O ato da torcida do Celtic em prol da Palestina expõe também um conflito com o próprio clube
A direção do Celtic condenou manifestações da torcida sobre a Causa Palestina e pediu um posicionamento neutro, mas a Green Brigade desafiou as solicitações e organizou um grande ato na Champions
Há duas semanas, o Celtic publicou um comunicado em que se contrapunha a manifestações dos torcedores em prol da Causa Palestina. O clube apontava que o posicionamento não representava a visão oficial e preferia se desassociar do conteúdo político, em meio à escalada dos conflitos no Oriente Médio. Nesta quarta-feira, o Celtic reiterou sua mensagem e orientou que os torcedores evitassem menções ao conflito. Nada feito. A Green Brigade, principal setor de ultras dos Bhoys, fez um mosaico com a bandeira da Palestina antes do empate por 2 a 2 contra o Atlético de Madrid. Além disso, dezenas de bandeiras foram exibidas pela torcida, e não apenas no setor da organizada, sobretudo enquanto os alviverdes cantavam “You'll Never Walk Alone”. Fica clara uma queda de braço entre a direção e os torcedores, que há anos apoiam os palestinos nas tribunas de Parkhead.
Desde o início da disputa com a Green Brigade, a diretoria do Celtic tenta dificultar o acesso dos ultras às arquibancadas. O grupo de torcedores foi banido das partidas fora de casa, sob justificativa de seu comportamento em alguns compromissos recentes do time como visitante. Além disso, o Celtic também proibiu que os membros da Green Brigade acessassem Parkhead antes do jogo contra o Atlético de Madrid, nesta quarta. Os ultras já tinham convocado uma manifestação em prol da Palestina há dias. E não foi a postura da administração do clube que impediu que o ato acontecesse.
“À medida que o genocídio dos palestinos se acelera, chamamos mais uma vez o apoio do Celtic para defender orgulhosamente o povo da Palestina. No dia 25 de outubro, contra o Atlético de Madrid, encorajamos todos os torcedores a hastear a bandeira nacional da Palestina. Este pequeno ato de solidariedade tem um significado grande para aqueles que estão atualmente sujeitos a bombardeios indiscriminados e sofrimento inimaginável, porque permite que eles saibam que não estão sozinhos”, tinha clamado anteriormente a Green Brigade, sobre o ato desta quarta-feira.
O Celtic tenta manter oficialmente uma postura neutra em relação ao conflito entre Israel e Palestina. Os jogadores alviverdes usaram uma braçadeira preta nesta quarta-feira, em sinal de luto às vítimas. Além disso, os alviverdes também anunciaram o apoio à Cruz Vermelha, em meio à atuação do organismo internacional na guerra. Até por isso, o clube solicitou que manifestações não ocorressem nesta quarta. Parte da torcida do Celtic, porém, possui sua visão política há décadas, sempre exibida nas arquibancadas. Não acatou o pedido do clube e levou as bandeiras palestinas.
A nota oficial do Celtic há duas semanas
“As faixas exibidas em uma seção do Celtic Park antes do jogo de sábado não representam a opinião do clube e nos dissociamos deles. Condenamos a exibição de tais mensagens no Celtic Park. O Celtic é um clube de futebol, não uma organização política. Um dos nossos valores fundamentais desde o princípio é sermos abertos independentemente de raça, cor, política ou religião. É por isso que o clube sempre deixou claro que mensagens e faixas políticas não são bem-vindas no Celtic Park, nem em qualquer jogo que envolva o Celtic”
“Num momento de perda e sofrimento para muitos, é totalmente inapropriado que qualquer grupo de indivíduos use o Celtic Park como veículo para tais mensagens. Apelamos a todos os torcedores, independentemente de suas opiniões pessoais, a se unirem ao redor de nossos jogadores e do clube, respeitando simultaneamente os direitos e as crenças dos outros; particularmente, aqueles cujas as vidas são afetadas pela violência e pelo ódio”.
A resposta da Green Brigade
“Após uma declaração recente do Celtic, gostaríamos de reiterar a nossa crença inabalável de que nós, e outros torcedores de futebol, temos o direito de expressar opiniões políticas nas arquibancadas, tal como os cidadãos comuns fazem em outras partes da sociedade. O futebol continua a ser uma das poucas áreas da vida pública onde a classe trabalhadora tem uma influência política genuína, e não seremos ditados por uma direção elitista que tem repetidamente demonstrado desprezo pela história e pelas tradições do Celtic Football Club”
“O Celtic nasceu da fome e da opressão, um produto do domínio colonial, da morte e da migração em massa de pessoas. É por causa desta história que os torcedores do Celtic são conhecidos pela sua empatia e solidariedade; consistentemente ao lado dos oprimidos e desamparados. Este fato não passa despercebido da diretoria, uma vez que flerta regularmente com a ideia, especialmente quando esta pode ser mercantilizada, mas o conselho é rápido a condenar quando as opiniões expressas desafiam a sua visão do mundo, proclamando de forma dissimulada como apolítica. Esta hipocrisia está, infelizmente, em sintonia com grande parte da classe política e midiática, sintetizada no exemplo da Ucrânia”.
“As mensagens políticas eram bem-vindas no Celtic Park naquela época; no entanto, estão sendo condenadas agora. A questão que surge em qualquer mente razoável deveria ser por quê? Por que as vidas ucranianas são mais sagradas do que as vidas palestinas? A Green Brigade continua inequívoca no seu apoio ao povo palestino, como temos feito consistentemente. Apoiamos vários projetos palestinianos ao longo da nossa história e durante mais de uma década desenvolvemos uma relação estreita com o Campo de Refugiados Aida, culminando na criação da academia de futebol Aida Celtic em Belém”.
“Enviamos a nossa sincera solidariedade e orações aos nossos amigos em toda a Palestina neste momento traumático, em que mais uma vez grande parte da comunidade internacional vira as costas à covardia, enquanto crimes de guerra são infligidos a uma população em grande parte indefesa e presa. Apelamos ao apoio do Celtic – os verdadeiros guardiões do Celtic Football Club – para que permaneçam do lado certo da história. Em 2016, levantamos a bandeira de forma desafiadora. Agora, mais do que nunca, o povo palestiniano precisa da nossa solidariedade”.
“No dia 25 de outubro, contra o Atlético de Madrid, pedimos a todos os torcedores do Celtic que levantem a bandeira da Palestina no palco europeu e mostrem ao mundo que o Celtic Football Club está ao lado dos oprimidos, não do opressor. Devemos aplicar a aprendizagem do apartheid na África do Sul para desmantelar o apartheid de Israel – se formos neutros em situações de injustiça, escolhemos o lado do opressor. Encorajamos os torcedores a doarem para o fundo de emergência em Gaza”.
O histórico das arquibancadas
As manifestações da torcida do Celtic em prol da Causa Palestina acontecem pelo menos desde a década de 1980. Há algumas correlações feitas pelos alviverdes que tornaram comuns bandeiras palestinas em Parkhead. O Celtic é um clube criado num contexto muito específico, ligado à comunidade católica irlandesa que vivia em Glasgow, após a migração em massa ocorrida no Século XIX em decorrência da chamada “Grande Fome”. A criação do clube de futebol aconteceu como um projeto social para apoiar essa população, marginalizada dentro da sociedade britânica. O preconceito contra esses irlandeses e descendentes, maioria nas arquibancadas do Celtic, oferece um elo com a marginalização dos palestinos. Embora menos comum, há também registros da bandeira de Israel na torcida do Rangers, numa forma de contraposição e afronta.
Além do mais, a torcida do Celtic também é bastante identificada com movimentos independentistas dentro do Reino Unido. Há um apoio expressivo em relação à independência da Escócia, bem como à reunificação da Irlanda. Neste caso, a Irlanda do Norte é vista como um estado arbitrário e artificial tal qual Israel. Há paralelos com os palestinos no abuso de força militar, na legislação repressiva e na confiscação de terras. E essa postura opositora ao poder central também leva os torcedores do Celtic a exibirem com frequência bandeiras do País Basco, com seu forte movimento separatista na Espanha. Também cabe mencionar a presença de diversos movimentos ligados à esquerda nas arquibancadas do Celtic, que os aproxima da Causa Palestina.
A partir da última década, com a fundação da Green Brigade, as bandeiras da Palestina se tornaram ainda mais comuns nos jogos do Celtic. Diferentes momentos do conflito com Israel resultaram em apoio expresso nas arquibancadas de Parkhead. Em 2012, por exemplo, a Green Brigade mostrou uma faixa em solidariedade a prisioneiros palestinos que faziam greve de fome em prisões israelenses. Em 2014, nova manifestação ocorreu pelos conflitos em Gaza. Já em 2016, as bandeiras palestinas apareceram numa partida contra o israelense Hapoel Be'er Sheva pelas preliminares da Champions. Nesta ocasião, a Green Brigade aproveitou para arrecadar fundos aos palestinos e conseguiu mais de £130 mil em doações.
Os primeiros sinais claros de atritos entre a direção do Celtic e a Green Brigade sobre a Causa Palestina vieram em 2021. Na ocasião, os torcedores fizeram mais uma manifestação com bandeiras palestinas. No entanto, os ultras acusaram o clube de censurar o ato. “Enquanto vemos erguer a bandeira da Palestina como um ato de humanidade e solidariedade, a remoção e censura demonstra quão distante a atual direção se extraviou dos valores do Celtic Football Club. Permanecer neutro diante de horríveis e violentos atos de opressão é ficar ao lado do opressor, o que é uma afronta ao ethos fundador do nosso clube”, escreveu a Green Brigade.
Os israelenses do Celtic
Apesar da identificação da torcida do Celtic com a Palestina, o clube contou com alguns jogadores de Israel nos últimos anos. O pioneiro foi o meio-campista Eyal Berkovic, que defendeu o clube de 1999 a 2001. Em 2010, os Bhoys contrataram o meio-campista Beram Kayal, de origem árabe e muçulmana, mas nascido em Israel. Ficou no time até 2015 e superou as 100 partidas. Mais curta foi a permanência do zagueiro Rami Gershon, no primeiro semestre de 2013. Naquele mesmo ano, o Celtic contratou o zagueiro Nir Bitton, um dos nomes mais expressivos do clube no período. Foram nove anos no elenco, até sair em 2022, com 271 partidas e uma coleção de títulos. Entre 2019 e 2022, o zagueiro Hatem Elhamed, também de origem árabe, teve uma passagem menos notável. Por fim, desde 2021, Liel Abada é alternativa para o ataque – atualmente se recupera de uma lesão muscular.
Bitton foi quem mais bateu de frente com a torcida do Celtic durante sua passagem pelo clube. O zagueiro chegou inclusive a atuar no exército de Israel, durante o serviço militar obrigatório. Também nunca escondeu sua convicção sobre o estado israelense diante das reivindicações da Palestina. Em 2014, Bitton apoiou em suas redes sociais ações militares israelenses na Faixa de Gaza, o que gerou respostas negativas de torcedores. Já em 2018, o beque discutiu mais uma vez em suas redes sociais com torcedores por conta de sua posição em prol de Israel. Apesar de sofrer ataques e ameaças, o jogador permaneceu por quase uma década em Parkhead.
Atualmente no Maccabi Tel Aviv, Nir Bitton se manifestou contra a torcida do Celtic diante dos atos mais recentes em prol da Causa Palestina. “Tenham vergonha na cara! Sim, libertem Gaza do Hamas, não de Israel! Apoiar uma organização terrorista que comemora o massacre de famílias é uma absoluta loucura! Vergonhoso. A maioria de vocês sequer sabe onde fica Israel! Vocês não sabem nada sobre esse conflito e ainda agem como se soubessem de tudo. Como pai de três filhos, queria ver a reação de vocês quando suas crianças inocentes fossem mortas e sequestradas diante de seus olhos! E, por favor, não me falem o que Israel faz com os palestinos, porque isso está distante de ser verdade! Parem de sofrer lavagem cerebral e se eduquem com fatos!”, escreveu. Vale salientar que as manifestações da Green Brigade são favoráveis à Palestina, não ao Hamas.