Eurocopa 2024

A história de Joan Gamper, o craque e entusiasta dos esportes que transformou o futebol na Suíça e na Espanha

Além de ter sido o fundador do Barcelona, Gamper também criou outros clubes na Suíça e foi um grande esportista

A história do futebol espanhol está irremediavelmente ligada à Suíça. E permanecerá assim para sempre, graças a Hans Max Gamper-Haessing. O suíço era um genuíno apaixonado por futebol desde sua juventude. Mais do que jogar, ele incentivava a popularização do esporte – tanto é que fundou diferentes times na Suíça. Dois dos maiores campeões nacionais, o Zürich e o Basel tiveram a participação do fanático em seus primórdios. E depois de se mudar à Catalunha, adotando o nome de Joan Gamper, o atacante idealizaria seu filho mais ilustre, o Barcelona. Um laço eterno entre as seleções que se enfrentam nesta Euro 2020.

Nascido numa pequena cidade no interior da Suíça em 1877, Gamper mudou-se ainda na infância para Zurique, após a morte de sua mãe. O garoto iniciou sua vida como comerciante, mas era no esporte que realmente se encontrava. Praticava atletismo, ciclismo, tênis, golfe e outras tantas modalidades. Porém, seria o futebol a sua maior paixão. E não só dele, em tempos nos quais a modalidade impulsionada pelos britânicos costumava se disseminar principalmente entre as elites da Europa Central. Gamper teria um papel importante nesse processo.

Gamper atuava por clubes locais nos primórdios do futebol suíço. Sua primeira equipe era o Excelsior Zürich, um time que vestia camisa vermelha e azul – cores estas que logo se espalhariam por seu caminho no esporte. Antes de deixar Zurique, porém, o jovem de 19 anos fundaria um dos principais clubes locais: o FC Zürich. O novo time surgiu a partir da fusão entre o Turicum e o Excelsior, em 1896. Gamper teve seu papel no processo de formalização da nova equipe e também seria o seu primeiro capitão, estrelando o ataque celeste. Ainda conseguia ir além, incentivando outras modalidades e organizando competições. Nesta virada do século, inclusive estabeleceu os recordes nacionais nas provas de atletismo de 800m e 1600m.

Até por sua ocupação como comerciante, Gamper costumava viajar bastante. Sem uma grande regulamentação no futebol local, os jogadores podiam defender equipes de outras cidades. E mesmo na estrada Gamper não conseguia largar a bola. Em sua cidade natal, idealizou o FC Winterthur. Já na Basileia, costumava vestir a camisa do Basel, criado pouco antes, em 1893. O entusiasta chegou inclusive a usar a braçadeira de capitão durante um período em que morou em Basel. Por lá, fortaleceu ainda mais sua identidade com o azul e o vermelho.

Hans Gamper morou ainda um tempo em Lyon. Por lá, não chegou a influenciar mais um clube azul e vermelho, mas praticou rúgbi. O ano que mudaria sua vida, de qualquer maneira, seria 1899. O rapaz de 22 anos viajou à Espanha para visitar seu tio em Barcelona e gostou tanto da cidade que resolveu ficar. Conseguiu empregos num banco e na companhia ferroviária como contador, assim como escrevia a jornais esportivos da Suíça. Todavia, para a adaptação ser completa na Catalunha, faltava também um time de futebol. Poucos meses depois, o novo morador da região tirou sua ideia do papel.

Gamper publicaria uma revista em Barcelona chamada Los Deportes. Seria uma maneira de manter sua ligação com diferentes modalidades. De maneira até despretensiosa, publicou um anúncio no periódico. Nascia ali o Football Club Barcelona. “Nosso amigo e companheiro Sr. Hans Gamper, da seção de futebol da ‘Sociedad Los Deportes' e antigo campeão suíço, desejoso de poder organizar algumas partidas aqui em Barcelona, roga a quantos aficionados pelo referido esporte que se sirvam de entrar em contato com ele, dignando-se ao efeito de passar por essa redação nas terças e sextas pela noite, das nove às onze”, dizia o anúncio, que lançou a pedra fundamental do Barça.

Pouco mais de um mês depois, em novembro de 1899, o Barcelona foi fundado oficialmente. Além de espanhóis, imigrantes suíços e britânicos também participaram da ideia. O blaugrana estava na nova camisa, relembrando os tempos de Gamper no Excelsior e no Basel. E ele seria também o primeiro capitão barcelonista, enquanto conciliava um cargo na diretoria. Mais do que fundador, Gamper também se tornou o primeiro grande craque do Barça. Em tempos incipientes do futebol na Espanha, o suíço anotou 120 gols em 51 partidas. E também estava presente nos primeiros feitos culés.

Em 1902, o Barcelona conquistou seu primeiro troféu, a Copa Macaya, que reunia os principais clubes da Catalunha. Graças à taça, os campeões foram convidados a disputar a Copa de la Coronación, torneio que comemorava a coroação de Alfonso XIII como novo rei da Espanha. Os blaugranas golearam o Real Madrid (então chamado apenas de Madrid) na semifinal por 4 a 1, com direito a um gol de Joan Gamper. Já na decisão, a equipe deixou o título escapar diante do Bizcaya, que reunia jogadores de Athletic Bilbao e Bilbao FC. Gamper usou a braçadeira de capitão naquele jogo simbólico, estrelado a equipe ao lado de outros companheiros de origem espanhola, suíça e alemã. A Copa de la Coronación marcaria a gênese da Copa do Rei em 1903.

Depois de pendurar as chuteiras em 1903, Joan Gamper virou o presidente do Barcelona a partir de 1908. A aposentadoria de sua geração provocou dificuldades aos blaugranas, que correram riscos até mesmo de fechar as portas. O comerciante conseguiria contornar os problemas em suas diferentes passagens pela cadeira principal. Foi sob a gestão de Joan Gamper que o Barça construiu seu primeiro estádio e também o segundo, o famoso palco de Les Corts, que permaneceu como casa culé até o surgimento do Camp Nou. Ídolos como Ricardo Zamora, Josep Samitier e Paulino Alcántara foram contratados pelo presidente suíço. E os títulos naturalmente vieram, com sete conquistas da Copa do Rei de 1910 a 1925, no período intermitente em que o presidente permaneceu à frente da agremiação.

Com raízes fincadas na região, Joan Gamper também fomentou o orgulho catalão em sua agremiação. Bateu de frente com a ditadura de Primo de Rivera na década de 1920, reforçando os laços do Barcelona com a senyera, a bandeira catalã. O afastamento de Gamper da presidência aconteceu em 1925, por repressão da ditadura, depois de um jogo em que o hino espanhol foi vaiado pela torcida barcelonista. O dirigente precisou se exilar por quatro anos e, quando voltou à Catalunha, seria impedido de ocupar qualquer cargo no Barça. De longe, viu o time conquistar a edição inaugural do Campeonato Espanhol em 1929.

Gamper ainda perdeu seus direitos como sócio-fundador, o que representou uma decepção imensa. E, afundado em dívidas depois da quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929, o dirigente entrou numa espiral. Em decorrência dos problemas pessoais e financeiros, o suíço tirou a própria vida em julho de 1930, com apenas 52 anos. Não pode presenciar outros momentos de glória que o Barça experimentaria nos anos 1930, assim como era apenas uma lembrança do passado no período áureo da década de 1950. Não fosse um veto da ditadura franquista por ser estrangeiro e protestante, além de seu próprio catalanismo, Joan Gamper poderia ter dado nome ao Camp Nou em 1955. A grande obra do entusiasta por esportes, de qualquer maneira, prevalece mais de um século depois.

Além do sucesso no futebol, o Barcelona também possui outras tantas conquistas em diversas modalidades. E Joan Gamper segue conhecido por muita gente, através da disputa anual do troféu que leva seu nome, abrindo a temporada blaugrana nos gramados. Mais do que uma ponte entre Suíça e Espanha, o veterano é também um personagem fundamental para a expansão do futebol. A paixão que ele vivia na virada do século, afinal, seria compartilhada por milhões de pessoas décadas e décadas depois.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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