Europa

Ildefons Lima encerra uma carreira de recorde: 26 anos com a seleção de Andorra

Ildefons Lima estreou pela seleção de Andorra aos 17 anos e se despediu nesta terça-feira, aos 43, mais da metade da vida dedicada à equipe nacional

Ildefons Lima é uma figura lendária do futebol de seleções, mesmo restrito a um ambiente modesto. O zagueiro defendeu a seleção principal de seu país durante 26 anos e três meses, um recorde histórico na modalidade entre os homens – e só comparável à brasileira Formiga entre as mulheres, na ativa por 26 anos e sete meses. O beque tinha apenas 17 anos quando fez sua estreia, contra a Estônia, logo com seu primeiro gol. E seguiu na ativa até esta Data Fifa, quando uma derrota para a Suíça marcou o ponto final de sua carreira internacional, aos 43 anos. Lima também é o atleta de seu país com mais partidas pela equipe nacional e, embora defensor, o maior artilheiro da nação. Tamanha longevidade e tais marcas expressivas talvez tenham se tornado possíveis apenas porque o veterano defendeu Andorra. Entretanto, tamanho gigantismo mesmo nesta pequenez também torna o zagueiro um gigante.

A fama de Ildefons Lima pode não ser tão grande, mas o andorrano possui uma coleção de itens históricos do futebol, de fazer inveja a qualquer um. São quase mil camisas de jogo, dezenas delas de seleções, acumuladas ao longo de uma vida. Possui pérolas de quem enfrentou o Brasil de Ronaldo e Bebeto num dos seus primeiros compromissos, enquanto encarou a Inglaterra de Jude Bellingham e Bukayo Saka num dos últimos. A camisa 6 de Andorra, com méritos, também faz parte do Museu da Fifa desde 2022.

Lima chegou a receber inclusive uma placa do Guinness Book, por seu recorde de tempo entre a primeira e a última convocação – numa marca inédita estabelecida ainda em 2019, quando tinha “só” 22 anos de serviços prestados, então superando o equatoriano Iván Hurtado. Para se ter uma ideia da façanha: Cristiano Ronaldo, primeiro jogador a alcançar os 200 jogos por uma seleção, ainda teria que atuar até novembro de 2029 por Portugal se quisesse superar o recorde de Ildefons.

A última Data Fifa de Ildefons Lima concedeu o privilégio de duas despedidas para o zagueiro. Primeiro aconteceu em casa, contra Belarus, em seu último compromisso no território andorrano. O beque entrou apenas no minuto final, para ser aplaudidíssimo pelos compatriotas no empate por 0 a 0. Anedoticamente, Lima substituiu o garoto Berto Rosas, de apenas 21 anos, que nasceu quando o beque já era rodado na seleção. Por fim, nesta terça-feira, o último duelo oficial aconteceu na derrota por 3 a 0 para a Suíça, fora de casa. O camisa 6 entrou como titular e com a braçadeira de capitão. Permaneceu em campo durante 23 minutos, antes de ser substituído rumo à eternidade.

“Foi um dia muito especial. Tudo o que vivi durante a semana, com muitos vídeos, com muitas fotografias, com o hino. Sentir muitíssima emoção é normal, também pela gratidão das pessoas depois de tantos anos representando um país. Você se sente muito orgulhoso da carreira que viveu. Sinto muita satisfação por poder me despedir com um grande ambiente. É uma sensação muito bonita. Minha família inteira veio, depois de me apoiar por tantos anos. Passei por momentos muito duros, já que queria me despedir em campo, mas consegui meu objetivo. Guardarei a camisa e a bola num lugar especial, assim como a camisa de Xhaka e sua braçadeira de capitão”, declarou Ildefons Lima, depois da partida, ressaltando ainda o carinho pela Suíça, onde passou uma parte de sua carreira profissional e onde nasceu uma de suas filhas.

Os 26 anos de seleção

Ildefons Lima nasceu em Barcelona, expressando a influência enorme da Catalunha sobre a vizinha Andorra. O garoto, filho de pai andaluz com mãe catalã, se mudou para Andorra la Vella quando tinha dois meses. Virou o símbolo de uma nação diminuta, de apenas 81,5 mil habitantes e um reconhecimento internacional que tantas vezes está atrelado às goleadas sofridas por sua seleção. Ao longo desses 26 anos, ao menos, Lima conseguiu viver também momentos especiais em suas 137 aparições com a equipe nacional. Sua história na seleção se confunde com a própria história da seleção de Andorra, fundada em 1994 e admitida pela Fifa a partir de 1996. Curiosamente, foi apenas com 20 anos que o defensor, de fato, recebeu a cidadania andorrana, dependendo antes de uma permissão especial da Fifa para jogar.

A maior inspiração de Ildefons Lima estava dentro de casa: seu irmão Toni Lima, nove anos mais velho e também futebolista profissional. “Em casa eu tinha o exemplo do meu irmão mais velho. Comecei seguindo ele e viajando com ele. Eu era muito pequeno, então ele me levava junto. Eu tinha esse exemplo e queria imitá-lo. Quando você não nasce para o futebol, o trabalho te ajuda. Há muitos futebolistas que, graças ao trabalho, chegam a objetivos que não poderiam chegar só por suas qualidades”, declarou Ildefons, ao canal Movistar+, em 2017. No fim das contas, os irmãos Lima disputaram mais de 50 partidas juntos pela seleção.

A lista de derrotas de Ildefons Lima em seus primeiros anos de seleção possui momentos honrosos. Sim, honrosos. Primeiro, pelo gol de estreia contra a Estônia, o único na goleada por 4 a 1 dos adversários. Depois, pelos 3 a 0 que sofreu do Brasil às vésperas da Copa do Mundo de 1998, em que o garoto de 18 anos recém-completados pôde encarar Ronaldo em sua fase mais fenomenal. Anos depois, Ildefons citou o camisa 9 como o adversário mais difícil que encarou na carreira, num jogo importante para que ele “perdesse o medo”. Como relembrou à BBC: “Eu joguei com Ronaldo no PlayStation semanas antes e, depois, o enfrentei em campo. Foi incrível”. Mesmo as derrotas podiam ser triunfais, como quando a França campeã do mundo suou demais para arrancar o 1 a 0 dos andorranos em 1999, pelo qualificatório da Euro 2000 – que os Bleus também venceriam.

Foram três anos para que Ildefons Lima desfrutasse de sua primeira vitória por Andorra, em 2000, nos 2 a 0 contra Belarus em amistoso. Voltou a comemorar dois anos depois, com os 2 a 0 sobre a Albânia em outro amistoso. Quando o time finalmente ganhou um jogo oficial, porém, o beque estava suspenso. Era ausência no 1 a 0 sobre a Macedônia do Norte nas Eliminatórias da Copa de 2006, o primeiro triunfo dos andorranos numa partida competitiva. O camisa 6 virou capitão e passou a acumular recordes, além de experimentar outros momentos especiais – como a despedida de seu irmão mais velho da seleção, em 2009, em pleno Wembley num encontro com a Inglaterra. Todavia, foi bem depois que a primeira vitória oficial de Ildefons aconteceu com ele dentro de campo.

Andorra antes quebrou a sequência de 13 anos sem ganhar uma partida sequer em 2017, quando bateu San Marino em amistoso. Ildefons Lima anotou um dos gols. Quatro meses depois, viria o primeiro triunfo do beque num jogo oficial. E não foi um resultado qualquer, com o 1 a 0 sobre a Hungria nas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018. O veterano completaria 20 anos de seleção naquele mesmo mês, quando desfrutou de seu grande prêmio. Chegou a chorar em campo. Era um momento de expressa evolução de Andorra, que fez jogo duro contra Portugal naquele mesmo qualificatório, ao perder por só 2 a 0.

A segunda vitória competitiva de Ildefons Lima por Andorra aconteceu em outubro de 2019, contra Moldova, nas eliminatórias da Euro 2020. Era o ano em que o beque também se tornava recordista em tempo ativo por uma seleção nacional. A braçadeira de capitão era sua, enquanto os andorranos passavam a vender mais caros os resultados. A Liga das Nações também foi uma boa pedida ao país. Mesmo que Andorra não tenha brigado seriamente pelo acesso, passou a melhorar a partir dos duelos contra times de seu nível e até subiu nos potes dos sorteios da Uefa.

Em 2020, Ildefons Lima ainda se transformou em símbolo da luta do futebol contra a covid-19. Como presidente da associação de jogadores de Andorra, o veterano se posicionou publicamente contra a volta do futebol em meio à pandemia, por avaliar que os protocolos sanitários locais eram insuficientes. O beque acabou suspenso pela federação e vetado temporariamente da seleção, mesmo contra a vontade do técnico Koldo Álvarez – antigo goleiro da equipe nacional e companheiro histórico de Lima. O episódio levou à intervenção da FIFPro, a associação internacional de futebolistas profissionais, até que as restrições arbitrárias contra o capitão andorrano fossem retiradas.

O profissionalismo de Ildefons Lima, afinal, também sempre foi uma marca. “Venho jogando há 23 anos e ainda sinto as mesmas coisas que eu sentia antes do primeiro jogo. Outros jogadores me disseram que haveria um momento em que você não sente mais nada. Mas, atualmente, eu ainda sinto tudo de novo. Eu cuido de mim. Eu treino, eu durmo, eu como bem. Você precisa fazer todas essas coisas. Felizmente, nunca sofri grandes lesões. Acho que isso é algo grande que te ajuda. Tudo fica mais difícil com a idade, mas você pode conseguir se puder se cuidar. Eu curto jogar pela seleção. É uma motivação”, declarou em 2020, à BBC.

Durante os últimos anos, as aparições de Ildefons Lima pela seleção se tornaram mais esporádicas. Chegou a enfrentar a Inglaterra duas vezes nas Eliminatórias da Copa de 2022 e até voltou a vencer, num triunfo sobre Liechtenstein pela Liga das Nações de 2022/23. Entretanto, a idade pesava mesmo para uma lenda. Aos 43 anos, o beque ainda constou nas convocações das Datas Fifa de junho e agora de setembro de 2023. Desta vez, para o seu ato final com a camisa 6 andorrana. Diante de uma história tão singular, a homenagem era imperativa. Ildefons Lima é a personificação da equipe nacional.

“Do que sinto mais orgulho como andorrano? De poder representar meu país e lutar contra gigantes deste esporte. Somos pequenos e o feito de que às vezes você dê trabalho a equipes grandes ou faça partidas muito boas contra seleções importantes, como temos feito ao longo de nossa história, te enche de orgulho. Somos pequenos e por isso me identifico com as equipes menores que conseguem grandes feitos”, comentou Lima, à revista Panenka, em 2019. “De início você pensa que a primeira divisão é o máximo, mas, ao ter o privilégio de jogar na seleção, vê de outra maneira, porque isso está acima. Eu tinha mais obsessão por jogar em outros países com a seleção do que chegar à elite espanhola”.

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A história por clubes

Ildefons Lima ainda possui uma carreira razoável por clubes. O zagueiro começou no FC Andorra, clube administrado atualmente por Gerard Piqué e principal força local. Passaria também em seus primórdios por Espanyol B, além de se aventurar na Grécia e no México. Contudo, foram nas divisões de acesso do Campeonato Espanhol que sua carreira realmente deslanchou, a partir de 2002. Lima ganhou maior reconhecimento no Las Palmas e no Rayo Vallecano. Depois, também passou pela Serie B italiana com a Triestina, enquanto ainda se provou no Campeonato Suíço com o Bellinzona. Não é um currículo recheado, mas mantinha seu nível para seguir como figura onipresente na seleção andorrana.

Desde 2014, Ildefons Lima optou por retornar ao Campeonato Andorrano. E o zagueiro também faria história na liga local. Foram quatro títulos em quatro anos pelo FC Santa Coloma. Graças ao clube, o veterano também se tornou uma figurinha carimbada nas fases iniciais da Champions League – embora sem ter vida longa no torneio. Em 2018, Lima se transferiu ao Inter Club d'Escaldes. Viveria uma nova hegemonia, com um tricampeonato pela equipe que nunca tinha vencido a primeira divisão até então. Mais uma vez, a Champions voltava a pintar entre os compromissos do veterano. Também apareceu em jogos da Liga Europa e da Conference, com sua despedida dos torneios continentais aos 42 anos.

Já na temporada passada, Ildefons Lima se transferiu de volta ao FC Andorra. Retornava para o clube onde tinha iniciado a carreira, para transmitir sua experiência num novo projeto. Diante do investimento recente, não surpreenderá se os andorranos pintarem em breve na primeira divisão do Campeonato Espanhol – o clube mais antigo de Andorra disputa a liga vizinha desde os anos 1960. Lima integra o time B do FC Andorra, mas com uma bagagem que pode contribuir bastante aos mais novos. Iniciou sua formação como treinador anos atrás e seu intuito é exatamente o de preparar os mais jovens.

“Acho que, com a minha experiência, posso auxiliar os jogadores mais novos. Os atletas andorranos por vezes não sabem certas coisas e estou tentando fazer o meu melhor. Temos muitas coisas a fazer em Andorra e gostaria de que crescêssemos como país no futebol. Sinto que, com minha experiência, dentro e fora de campo, posso ajudar Andorra a fazer isso”, refletiria Ildefons Lima, em 2020.

O tamanho de Ildefons Lima

Ildefons Lima ainda tem alguns companheiros em seu encalço pelo recorde de mais partidas pela seleção de Andorra. O meio-campista Márcio Vieira, de origem portuguesa, tem 123 partidas aos 38 anos. Já o meio-campista Marc Pujol contabiliza 109 aparições aos 41 anos. Difícil é alguém se manter na estrada por tanto tempo quanto Lima. Exceção feita a 2006 e 2020, o beque disputou partidas em quase todos os anos desde que estreou pela equipe nacional em 1997. Seus 137 jogos estão muito bem distribuídos.

Já o recorde de gols de Ildefons Lima é ainda mais expressivo, ainda mais sendo um zagueiro. A longevidade auxilia os 11 gols em 137 partidas pela equipe nacional, mas também sua capacidade de apoio no jogo aéreo e a firmeza nos pênaltis. Não à toa, o beque possui a terceira melhor média de gols no Top 10 dos artilheiros de Andorra. Mas não que isso signifique números tão dilatados: nenhum outro atleta sequer passa dos seis gols, com a vice-liderança na lista histórica para os cinco tentos de Cristian Martínez e Marc Vales. O que pode acelerar os passos dos mais jovens é a atual estrutura da Liga das Nações. O supracitado Berto Rosas, aos 21 anos, já anotou quatro gols desde sua estreia em 2021. O atacante pertencente ao FC Andorra e emprestado ao Betis B talvez seja o maior herdeiro de Lima em busca dos feitos.

E o passado de Ildefons Lima ainda o coloca numa seleta lista de lendas das seleções nanicas da Europa. Nomes como Mario Frick (Liechtenstein), Michael Mifsud (Malta) e Andy Selva (San Marino) se eternizaram por fazerem muito com pouco. Lima consegue se colocar num patamar diferente por fazer história nesse pouquíssimo. Está na prateleira desses heróis de pequenas nações, mas também com um lugar no Livro dos Recordes, acima de qualquer outro jogador de seleções – tantos deles mais famosos e reconhecidos que o andorrano. Ninguém com a mesma perseverança na caminhada.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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