Europa

Estudo expõe o racismo nas transmissões de futebol em inglês em diversas ligas europeias

Em um ano que temos visto tantos protestos sobre o racismo, desencadeado pelo assassinato brutal de George Floyd nos Estados Unidos, mas repetido diariamente no mundo todo contra negros, um estudo mostra que o racismo está presente de forma consistente nas transmissões de futebol na Europa. Um estudo feito pela empresa dinamarquesa RunRepeat, em parceria com a Associação de Jogadores Profissionais da Inglaterra (Professional Footballer’s Association, PFA) mostrou que os comentaristas de TV elogiam jogadores com pele clara como mais inteligentes e esforçados do que aqueles de pele mais escura. E esse é só um dos aspectos que mostra um viés racista nos comentários.

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O estudo analisou mais de 2.073 falas de comentaristas de transmissões em inglês em 80 jogos da temporada 2019/20 de ligas como a Serie A, Ligue 1, La Liga e Premier League. Um total de 643 jogadores de várias etnias e tons de pele foram citados. Os resultados são bastante reveladores.

“As descobertas mostram um viés dos comentarias que elogiaram os jogadores de tom de pele mais claro como mais inteligentes, como sendo de melhor qualidade e que trabalham mais do que os jogadores com tom de pele mais escudo”, afirma o estudo. “Jogadores com tom de pele mais escura estavam significativamente mais propensos a serem reduzidos às suas características físicas ou habilidades atléticas – especificamente velocidade e força – do que jogadores com tom de pele mais claro”.

Os números são assustadores. Segundo o estudo, quando os comentaristas falam sobre inteligência, 62,6% dos elogios eram direcionados a jogadores de pele clara; enquanto 63,33% das críticas foram direcionadas aos jogadores com pele escura.

Quando os comentaristas estão falando sobre força, eles têm 6,59 vezes mais chances de falar sobre um jogador de pele escura. Quando estão falando sobre velocidade, eles têm 3,38% mais chance de falar sobre jogadores negros. Quando os comentaristas estão falando sobre ética do trabalho, 60,4% dos elogios são direcionados a jogadores com tom de pele mais clara.

Todos os comentários dos jogos foram transcritos para serem analisados. Para identificar o tom de pele do jogador, foi usada a base de dados do Football Manager 2020, que possui esse atributo e é mantida por uma rede de mais de 1.300 olheiros. O estudo olhou para a proporção de elogios e críticas para cada categoria para determinar as diferenças de como jogadores de diferentes tons de pele são tratados.

Como grupo de controle, os pesquisadores também analisaram os chamados “lances de jogo” (“in-game events”) para apoiar a teoria que a distribuição de adjetivos positivos ou negativos seria equivalente, porque não teria presença de viés por serem factuais. “Havia menos chance de viés nessa categoria, uma vez que ela é ‘considerada provavelmente factual, a menos que adjetivos adicionais que caracterizem um jogador sejam incluídos’. Eastman e Billings (2001)”, diz o relatório da pesquisa.

“Comentários como ‘Essa é uma boa bola para Rafael na segunda trave’ ou ‘não foi a melhor bola de Toni Kroos’ foram registrados como eventos de jogos positivos ou negativos”, explica ainda o estudo. E nesta categoria, mais factual, sem o viés, vemos que a distribuição de elogios e críticas é bastante equânime entre jogadores de pele clara em relação aos de pele escura. Nos elogios, 46,78% foram para jogadores de pele escura, com os outros 53,22% para os de pele clara, o que chega perto de um empate técnico. Nas críticas, um equilíbrio ainda maior: 50% para cada um.

“Quando os comentaristas disseram frases puramente factuais (eventos do jogo), os dois grupos receberam a mesma proporção de comentários e foram elogiados ou criticados na mesma quantidade”, relata a pesquisa. “A distribuição uniforme nesta categoria de controle (onde os comentaristas estão declarando fatos) é mais uma indicação de que existe um viés nas outras categorias (que são baseadas na opinião do comentarista) em que a distribuição e a divisão de elogios e acríticas parecem tão diferentes”.

“Para abordar o impacto real do racismo estrutural, precisamos reconhecer e abordar o viés racial. Este estudo mostra um viés evidente na maneira como descrevemos os atributos dos jogadores de futebol com base em sua cor de pele”, afirmou Jason Lee, executivo de igualdade da PFA.

“Os comentaristas ajudam a moldar a percepção que temos de cada jogador, aprofundando qualquer viés racial que já existe no espectador. É importante considerar o quão abrangente essas percepções podem ser e como elas afetam os jogadores de futebol, mesmo quando terminam sua carreira de jogador”, afirmou ainda Lee.

“Se um jogador tem aspirações de se tornar um técnico, é uma vantagem injusta dada aos jogadores que os comentaristas costumam chamar de inteligentes e esforçados, quando estas opiniões parecem resultar de preconceito racial?”, questiona ainda o dirigente da PFA.

O estudo cita um trabalho de Rada & Wulfemeyer, de 2005, que descreve esse tipo de viés racista. “Uma forma de viés racial que os pesquisadores consistentemente encontram é a descrição ‘músculos contra cérebros’ direcionado aos jogadores”.

“Quando os narradores se referem às qualidades ou atributos físicos de jogadores brancos, eles geralmente destacam dois fatores: a capacidade intelectual e cognitiva dos jogadores e uma forte ética de trabalho do tipo de colarinho azul”, diz ainda o texto de 2005. Colarinho azul é uma expressão usada para descrever trabalhadores manuais, ou de indústrias. É o oposto do colarinho branco, que são os trabalhadores de escritórios, trabalhos não-manuais.

A diferença fica muito clara quando se fala sobre as qualidades físicas de velocidade e força. O estudo diz que é raro que os comentaristas façam apontamentos negativos sobre a condição física de qualquer jogador nas principais ligas da Europa. Contudo, quando elogiam um jogador pela velocidade, 84,17% dos elogios são direcionados a jogadores de pele escura. Quando elogiam pela força, 86,76% dos comentários são direcionados aos jogadores de pele escura.

O texto de Rada & Wulfemeyer, de 2005, citado pela pesquisa, explica por que esse tipo de caracterização é um problema. “Retratar os afro-americanos como naturalmente atléticos ou agraciados com o atletismo dado por Deus reforça o estereótipo, criando a impressão de um atleta preguiçoso, que não precisa trabalhar em seu ofício”.

As frases de apoio ao “Black Lives Matter” são relevantes, mas é importante também adotar posturas antirracistas em todos os aspectos onde o racismo influencia. E como é algo estrutural, esse tipo de estudo nos ajuda a dar uma perspectiva muito melhor sobre o que está acontecendo. É preciso atacar as causas desse tipo de comentários, apontar e cobrar de quem os faz. O racismo está escondido em detalhes na maioria das vezes, mas é tão ou mais nocivo que os xingamentos de macaco, que ninguém questiona serem racistas. Vale para todos nós, que trabalhamos com futebol ou que o consumimos. Precisamos fazer melhor.

Foto de Felipe Lobo

Felipe Lobo

Formado em Comunicação e Multimeios na PUC-SP e Jornalismo pela USP, encontrou no jornalismo a melhor forma de unir duas paixões: futebol e escrever. Acha que é um grande técnico no Football Manager e se apaixonou por futebol italiano (Forza Inter!). Saiu da posição de leitor para trabalhar na Trivela em 2009, onde ficou até 2023.
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