiras, Stein sentiu que sua fé era empecilho para ascender rumo à equipe principal, por isso deixou Parkhead em 1960. Após um ótimo trabalho à frente do Dunfermline, fez os dirigentes engolirem qualquer preconceito e retornou para ser o primeiro técnico protestante da história do Celtic, a partir de 1965. Dois anos depois, faturou a Copa dos Campeões, até então inédita a times britânicos.
A veneração de Jock Stein no clube não dependeu de sua religião. E o treinador se sentia livre o suficiente para questionar a postura do Rangers no mercado de transferências. Segundo ele, se tivesse que escolher entre um jogador católico ou um protestante para contratar, ele preferia o protestante, simplesmente porque “sabia que nunca o Rangers contrataria o católico”. De fato, o comandante não teve dúvidas quando pôde acertar a compra de um garoto promissor chamado Kenny Dalglish em 1968. Mesmo sendo protestante e torcendo para o Rangers durante a infância, o prodígio assinou com os alviverdes e se transformou em um dos grandes ídolos de Parkhead, até ser vendido ao Liverpool em 1977.
A política implícita do Rangers, entretanto, não quer dizer que nenhum católico defendeu a equipe ao longo de quase sete décadas de proibição. Em 1952, Laurie Blyth foi uma rara exceção, mas precisou deixar o Estádio Ibrox depois que sua religião foi descoberta. O americano descendente de irlandeses Hugh O'Neill foi emprestado aos Teddy Bears em 1976, após se destacar no futebol universitário. Mesmo na época daquela declaração de Wadell, ele acabou limitado ao segundo quadro e nunca estreou pela equipe principal.
E existiam até mesmo aqueles que sofreram com o sectarismo por terem se casado com uma esposa católica. Sir Alex Ferguson, atacante do clube nos anos 1960, relatou em sua biografia publicada em 1999 que foi pressionado por dirigentes sobre seu matrimônio. Já em 1980, o ponta Graham Fyfe alegou que seu casamento com uma católica também gerou indagações e que isso motivou a sua transferência. Não era a regra, porém. Ídolos como Bobby Russell e Derek Johnstone atuavam no clube durante a mesma época que Fyfe e permaneceram por lá por mais de uma década, apesar de terem esposas católicas. Negavam o entrave neste sentido.
Vale dizer ainda que a contratação de Mo Johnston ajudaria um veterano do Rangers a sair do armário. Poucos dias após o anúncio do atacante em 1989, Don Kichenbrand foi à imprensa declarar que também era católico, mas manteve sua religião sob sigilo durante os anos 1950, temendo represálias por isso. O atacante sul-africano anotou 26 gols em 30 partidas pelo Campeonato Escocês e defendeu os Teddy Bears até 1958, quando se transferiu ao Sunderland. Demorou quase 30 anos até se sentir confortável para revelar a sua fé.
“Sim, eu nasci católico e continuava sendo quando joguei no Rangers, mas ninguém sabia. Eu não poderia admitir para ninguém, teria arruinado uma vida maravilhosa. Era realmente estranho ser xingado pelos torcedores do Celtic. Ninguém sabia do meu segredo. Por que eu deveria ter contado? O empresário responsável pelo acerto se esqueceu de perguntar minha religião até eu estar preparado à viagem no aeroporto de Joanesburgo. Então, ele manteve sigilo. Vivi uma época maravilhosa no Rangers e minha vida não estaria completa sem isso”, comentou o veterano, em 1989, ao Daily Record.
Mo Johnston e seus antecedentes
Mo Johnston foi o primeiro jogador abertamente católico a ser contratado pelo Rangers desde a década de 1920. Porém, ele não foi o primeiro atleta reconhecidamente católico a entrar em campo pela equipe desde então. Esta primazia coube a John Spencer, atacante nascido em Glasgow que chegou à base dos Teddy Bears em 1982, aos 12 anos. Visto como uma grande promessa do futebol escocês, a religião do garoto não impediu que os dirigentes apostassem em sua carreira – o que não o afastou dos problemas, mesmo tão jovem. Spencer sofria ameaças regulares na escola e era desafiado a brigas. Além disso, o rapaz também viu parte de sua família se afastar por conta de sua decisão. Eram torcedores do Celtic, descontentes com a opção de fechar com os Gers.
A primeira aparição de Spencer no time principal do Rangers dependeu de um personagem central para encarar o sectarismo dentro do clube: Graeme Souness. Multicampeão com o Liverpool, o meio-campista chegou ao Estádio Ibrox em 1986, para acumular os papéis de jogador e também de técnico. E, diante da longa seca que o clube que enfrentava no Campeonato Escocês, o comandante começou a quebrar tais “tradições”, prometendo montar o melhor time possível, independentemente das origens dos atletas. Uma de suas principais medidas foi contratar jogadores ingleses a rodo, o que não era muito bem visto pelos mais radicais. Também se tornou responsável por trazer o primeiro negro da agremiação, o meia Mark Walters, em 1987 – que, apesar dos temores quanto ao racismo, foi bem recebido.
Algo comum nas coletivas de apresentação dos novos treinadores do Rangers era confrontá-los sobre a regra não escrita do anti-catolicismo. Souness ouviu o questionamento e respondeu: “Olhe, minha esposa é católica, eu tenho dois filhos que foram batizados como católicos. Então você está dizendo que não posso trabalhar com um católico, mas posso ir para casa de um católico? Eu te respondo que, sim, obviamente eu poderei contratar um jogador católico”. O treinador logo saberia que parte da torcida admitia a quebra da tradição, sobretudo se fosse um católico de outra nacionalidade, que não estivesse envolvido também em questões sobre o unionismo e a divisão da Irlanda.
Spencer estreou no Rangers sob as ordens de Souness, em 1987. A promessa não se firmou no elenco e disputou apenas 13 partidas pela equipe principal, antes de deixar Ibrox em 1992. Chegou a passar por dois empréstimos, inclusive para Hong Kong, justo na temporada em que Johnston desembarcou em Glasgow. E a presença do adolescente no plantel esteve bem distante de se aproximar do impacto causado pelo novo colega católico. A transferência de Super Mo caiu como uma bomba na Escócia.
Nascido em Glasgow, Mo Johnston despontou atuando em seu colégio católico e iniciou a carreira no primo pobre da cidade, o Partick Thistle. Seus gols garantiram destaque e, em novembro de 1983, o artilheiro se transferiu ao futebol inglês. Assinou com o Watford, sensação da Football League, que fora vice-campeão da primeira divisão na temporada anterior. Levado por Graham Taylor como substituto do ídolo Luther Blissett, vendido ao Milan, o escocês brilhou em Vicarage Road. Não foi tão efetivo quanto o seu antecessor, mas também contribuiu com muitos tentos e ajudou os Hornets a disputarem a final da Copa da Inglaterra em 1984. Como reconhecimento, retornou à Escócia logo depois, agora para vestir a camisa do Celtic.
Johnston tinha 21 anos quando aportou ao Celtic. E não escondia que o clube representava um sonho de infância. Ainda no Watford, declarou que “andaria sobre cacos de vidro” para ser contratado pelos Bhoys. O negócio não demorou a sair e, enquanto os alviverdes desembolsaram £400 mil pela transferência, recorde ao futebol escocês na época, o centroavante até aceitou uma redução salarial para viabilizar a transação. Assim, o novato logo caiu nas graças da torcida e ganhou o apelido de “Super Mo”.
Johnston era daqueles atacantes que curtem noitadas e adoram se exibir fora de campo, mas ao menos se garantia nas quatro linhas. Combinava muita entrega e qualidade na definição. Super Mo anotou 50 gols em três temporadas pelo Celtic, número que se torna mais expressivo por sua participação decisiva nos títulos conquistados durante o período. Brilhou na Copa da Escócia 1984/85 e também no Campeonato Escocês 1985/86, que encerrou uma seca de três anos de seu clube. O artilheiro formava uma afinadíssima dupla ao lado de Brian McClair e ganhou suas primeiras convocações à seleção escocesa no período, apesar da ausência na Copa de 1986 – excluído por Sir Alex Ferguson por conta do comportamento extracampo.
A única temporada em que Johnston não conquistou títulos em Parkhead foi a de 1986/87, justamente quando Graeme Souness assumiu o Rangers e reergueu os rivais. Souness faturou seu primeiro troféu pelo clube em outubro de 1986, na Copa da Liga decidida contra o Celtic no Hampden Park. Uma Old Firm que teve Super Mo como uma figura controversa. Durante os minutos finais da derrota por 2 a 1, o atacante foi expulso de campo, ao acertar uma cabeçada em um adversário. Na saída aos vestiários, ele fez um sinal da cruz. Só que aquilo que poderia ser entendido como uma manifestação corriqueira da fé ganhou ares de provocação ao Rangers. Embora fosse católico, Johnston não costumava praticar sua religião e, horas antes da final, foi o único jogador do elenco que se ausentou na missa rezada aos jogadores alviverdes. Os torcedores do Rangers entenderam o recado como uma afronta e xingaram o rival sem cerimônias. A faísca rendeu discussão por dias.
Sem render o mesmo no Celtic, Mo Johnston preferiu deixar o clube na temporada 1987/88, quando se transferiu ao Nantes. Na despedida, o atacante declarou que a interferência da imprensa na sua vida extravagante motivou seu desejo de sair. Além do mais, também apontou que o sectarismo da torcida do Rangers, expresso na final da Copa da Liga, teve peso em sua decisão.
Johnston chegou até a dizer nesta época que não voltaria ao futebol escocês, antes de mudar de ideia e abrir a possibilidade de retornar ao Celtic em 1989. Foram duas temporadas na França, onde agradou com 22 gols, embora as farras também atrapalhassem o seu rendimento. Ao término de sua estadia com os Canários, o artilheiro seguia com um ótimo mercado. O Montpellier chegou a um acordo, mas não levantou dinheiro suficiente para a contratação. Também surgiram conversas com Stuttgart, Torino e Tottenham. O escocês, ainda assim, estava resoluto a retornar à Escócia às vésperas da Copa do Mundo. A Glasgow.
De ‘Super Mo’ a ‘Judas’
De fato, Mo Johnston retornou ao Celtic em maio de 1989. O atacante conversou com o técnico Billy McNeill, antigo capitão dos Leões de Lisboa, e concordou com a transferência por £1,2 milhão – novo recorde dos alviverdes. O clube não assinou com o atacante de imediato, mas depositou um terço do valor ao Nantes e estava munido de uma carta de intenções do jogador – que, conforme a Fifa, valeria como um pré-contrato. O negócio parecia tão certo que os Bhoys reapresentaram Johnston ao final da temporada (vide a foto acima) e o levaram para acenar à torcida em Parkhead. Mesmo sem poder jogar, Super Mo se juntou ao elenco durante a reta final do Escocês 1988/89.
Publicamente, Johnston fazia juras de amor ao Celtic e apontava que seu único desejo era atuar pelo clube do coração: “Quando cheguei ao Celtic, em 1984, era como uma resposta às minhas orações – e não digo isso em vão. Não queria deixar o clube em 1987 e não pretendo fazer isso agora. Houve algum rumor sobre minha vontade de ir ao Manchester United, mas nunca entrou na minha cabeça atuar por qualquer outro clube. Na verdade, não há outro clube britânico no qual eu poderia jogar além do Celtic”.
Os camelôs já vendiam camisas de Mo Johnston antes da decisão da Copa da Escócia de 1989. O Celtic venceu o Rangers e impediu a tríplice coroa dos rivais naquela temporada. O retorno do velho ídolo até parecia trazer novas perspectivas a Parkhead. Tudo corria às mil maravilhas, quando os rumos do negócio mudaram completamente sobretudo por causa de um homem: Bill McMurdo, empresário de Super Mo. O agente entrou em contato com o Celtic e declarou que o passe do jogador estava atrelado à sua companhia, não ao Nantes. Para que a transferência se completasse, tinha que passar por suas mãos.
E aí residiu o maior imbróglio ao Celtic. O técnico Billy McNeill se recusara a conversar com Bill McMurdo, desconfiado de sua conduta. A queda de braço se estendeu e McMurdo resolveu realizar seu próprio jogo. Além de torcedor fanático do Rangers, o agente ajudou a fundar um movimento unionista em Glasgow e empresariava Jock Wallace, antecessor de Souness na casamata dos azuis. A conexão com Ibrox foi simples.
McMurdo passou a negociar Johnston paralelamente com Graeme Souness e o treinador logo vislumbrou a oportunidade. Não era apenas a questão de comprar um católico ao elenco do Rangers após mais de seis décadas, rompendo a restrição implícita. Era também a chance de aplicar um chapéu gigantesco nos históricos rivais e, de quebra, reforçar o ataque com um dos melhores atacantes do país. Na visão do comandante, o moral dos Teddy Bears seria muito mais elevado pela rasteira do que pela quebra do sectarismo. Presidente dos Gers e magnata do aço, David Murray concordou com o técnico. Estava mais interessado no fortalecimento comercial da agremiação. Além do mais, a Fifa começava a investigar práticas segregacionistas no futebol e o risco de uma sanção rondava Ibrox, independente da política ser apenas implícita.
O coração alviverde de Johnston não representou grande obstáculo e o atacante se convenceu dos novos rumos de sua transferência após se reunir com Souness, na casa do treinador. Super Mo admitia publicamente que o negócio com o Celtic ainda não estava concluído, com problemas de “taxas e salários”, assim como os Bhoys reconheciam o entrave, à espera de que isso se resolvesse. Apesar disso, o Rangers ainda não aparecia admitidamente na jogada. McMurdo declarou em 2 de julho que “era uma invenção completa” a possibilidade de mudança a Ibrox e que “vocês podem publicar esta história por dez anos, mas ainda assim não seria verdade”. Já o assistente do Rangers, Walter Smith, apontou ao Sunday Mail: “Lembre-se das tradições deste clube, se formos quebrá-las não será por esse merda”.
Em novo contato com a Fifa, o técnico Billy McNeill recebera outra resposta afirmativa sobre a validade da carta de intenções emitida pelo atacante. Mas à medida que o tempo passava, ficava cada vez mais claro que o papel não tivera qualquer importância a Johnston. O treinador, então, tentaria impedir que ele seguisse ao Rangers. “Eu olhei nos olhos de Johnston e não medi minhas palavras. Disse: ‘Você me enganou e vou lutar contigo até o fim. Irei me certificar que você nunca mais jogue de novo'. Fiquei furioso com a diretoria, por não pressionar a transferência e impor sanções a Johnston através da Fifa. Nunca vou perdoá-lo pela traição e acho que os torcedores do Celtic também nunca irão. Ele desrespeitou a todos nós”, recordou McNeill, 20 anos depois, em entrevista ao Guardian.
Durante as férias do treinador, sem consultá-lo, a diretoria do Celtic resolveu se retirar da mesa de negociações. Descartou o acordo e preferiu não pagar o restante do valor que devia ao Nantes. Isso deu a brecha para que o Rangers acelerasse o processo e concluísse o acerto com o bombástico reforço. Em 10 de julho de 1989, Mo Johnston aparecia nas manchetes como novo jogador dos Teddy Bears. Os azuis gastaram um total de £1,5 milhão, aumentando as luvas do astro.
“A Escócia ficou espantada quando o Rangers quebrou sua barreira não-católica da maneira mais sensacional possível, ao assinar com o astro que acabava de firmar seu retorno ao Celtic. O ‘money-man' Mo Johnston agora chegou a um grande acordo com o Rangers e não pode voltar atrás ao Celtic. Durante a última noite, ninguém apostaria nisso, mas estima-se que o atacante pode embolsar só para ele uma bolada de quase £750 mil. E seu salário elevará o acordo para mais de um milhão”, escreveu o tabloide Daily Record, no dia seguinte, deixando claro como o dinheiro teve papel essencial na história. Ainda segundo a publicação, Johnston se incomodou ao saber que perderia metade do valor ofertado inicialmente pelo Celtic por conta dos impostos.
Souness, por sua vez, escancarava sua satisfação ao dar o golpe no Celtic e contratar o antigo ídolo dos rivais: “Eu me encontrei com Bill McMurdo e isso nos trouxe ao ponto em que estamos agora. Contratamos um talento excepcional do futebol que é escocês, o que ajuda a nos prepararmos para a legislação de 1991, quando o número de atletas de outras nacionalidades será restringido. Minha maior preocupação é trazer os melhores. Eu seria tolo se não assinasse com Maurice”.
A fúria
O anúncio deixou o futebol escocês em transe. Muitos torcedores do Rangers não admitiam a contratação de um católico, ainda mais um católico escocês que foi ídolo dos rivais e fez o sinal da cruz como provocação. Pouco importava que não fosse praticante da religião ou mesmo que seu pai, protestante, torcesse pelos Gers. Alguns fanáticos foram à porta do clube para queimar cachecóis e protestar contra a decisão. O Rangers recebeu 30 ligações de torcedores que pediam o reembolso do dinheiro gasto nos carnês de temporada.
Já na Irlanda do Norte, onde há um grande número de torcedores dos clubes escoceses por conta da questão político-religiosa, as pessoas se inflamaram. Grupos de torcedores organizaram um boicote aos produtos do Rangers e bonecos de Souness foram queimados nas ruas de Belfast. Havia um “rompimento com a tradição” que a parte sectária da torcida não admitia. O antigo inimigo agora vestiria azul.
Secretário-geral da associação de torcedores do Rangers, David Miller declarou ao Glasgow Herald: “Nem em meus sonhos mais selvagens eu imaginei que o Rangers pudesse contratá-lo. É um dia triste para o clube. Por que contratá-lo, quando há tantos outros? Eu não quero ver um católico em Ibrox. O clube sempre levantou uma bandeira e a maioria dos torcedores foi construída sob a ideia de um time verdadeiramente azul dos Rangers. Eu pensei que eles até pudessem trazer um católico, talvez em três ou quatro anos, mas alguém de outro país. Isso realmente está entalado na minha garganta”. Em oposição, líderes religiosos de ambos os lados deram boas-vindas ao atleta, diante do que poderia representar contra o sectarismo.
Nos vestiários, a inclusão de Johnston não foi bem recebida por parte dos jogadores. Enquanto os ingleses do elenco organizaram uma coletiva de imprensa para dar boas-vindas ao novo companheiro, os escoceses entendiam melhor o que aquilo poderia significar e se distanciaram do evento. O maior exemplo da insatisfação era Jimmy Bell, roupeiro dos Teddy Bears. O funcionário do clube se recusava a preparar o uniforme do atacante e sequer dava a ele as barras de chocolate que eram entregues aos demais atletas. Era também contra essa resistência que o artilheiro precisava se provar.
Como se não bastasse, a torcida do Celtic se enfureceu com a traição. “Super Mo” deixou de existir naquele instante. Passou a ser simplesmente tratado como “Judas” ou “Petit Merde”. Não era nem uma questão de ser o primeiro católico a vestir as cores do rival protestante. Muito piores eram as juras de amor, a apresentação em vão, a escolha por seguir o interesse financeiro. Ainda mais por ser torcedor do Celtic na juventude, Johnston sabia o que sua mudança de ideia representava.
Um ano antes, em sua autobiografia, o artilheiro havia escrito: “Eu poderia até concordar em me tornar o primeiro católico em anos no Rangers se eles me pagassem £1 milhão e me comprassem o Castelo de Stirling. Deixe-me contar uma coisa: eu era um torcedor do Celtic por toda a vida e por isso não gostava do Rangers, porque são uma força no futebol escocês e uma ameaça ao time que amo. Mas, acima disso, eu odeio a política religiosa que eles mantêm”. Palavras que perderam o valor em pouco tempo.
Durante as primeiras semanas, Johnston viajava todos os dias de Glasgow a Londres em um avião particular fretado pelo Rangers. Pouco depois, ainda temendo ataques, preferiu comprar uma casa nos arredores de Edimburgo. A polícia de Glasgow chegou a desmantelar um complô de torcedores do Celtic que supostamente estavam planejando o assassinato do “Judas”. Além disso, o atacante contratou guarda-costas para sua segurança particular. Nem isso evitou que seu pai fosse agredido por um torcedor alviverde. A ignorância prevalecia ao redor do episódio.
Apesar de tudo, brilho no Rangers
Durante sua apresentação, Mo Johnston declarou que “admirava” o Rangers e que era “possivelmente o maior clube da Europa”. De qualquer forma, estava claro que suas declarações quase sempre eram vazias. O atacante precisaria corresponder a aposta alta dos Teddy Bears, em diferentes sentidos, dentro de campo. E ele conseguiu ter êxito nesta missão, ajudando o clube a iniciar um dos períodos mais vitoriosos de sua história. Em duas temporadas, Johnston conquistou dois títulos do Campeonato Escocês e uma Copa da Liga. Formou uma grande dupla com Ally McCoist e garantiu sua presença como titular da seleção escocesa no Mundial de 1990.
Para se integrar ao Rangers, Mo Johnston participou de cânticos sectários da torcida. Mais importante, no entanto, foi a maneira como deixou o seu passado para trás durante a Old Firm. O primeiro clássico não foi lá dos mais felizes ao atacante, que se reencontrou com os alviverdes em Parkhead pouco mais de um mês depois da transferência, em 26 de agosto de 1989. Ele se mostrou um tanto quanto nervoso nas definições e não ajudou os visitantes a irem além do empate por 1 a 1. Os jornais escoceses até comemoravam o fato de que, a despeito da tensão, nenhum caso de violência havia sido registrado nas arquibancadas.
O grande clássico de Johnston aconteceu em 4 de novembro, no Estádio Ibrox. Ainda no primeiro tempo, em um lance diante do setor visitante, o Judas foi atingido no rosto por um pedaço de torta de carne atirado por um torcedor do Celtic. Já na etapa complementar, o atacante fez sua nova torcida explodir ao determinar a vitória do Rangers por 1 a 0, aos 43 minutos. Em uma sobra na entrada da área, o camisa 10 acertou o chute no cantinho e conquistou de vez os antigos rivais. “A metamorfose de Johnston, de fanático pelo Celtic a um legítimo azul, foi confirmada quando ele fez tanta farra ao comemorar o gol com os torcedores do Rangers que recebeu o cartão amarelo do árbitro”, contou o Guardian, na época.
Anos depois, Johnston relembraria a importância daquele tento: “Depois que eu marquei contra o Celtic, Souness me puxou e perguntou onde eu iria durante a noite. Disse que estaria em uma festa à fantasia, mas ele me barrou. No final, dobraram a segurança e eu pude festejar. Depois desse gol, tudo mudou, até mesmo andando na rua, porque você ouvia os sussurros. As coisas começaram a se tornar grandes para mim depois daquela Old Firm”.
Apesar das ameaças, o boicote dos torcedores foi mínimo e a média de público do Rangers se manteve. Muito mais importante foi a qualidade que Mo Johnston ofereceu ao ataque. Ele terminou a campanha do título escocês como artilheiro da equipe, com 15 gols, e ainda balançou as redes no segundo encontro com o Celtic dentro de Ibrox. Deixou sua marca na acachapante vitória dos Teddy Bears por 3 a 0, que confirmou a supremacia dos bicampeões nacionais. Os Bhoys fizeram uma campanha melancólica naquele Campeonato Escocês de 1989/90 e terminaram apenas na quinta colocação, com metade do total de vitória dos arquirrivais.
Durante sua segunda temporada em Ibrox, Johnston conseguiu ser igualmente insaciável. Anotou 12 gols no Campeonato Escocês, incluindo outro em Parkhead. Em 25 de novembro de 1990, abriu o placar na vitória por 2 a 1 sobre o Celtic, num belíssimo toque para encobrir o goleiro Pat Bonner. Ajudou o Rangers a conquistar o seu tricampeonato em 1990/91. Além disso, o camisa 10 assinalou outros três gols no título da Copa da Liga, conquistada justamente na Old Firm. Sua jornada com os protestantes, de qualquer maneira, se encerraria logo cedo. Mo recebeu uma proposta do Everton e resolveu fazer as malas para a Inglaterra. Jogou pelos Toffees por duas temporadas, sem o mesmo impacto, e rodou por clubes menores no final da carreira. Passou por Hearts e Falkirk, antes de fazer as malas para a recém-criada Major League Soccer em 1996. O escocês jogou pelo Kansas City Wizards por cinco temporadas e teve relativo sucesso, ao conquistar o título em 2000.
O rancor que permanece
Após se aposentar, Mo Johnston trabalhou por um breve período como treinador na Major League Soccer e se tornou comentarista na televisão britânica. Porém, Glasgow se tornou um território proibido ao veterano. Nem tanto pela torcida do Rangers, por mais que alguns tenham preferido manter o ranço sectário. Quem realmente guardou ódio ao atacante foram os seguidores do Celtic, que nunca admitiram a traição. O “Judas” continua como um dos personagens mais execrados em Parkhead.
Em 2005, Johnston desistiu de um jogo festivo em Hampden Park, que teria seus fundos levantados para iniciativas de caridade apoiadas por Celtic e também por Rangers. Segundo os organizadores, o ex-atacante não gostaria que as pessoas deixassem de ir às arquibancadas por sua causa. Logo depois do anúncio de sua presença, vários torcedores alviverdes ameaçaram boicotar o evento.
Antigos ídolos dos Bhoys participaram de uma coletiva de imprensa para pedir outra postura da torcida, mas não tiveram sucesso. “Mo realmente está chateado, porque ele estava ansioso para jogar. Ele pensava que tudo aconteceu há muito tempo e que a maioria das pessoas não se importaria. Mas ele sabe que o mais importante é o dinheiro que precisa ser levantado”, apontou Rory Nicoll, responsável pelo amistoso.
Mo Johnston só retornou à Old Firm em 2016, 27 anos depois da transferência. Como comentarista, ele trabalhou no clássico válido pela semifinal da Copa da Escócia. “Veja, o Celtic não tinha o dinheiro que eu desejava para a transferência e isso foi determinante. Eu não assinara nada e então o Rangers entrou de repente no negócio. Se eu tivesse assinado um contrato, estaria no Celtic. Mas aí o Rangers veio com a grana, não vou esconder os fatos. Fiz isso há quase 30 anos e conquistei três títulos”, comentou o veterano, ao Daily Record, sem sinais de arrependimento.
“Eu sabia que a transferência causaria impacto em mim, mas não sabia como. Ainda se fala sobre isso, todo mundo quer saber para quem eu torço e quem eu quero que ganhe. São as mesmas perguntas. Tenho orgulho do que consegui nos dois clubes. Eu poderia ter ido para o Rangers e decepcionado. Sabia que tinha que conquistar a torcida. Porque, se eu não fizesse isso, não seria nada para eles”, complementou. E, a quem ainda mantém a curiosidade, Johnston prefere se ater à neutralidade de não torcer por nenhum dos rivais.
A abertura depois de Johnston
A contratação de Mo Johnston estabeleceu um marco ao Rangers, mas a chegada de outros jogadores católicos não foi imediata. Durante o início dos anos 1990, inclusive, existia certa indagação na torcida sobre algum católico entre os muitos ingleses que vestiram a camisa azul. Até parecia que o negócio bombástico era um equívoco ou um mero ponto fora da curva. Toda a polêmica ao redor da transferência, também pelo passado alviverde do artilheiro, não ajudou. Foi apenas na segunda metade da década, com a abertura ampla do mercado e a chegada de jogadores de outras nacionalidades, que as barreiras ruíram de vez. Se os Teddy Bears quisessem se manter competitivos, precisavam superar o sectarismo no elenco – algo que ainda refutavam publicamente. Super Mo demonstrou como aquele “apego à tradição” pouco representava enquanto os troféus continuassem erguidos.
O plantel do Rangers na virada do século tinha vários católicos – por vezes, mais frequentes que nas próprias escalações do Celtic. Neil McCann e Gabriel Amato foram outros importantes reforços, enquanto o italiano Lorenzo Amoruso se tornou capitão a partir de 1999. Tricampeão escocês, o defensor figura entre os maiores ídolos católicos de Ibrox, ao lado do holandês Fernando Ricksen – que, curiosamente, se tornou ortodoxo após deixar os Teddy Bears. Já o francês Paul Le Guen foi o primeiro técnico católico, em 2006. Por fim, o último grande obstáculo pareceu superado em 2013, com Jon Daly, o primeiro irlandês católico a desembarcar em Ibrox.
O fim da regra implícita não encerrou o sectarismo nas arquibancadas ou mesmo as ameaças, inclusive a alguns jogadores. Em 2002, o então meio-campista Neil Lennon recebeu ameaças de morte de unionistas por atuar no Celtic e se manifestar favoravelmente por uma seleção unificada da Irlanda. Por conta do medo, preferiu abandonar a seleção da Irlanda do Norte e seguiu convivendo com o ranço, inclusive quando se tornou técnico dos Bhoys, a ponto de receber uma carta com balas de revólver em 2011. De volta ao comando dos alviverdes na temporada passada, ele tenta encarar o sectarismo. “Em minha opinião, a situação melhorou. Não há mais lugar ao sectarismo. Algumas pessoas usam o futebol como veículo para suas frustrações ou crenças. Mas não é tanta gente que quer ouvi-las mais”, declarou, em 2018, à AFP. É um nome de peso para se colocar ao lado de Gerrard.
Celtic e Rangers, inclusive, passaram a se unir em medidas conjuntas para combater o sectarismo. As iniciativas aumentaram principalmente a partir da década passada e tentaram coibir as manifestações preconceituosas nas arquibancadas. A partir de 2012, também foi criada uma legislação mais rígida para lidar com o problema na Escócia. O sucesso, de qualquer maneira, ainda é limitado. O contexto dos últimos anos, com a bancarrota dos Teddy Bears e outras discussões políticas ascendentes, voltaram a aumentar o rancor entre as torcidas.
A divisão religiosa ainda simboliza a rivalidade, mesmo se tornando mais diluída ao longo dos últimos anos. A Old Firm se molda às diferentes discussões e ainda opõe mentalidades distintas, embora algumas preferências que demarcam o estereótipo não sejam exatamente unânimes nas arquibancadas – como o unionismo do Rangers, por exemplo. Fato é que, entre tradição e emblemas, há preconceitos que seguem entoados nos cânticos e exibidos em bandeiras. A transferência de Mo Johnston será sempre um marco pela forma como se opôs a isso. De qualquer maneira, 30 anos depois, soa a muitos como uma relação de conveniência. O desafio de enfrentar o passado não se encerrou à Old Firm.