Europa

O título do Basaksehir representa uma quebra da hegemonia no futebol turco e também uma vitória política a Erdogan

Era apenas questão de tempo ver o Istambul Basaksehir se sagrar campeão na Süper Lig. O clube se estabeleceu como uma força na Turquia durante os últimos cinco anos e rondava a taça, mas falhava na tentativa de conquistá-la. Nesta temporada, porém, os Laranjas se provaram. Numa campanha em que o trio de ferro compartilhou a crise, o caminho estava aberto aos demais times. Alanyaspor e Sivasspor chegaram a liderar durante o primeiro turno, enquanto o tradicional Trabzonspor assumiu a dianteira em fevereiro. Já na retomada da liga em junho, o Basaksehir mostrou ter aprendido com seus erros e disparou, selando o título inédito com uma rodada de antecedência neste domingo. O sexto clube distinto a levar o troféu do Campeonato Turco recebeu os parabéns do presidente Erdogan – intimamente ligado a este feito, por sinal.

Fundado em 1990, o Basaksehir passou grande parte de sua história como um figurante do Campeonato Turco – na época, chamando-se Istambul Büyüksehir Belediyesi e pertencente à prefeitura da cidade. Estreou na primeira divisão em 2007/08 e montou equipes com sua dose de qualidade, capazes de alcançar a sexta colocação na Süper Lig. Também cederia o técnico Abdullah Avci à seleção. Rebaixado para a temporada 2013/14, o clube seria refundado após o acesso rumo a 2014/15. Neste momento, mudou seu nome para Istambul Basaksehir e também adotou novos símbolos. Mais importante, todavia, seria o apoio que viria no lado de fora.

Embora os laços já existissem desde antes, o Basaksehir se tornou extraoficialmente o clube do autoritário governo de Recep Tayyip Erdogan – passando a ser administrado não mais pela prefeitura de Istambul e sim por membros do AKP, partido político do presidente. Desde 2006, o antigo Istambul BB já era presidido por Göksel Gümüsdag, marido da sobrinha de Erdogan – que também era membro de seu partido, vereador em Istambul e depois ainda viraria vice-presidente da federação de futebol. De qualquer maneira, a aproximação do AKP em 2014 aumentou o trânsito de políticos do alto escalão na diretoria (sobretudo do Ministério da Juventude e dos Esportes) e até transformou o laranja, cor do partido, também em cor predominante no uniforme do time.

Um passo fundamental à transformação do Basaksehir veio com a inauguração do Estádio Fatih Terim, financiado pelo dinheiro público e com capacidade para 17,3 mil espectadores. A moderna arena passou a oferecer uma estrutura em pé de igualdade com a dos principais clubes do país, num período de reformas e construções de vários estádios. Erdogan esteve presente na abertura da arena e até mesmo atuou na primeira partida, anotando três gols – nem tanto por benevolência, já que o presidente chegou a jogar em níveis semiprofissionais durante a juventude, passando pelo Kasimpasa. A camisa 12, usada pelo governante por ser o “12° presidente do país”, acabaria aposentada pela diretoria do Basaksehir depois disso.

Além do mais, a inauguração do estádio marcou a mudança do antigo Istambul BB ao bairro de Basaksehir. A região de Istambul começou a receber altos investimentos desde a década de 1990 – quando, sem qualquer coincidência, Erdogan era o prefeito da cidade. O político via na região a base para o seu projeto, com uma forte tradição islâmica (diferentemente do ambiente mais secular e aberto à mistura de influências no restante da cidade) e com a possibilidade de uma acelerada modernização para substituir os antigos centros de Istambul. Assim, o time se tornaria um retrato do potencial local. Uma tentativa de incutir, no futebol, as mudanças realizadas no planejamento urbano de Istambul – embora com uma identidade oposta, se levarmos em consideração o caráter cosmopolita e multinacional do elenco.

Para fazer sucesso também em campo, o Basaksehir passou a receber dinheiro de empresas próximas ao governo turco ou mesmo de companhias públicas. A principal parceira é a Medipol, grupo que atua na área de saúde e educação – e cujo fundador, Fahrettin Koca, é médico da família de Erdogan e tornaria-se Ministro da Saúde em 2018. Também surgiram contratos com a Turkish Airlines e com a construtora Makro, principal responsável pelas obras no bairro de Basaksehir. Ajudado ainda pelo aumento nas cotas televisivas, o clube passou a investir em jogadores rodados – a começar por Semih Sentürk e Márcio Mossoró nesta primeira leva em 2014/15. Aos poucos, a quantidade de astros aumentou, incluindo também Emre Belözoglu e Emmanuel Adebayor, além do promissor Cengiz Ünder.

Desde o retorno à elite em 2014/15, o Basaksehir sempre se manteve entre os quatro primeiros colocados da Süper Lig. Começou a frequentar a primeira posição do Campeonato Turco em 2016/17, mas foram dois vices e um terceiro lugar nesta sequência. A maior decepção viria com a segunda colocação de 2018/19, quando a equipe liderou durante boa parte da campanha e permitiu que o Galatasaray tomasse a dianteira na reta final. O time também seria vice-campeão da Copa da Turquia uma vez, em 2017, derrotado nos pênaltis pelo Konyaspor. Apesar de certa demora, o projeto só começou a se tornar vencedor neste domingo.

Esta nem foi a melhor campanha do Basaksehir em total de pontos: mesmo que vença seu último jogo, o clube de Istambul não vai igualar a pontuação do vice em 2016/17. Ainda assim, o time se recuperou do começo cambaleante e se estabeleceu em uma temporada bastante equilibrada do Campeonato Turco. Com duas derrotas nas duas primeiras rodadas, o Basaksehir frequentou a zona de rebaixamento em agosto e só começou a se aproximar do pelotão de frente em outubro. A série invicta no final de 2019 ajudou, incluindo uma vitória sobre o Galatasaray no caminho. Com os grandes também cometendo muitos erros, os Laranjas já saltaram à segunda colocação em dezembro, na cola do líder Sivasspor.

A ultrapassagem não seria tão simples assim. Ao mesmo tempo em que o Basaksehir perdeu sua sequência invicta diante do Fenerbahçe, durante o início do segundo turno, o Trabzonspor emendou sete vitórias consecutivas e saltou ao topo da tabela em fevereiro. Os maus resultados chegaram a derrubar o clube de Erdogan ao quarto lugar, perdendo a chance de se alavancar ao apenas empatar com o Sivasspor no confronto direto. O crescimento viria a partir de uma vitória sobre o Besiktas em meados de fevereiro, antes de outros três triunfos seguidos. Neste momento, ninguém mais seria capaz de derrubar os Laranjas – simbolicamente, quando os concorrentes também não tinham mais o diferencial de suas torcidas nas arquibancadas.

Um jogo-chave à Süper Lig aconteceu em 15 de março, antes da paralisação da competição por causa da pandemia. O Basaksehir visitou o Trabzonspor e, já com os portões fechados, voltou do Estádio Senol Günes com um bom empate por 1 a 1. Naquele momento, as duas equipes estavam separadas no topo da tabela apenas pelo saldo de gols, enquanto Sivasspor e Galatasaray ainda apareciam na perseguição. Quando o Campeonato Turco foi retomado em junho, todavia, os Laranjas viveram sua arrancada.

O Basaksehir tomou a liderança com duas vitórias nas duas primeiras rodadas do retorno do campeonato, depois que o Trabzonspor começou a encadear empates. Nem mesmo o 1 a 1 contra o Galatasaray atrapalhou os novos primeiros colocados, que colecionaram vitórias e contaram também com a incompetência dos concorrentes. O título poderia ter vindo já na antepenúltima rodada, quando o Trabzonspor tomou a virada do Denizlispor, mas o Basaksehir também cedeu a derrota por 4 a 3 ao Konyaspor no final. Mas nada atrapalharia os novos campeões neste domingo.

Com quatro pontos de vantagem, o Basaksehir só precisava vencer em casa o Kayserispor, vice-lanterna da Süper Lig. Não seria tão simples, mas assim se cumpriu com o placar de 1 a 0. Mahmut Tekdemir anotou o gol do título logo aos 19 minutos do primeiro tempo, a partir de uma linda troca de passes pela esquerda. Os Laranjas foram tabelando com facilidade, até que Gaël Clichy rolasse para trás e o meio-campista acertasse o canto. O gol seria simbólico: aos 32 anos, Tekdemir é o mais antigo do elenco. O capitão é formado pela base do antigo Istambul BB e atua na equipe principal desde 2007, chegando a passar pela segunda divisão. Titular da seleção nas Eliminatórias da Euro 2020, vive o melhor momento da carreira.

Para ajudar o Basaksehir, o Trabzonspor ainda perdeu mais um compromisso na rodada, derrotado pelo Konyaspor num novo 4 a 3 insano. Uma conveniente falta de luz no Estádio Fatih Terim, inclusive, permitiu aos campeões encerrarem seu compromisso já sabendo que ficariam com a taça – em comemoração que contou com a presença do filho de Erdogan, entre os poucos que tiveram a entrada permitida nas arquibancadas. Apesar da chance de levar seu sétimo título na liga, o primeiro desde 1983/84, esta foi uma temporada bastante turbulenta ao Trabzonspor. Houve uma contestada demissão de técnico em dezembro e também a dispensa de John Obi Mikel em março, depois que o veterano se queixou da demora para que o campeonato fosse paralisado. Punidos pela Uefa por não cumprirem o Fair Play Financeiro, o possível vice-campeonato sequer renderá a participação dos grenás nas preliminares da próxima Champions League.

Já o Istambul Basaksehir poderá se colocar na primeira prateleira do futebol continental, confirmado na fase de grupos da Champions 2020/21 com o título. O clube turco falhou em suas duas aparições nas preliminares do principal torneio europeu, eliminado por Sevilla em 2017 e por Olympiacos em 2019, mas em ambas acabou repescado à fase de grupos da Liga Europa. A atual campanha continental do Basaksehir, aliás, é promissora. Depois de superar o Borussia Mönchengladbach com uma virada fantástica na última rodada do Grupo J, dentro da Alemanha, o time também despachou o Sporting nos 16-avos de final. Enfrenta o Copenhague nas oitavas e retomará a empreitada em boa vantagem, após vencer a ida por 1 a 0.

A confirmação na fase de grupos da Champions deverá aumentar os investimentos do Basaksehir no mercado de transferências. Num clube que aposta bastante em medalhões e em estrangeiros, entre as referências do elenco atual estão Gaël Clichy, Martin Skrtel, Edin Visca, Demba Ba e Eljero Elia. Somando seis temporadas na agremiação, Visca pode ser considerado a principal figura dos Laranjas no período, embora Ba também tenha sido instrumental na atual campanha. Há ainda alguns jogadores turcos mais rodados, como o goleiro Mert Günok e o volante Mehmet Topal – Ardan Turan, outro presente no elenco durante o primeiro turno, retornaria ao Barcelona em janeiro, antes de ser dispensado pelos blaugranas.

Vale mencionar também alguns jogadores mais jovens que despontam em Istambul. Aos 25 anos, o meio-campista Irfan Can Kahveci é uma das referências da equipe desde 2017 e costuma defender a seleção turca. Já na atual temporada, Enzo Crivelli e Fredirk Gulbrandsen foram adições interessantes ao ataque. O técnico Okan Buruk, de 46 anos, também faz parte desta nova safra. Meio-campista do Galatasaray multicampeão na virada do século e reserva da seleção na Copa de 2002, aposentou-se como jogador do Istambul BB em 2010. Assistente-técnico da seleção entre 2011 e 2013, passaria por diversas equipes médias da Süper Lig até assumir os Laranjas nesta temporada e cumprir seu objetivo logo de cara.

Três brasileiros participaram da conquista do Basaksehir. O mais importante deles foi o lateral direito Júnior Caiçara, titular absoluto da equipe. O veterano de 31 anos é o segundo com mais minutos em campo nesta campanha e contribuiu com cinco assistências. Protagonista em outras temporadas, Márcio Mossoró fez as malas ao Götzepe, mas ainda participou de um compromisso. Já o atacante Robinho, condenado pela justiça italiana por estupro e só impune na Turquia pela falta de um acordo de extradição entre os dois países, foi reserva. Participou de 15 jogos, em 12 deles saindo do banco, e sequer balançou as redes.

Com este título, o Basaksehir se torna apenas o sexto time a conquistar o Campeonato Turco na história da competição. Além do trio de ferro (Besiktas, Fenerbahçe, Galatasaray) e do Trabzonspor, o Bursaspor tinha sido a exceção ao romper a hegemonia com o troféu de 2009/10. E não é difícil imaginar os Laranjas nadando de braçada nas próximas temporadas. A Champions se transforma em mais uma fonte de receita. Com a exposição no torneio continental, Erdogan pode aumentar os investimentos em seu projeto e usar o clube como uma ferramenta de propaganda política graças às boas campanhas além das fronteiras. Não seria surpreendente ver “amigos do presidente”, como Mesut Özil, vestindo a camisa laranja. Como se não bastasse, os principais concorrentes na Süper Lig atravessam momentos de crise, depois de anos dando passos maiores que as pernas e realizando gastos altos. Considerando o cenário da pandemia, talvez o trio de ferro leve um tempo maior para recuperar sua competitividade.

O maior desafio do Basaksehir nem é se estabelecer como um campeão dominante na Turquia. É criar uma identidade. Por toda a sua ligação política, os Laranjas costumam ser mal vistos pelos torcedores no país. Até pelo controle excessivo do governo sobre as arquibancadas, numa extensão de sua política autoritária, Erdogan se tornou um inimigo em comum de várias grandes torcidas – que passaram a boicotar os jogos da Süper Lig a partir de meados da última década e até mesmo organizaram protestos na Praça Taksim. Por mais que o Basaksehir seja um clube em crescimento e possa protagonizar boas campanhas nos torneios continentais, talvez não se torne o segundo time da população de Istambul.

O público do Basaksehir se concentra sobre o seu bairro. Até existe uma parcela de torcedores que abraça a equipe para se “afastar da violência vista entre os ultras do trio de ferro”, no que soa mais como uma versão turca do processo de arenização. Fato é que, com uma média de público que não passou dos 2,2 mil pagantes nesta temporada da Süper Lig e só superou os 4 mil presentes no Estádio Fatih Terim contra os grandes, o clube está distante de representar um projeto sustentável além do governo. Somente na Liga Europa é que a torcida superou a metade da ocupação nas arquibancadas, com recorde aos 12,8 mil espectadores diante da Roma na fase de grupos. Ainda assim, pouco às expectativas criadas, sem que os outros dois compromissos pelo Grupo J ou mesmo os 16-avos de final batessem os 6 mil torcedores.

Resta saber se as conquistas se reverterão em mais gente apoiando o time. Por inúmeras experiências anteriores de agremiações artificiais escoradas por governos autoritários, do Dynamo Berlim ao Al-Rasheed Bagdá, a história joga contra o Basaksehir. E isso pesa ainda mais em um país como a Turquia, no qual o fanatismo pelos clubes está tão enraizado na sociedade e na cultura. Se Erdogan pôde criar um novo centro na cidade de Istambul, não será tão simples provocar o mesmo efeito no futebol e suprimir a tradição do trio de ferro, especialmente quando se pensa nas arquibancadas.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
Botão Voltar ao topo