Há 70 anos, o futebol vivia o seu Jogo do Século: Inglaterra 3×6 Hungria
A Hungria viveu seu ápice com um verdadeiro show dentro de Wembley, num jogo com ares lendários à história do futebol
Texto originalmente publicado em novembro de 2013
O dia 25 de novembro de 1953 não marcou apenas a vitória por 6 a 3 da Hungria sobre a Inglaterra em Wembley. Aquele resultado se tornou um dos maiores jogos de todos os tempos, talvez o maior amistoso já realizado em 160 anos de futebol. Cem mil testemunhas tiveram a honra de presenciar o triunfo mais categórico dos Mágicos Magiares, uma seleção eternamente marcada pela derrota na final da Copa de 1954. Também, o fim da invencibilidade dos ingleses, que nunca tinham perdido em casa para times de fora do Reino Unido.
A grandiosidade daquele confronto já era pressentida antes mesmo do pontapé inicial. Tanto era que a imprensa britânica e a húngara tratavam o duelo como a ‘Partida do Século’. A Hungria era a atual campeã olímpica, dona de uma sequência incrível nos anos anteriores. Os ingleses, montados em sua prepotência de criadores do futebol, ainda mantinham a reputação, apesar do vexame na Copa de 1950. E o placar acabou fazendo justiça à revolução promovida por Ferenc Puskás, Gustav Sebes e os outros gênios daquela geração de ouro.
A preparação dos magiares
A Hungria tinha noções totais do tamanho daquele jogo. Sabia que a vitória poderia eternizá-la. A seleção vinha em uma crescente notável desde o início da década. A última derrota do time tinha acontecido em maio de 1950, contra a Áustria. Desde então, eram 23 partidas sem perder. Vinte vitórias e 102 gols marcados. Neste intervalo, os húngaros conquistaram a medalha de ouro nas Olimpíadas de 1952, em que o amadorismo dos Jogos dava a brecha para o esquadrão. Também bateram a Itália por 3 a 0 na inauguração do Estádio Olímpico de Roma.
A preparação para o duelo em Wembley começara semanas antes. O técnico Gustav Sebes foi até Wembley assistir ao empate por 4 a 4 entre Inglaterra e Resto da Europa. Calçou as chuteiras e entrou em campo, para conhecer o gramado do estádio londrino. Além disso, pediu réplicas da bola que seria usada no amistoso. Na volta a Budapeste, o técnico encontrou um campo parecido com o de Wembley e os húngaros passaram a treinar três vezes por semana, contra times que imitavam o estilo da seleção inglesa.
Mais do que isso, Sebes conseguiu criar grande motivação no grupo para aquele jogo. Durante a boa fase, o elenco registrou alguns episódios de indisciplina na concentração, com Budai, Czibor e Kocsis saindo às vésperas de amistosos anteriores. Algo contornado pelo comandante na base da conversa. “Disse que queria que eles jogassem em Wembley. Que, se vencêssemos a Inglaterra, nossos nomes se tornariam lendários. Eles prometeram mudar e dar o melhor de si. Desse dia em diante eu só pensava em uma coisa: o jogo em Wembley”, declarou Sebes, em depoimento presente no livro ‘Felicidade e Decepção’.
Os húngaros ficaram tão obcecados com aquele jogo contra a Inglaterra que se esqueceram de se preparar para pegar a Suécia, dez dias antes. O amistoso contou com uma atuação muito abaixo da média dos magiares, que cederam o empate por 2 a 2 nos minutos finais. Sofreram duras críticas dos torcedores e da imprensa. Em compensação, o resultado também acabou sendo útil, à medida que ludibriou os olheiros ingleses que foram observar o jogo.
A revolução tática de Sebes
As críticas também serviram para mexer com os brios dos húngaros. “Fomos crucificados pela imprensa. Só familiares e amigos vieram se despedir de nós na estação em nossa ida a Londres. Minha mente voltou ao último jogo da Hungria contra a Inglaterra em 1936, quando perdemos de 6 a 2. Repassei os erros que havíamos cometido naquele jogo e decidi que isso não se repetiria”, avaliou Sebes. No caminho à Inglaterra, os magiares pararam na França. A goleada por 13 a 0 no jogo-treino contra o time da fábrica da Renault, quando foram ovacionados de pé, serviu para restaurar a confiança do elenco.
Ao lado da vontade, a preparação tática fez a diferença para a Hungria. “Sebes sabia que os ingleses eram especialmente resolutos na defesa, de forma que procurou algo a perturbá-los taticamente. Foi por isso que jogamos daquela maneira. Era uma entre várias das opções que poderíamos ter usado”, contou Puskás, em entrevista ao livro ‘Puskás, uma lenda do futebol’. Enquanto isso, os ingleses nem de longe sabiam o que teriam pela frente. Além da pouca observação, confiavam no próprio taco, no estilo que sempre se manteve supremo na ilha.
Nándor Hidegkuti era a chave para desorganizar a Inglaterra. Reserva de Péter Palotás durante as Olimpíadas, o centroavante tinha conquistado a posição por sua inteligência tática. Não era o camisa 9, como seu número às costas sugeria. Hidegkuti recuava e puxava a marcação dos defensores adversários, abrindo espaços para os outros quatro homens de frente. Mais atrás, József Bozsik ganhava liberdade entre os cabeças de área, com passe livre para avançar à intermediária e atacar. A revolução tática que transformava o 3-2-2-3, o famoso ‘WM’ que servia de esquema padrão na época, em 4-2-4.
A diferença visível em campo
Obviamente, diante de tamanha pressão, os húngaros seguiram a Wembley horas antes do jogo bastante tensos. O elenco só conhecia os jogadores ingleses por informações dadas pela embaixada húngara pouco antes do duelo. “Dava para sentir o medo e a preocupação entre nós, e o peso imenso da responsabilidade. O futebol inglês era o melhor do mundo. Acho que qualquer um ficaria temeroso”, relatou o goleiro Gyula Grosics à BBC.
O clima pesado, entretanto, mudou assim que os magiares entraram em campo. Antes do pontapé inicial, os visitantes começaram a fazer embaixadinhas diante dos milhares que os olhavam. Era o início do show. Com menos de um minuto, o placar já estava aberto para a Seleção de Ouro, em um golaço de Hidegkuti da entrada da área.
A diferença tática era evidente. Enquanto os ingleses se fechavam na defesa e abusavam do famoso ‘chuta e corre’, os húngaros tratavam a bola com carinho. Passes a média e curta distância, movimentação intensa. Participação ativa de Czibor e Budai nas pontas, voltando para construir as jogadas e avançando até a linha de fundo. “Os húngaros combinavam dois estilos: o inglês, na velocidade da execução, e o sul-americano, com a troca de passes e a infiltração. Foi algo imaginativo combinar o controle da bola, a agilidade nos movimentos e a visão de um estilo de futebol tão inovador quanto produtivo. Muito antes do apito final, a glória do nosso passado futebolístico tinha sido enterrada”, comentou Sir Stanley Matthews, lendário ponta direita que estava em campo naquela ocasião.
Diante do massacre do time de Sebes, o placar só não foi ampliado porque o árbitro Leo Horn anulou de maneira bisonha um tento de Hidegkuti. Pouco depois, aos 13 minutos, Jackie Sewell buscou o empate em um contra-ataque. Nada que abalasse a Hungria. Aos 20, Hidegkuti já dava a dianteira aos húngaros novamente.
O Major Galopante
Se o camisa 9 era o melhor exemplo da aplicação tática dos Mágicos Magiares, não havia outro jogador que engrandecesse mais a técnica daquele esquadrão do que Puskás. E seu espetáculo particular começou a partir dos 24 minutos, com um gol sensacional. Com um drible curto, o Major Galopante deixou no chão o capitão Billy Wright, que anos depois se tornaria o primeiro jogador da história com 100 partidas por uma seleção nacional. Fuzilou com a inapelável perna esquerda, fazendo 3 a 1 no marcador.
“Acho que foi meu gol favorito em toda a carreira. Todo mundo pensou que fosse uma jogada bem ensaiada de minha parte, mas não foi. Não sei realmente de onde veio aquele gol. O corte era algo que eu costumava fazer quando criança, mas nunca pratiquei. Era instintivo. Meu futebol não era cheio de truques fantasiosos, gostava de soluções simples”, comentou Puskás. Uma visão complementada por Wright: “O incomparável Puskás apareceu na minha frente com a bola. Nove em dez vezes aquela jogada teria me dado a posse. Mas essa era a décima vez e meu adversário era o Puskás”.
Três minutos depois, o camisa 10 anotaria mais um, desviando falta cobrada por Bozsik. Breve pausa no show para o tento de de Stan Mortensen. Na volta do segundo tempo, todavia, a Hungria foi ainda mais contundente. Após outra jogadaça de Puskás, Sándor Kocsis cabeceou na trave e Bozsik soltou a bomba da entrada da área na continuação. Logo na sequência, o Major Galopante dominou com a direita e, sem pulo, deu um lindo lançamento no único espaço vazio da área, onde Hidegkuti apareceu para fazer seu terceiro gol. Tinham se passado 53 minutos e a partida estava acabada, 6 a 2 para os visitantes.
A partir daquele momento, o jogo se tornou apenas protocolar. Nem a torcida inglesa se importava mais com a humilhação. “Vimos a demonstração futebolística mais magnífica de todos os tempos. Foi extraordinário. Depois que eles marcaram o quarto gol, não nos importávamos mais se a Inglaterra diminuiria, os húngaros eram bons demais. É algo que vou lembrar por toda a vida”, relembra David Barr, um dos 100 mil presente nas arquibancadas do Wembley. Os ingleses se esforçavam para não fazer feio. Só conseguiram mais um gol, em pênalti cobrado por Alf Ramsey. Fim de jogo: com 35 chutes a gol contra cinco, Hungria 6 a 3. O placar era até confortável diante do baile que a Inglaterra havia tomado.
A volta triunfal à Hungria, orgulhosa de si
A estupefação depois daquela goleada era natural. Stanley Rous, presidente da Football Association e futuro mandatário da Fifa, chegou a oferecer dinheiro aos magiares, o que foi recusado por Gustav Sebes. Na Inglaterra, as pessoas nas ruas os saudavam. Na França, onde o time fez escala novamente na volta para casa, 10 mil se amontoavam em um estádio com capacidade para 5 mil em um amistoso da seleção, enquanto outros 10 mil estavam do lado de fora.
E era óbvio que a recepção aos heróis seria gigantesca na Hungria. Durante a partida, as ruas de Budapeste ficaram praticamente desertas. Os horários dos turnos nas fábricas foram modificados para que a população ouvisse o jogo. E, antes do apito final, 8 mil telegramas de congratulações já tinham sido enviados à equipe. Assim, quando o trem do retorno dos jogadores passava, milhares se alinhavam ao redor das linhas férreas em continência. Cerca de 100 mil receberam os ídolos em Budapeste.
Vale ressaltar ainda que o triunfo teve papel importante no contexto político do país. “Para entender o que a vitória representava para o povo húngaro, é preciso compreender o que havia acontecido na Hungria a partir de 1949. Vivíamos sob um regime bastante radical, que usava muitas armas, incluindo a intimidação, para impor sua visão. Isso incluía tentar solapar nossa identidade nacional e pessoal. Paradoxalmente, o Estado era muito enfático no que se referia a fomentar o esporte para propagar o sucesso do sistema comunista. Por ironia, nossas vitórias possibilitaram que 10 milhões de húngaros recobrassem e celebrassem sua ‘hungaridade’. Enquanto as autoridades tentavam monopolizar nosso sucesso para seus próprios fins, a massa popular foi liberada pelos 90 minutos de futebol: eles sabiam de onde eram, e sabiam que sua alma era húngara ”, analisou Grosics, anos depois.
A influência sobre os ingleses e a queda da Hungria
Já na Inglaterra, o resultado provocou um movimento de reflexão. Era a prova definitiva de que precisavam parar de olhar apenas para o próprio nariz, aprender com o jogo de outras partes do mundo. O show da Hungria acabou influenciando vários técnicos que marcaram época nos anos seguintes, com Matt Busby, Don Revie e Alf Ramsey – que, do campo, teve a aula para montar a seleção inglesa campeã do mundo em 1966.
Seis meses depois, os ingleses pediram a revanche no recém-inaugurado Népstadion, em Budapeste. Ainda assim, não adiantou muito a lição de Wembley: 92 mil húngaros se deleitaram com os 7 a 1 aplicados pelos Mágicos Magiares. A desforra só viria em dezembro, quando o Wolverhampton venceu por 3 a 2 o Honvéd, base da seleção húngara, e se proclamou como campeão do mundo – em um jogo que seria o ponto de partida para a ideia criadora da atual Champions League.
Em compensação, os húngaros sofreriam seu maior baque. Logo depois dos 7 a 1, a equipe embarcou para a Suíça, rumo à Copa do Mundo. Um desempenho arrasador que se seguiu até as semifinais, deixando para trás Uruguai, Brasil, Coreia do Sul, Turquia. Porém, o desfecho que ficou para a história foi o Milagre de Berna, o título da Alemanha Ocidental. Os mesmos adversários engolidos por 8 a 3 na primeira fase que, por jogarem melhor, se adaptarem ao campo, “estarem dopados” ou qualquer outra explicação que tentem dar, venceram. Uma derrota que acabou tornando ainda mais especial aqueles 6 a 3 de Wembley, como maior exemplo da força dos Mágicos Magiares.
Abaixo, os melhores momentos do Jogo do Século: