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Ancelotti soube voltar ao topo com o estilo e discrição que o tornaram o grande técnico que é

Volta ao Real Madrid foi sob desconfiança, mas Ancelotti se tornou o único a conquistar as cinco principais ligas da Europa e ainda se tornar recordista de finais na Champions

Quando o Real Madrid anunciou Carlo Ancelotti para substituir Zinedine Zidane, parecia só mais uma volta ao passado sem nenhum outro motivo além da nostalgia. Os dias de glória de Ancelotti pareciam ter ficado para trás. Seu trabalho pelo Everton recebia questionamentos. Os trabalhos anteriores, no Bayern de Munique e Napoli, também terminaram deixando impressões ruins de que o italiano não conseguia mais estar na elite do esporte. Mesmo assim, o Real Madrid apareceu e ele abraçou a ideia.

Quase um ano depois, ele já garantiu o título de La Liga e está na final da Champions League, o que o tornou o recordista em finais e pode torná-lo recordista também em títulos: se vencer, será o único a conseguir quatro taças. Atualmente, com três, duas pelo Milan e um pelo Real Madrid, está empatado como o técnico mais vencedor da competição, Bob Paisley, campeão três vezes pelo Liverpool, e Zinedine Zidane, campeão três vezes pelo próprio Real Madrid.

Era difícil imaginar que ele estaria nessa situação, aos 62 anos, no ponto da carreira que se encontrava. Embora fizesse bom trabalho no Everton, mas nada acima da média, o treinador vinha de campanhas não muito boas com Bayern e Napoli. O próprio Everton teve bons e maus momentos, que parecem melhores agora do que na época especialmente porque o clube brigou para não cair nesta temporada. O Everton pareceu mais adequado que os dois anteriores, o que indicava que o seu lugar passou a ser o meio da tabela.

Engolido pela engrenagem no Bayern

No Bayern, onde substituiu Pep Guardiola em 2016, chegou exaltado como um grande gestor de grupo, mas o que se viu por lá foi uma campanha irregular, que ainda assim terminou em título, mas muitos questionamentos. O que era inicialmente um casamento que parecia perfeito, mas passou muito longe disso. A vida na Baviera seria de turbulência.

Substituir Guardiola nunca é fácil. O seu estilo é bem diferente do catalão, que é conhecido por sua complexidade tática. Foi com ele no comando que o Bayern viveu uma revolução e se tornou uma equipe absolutamente dominante, ainda que não tenha vencido a Champions League. Apesar disso, era claramente um dos melhores times do mundo. Ancelotti parecia a escolha certa quando Guardiola partiu para o Manchester City. Seu estilo de gestor de estrelas e um estilo de jogo mais pragmático pareciam interessantes para um time que vinha em ebulição tática, intensamente vivida. Só que não foi o que aconteceu.

Ancelotti chegou à Alemanha falando alemão, tal qual Guardiola, mas isso não foi o bastante. O técnico disse que não faria nenhuma revolução e o time nem precisava mesmo disso. O problema é que se a vida sob Guardiola era de uma intensidade desgastante, com Ancelotti os jogadores sentiam que estavam em um jogo pouco elaborado, muito pouco sistemático. Os jogadores pareciam sentir falta do refino, da concentração em cada detalhe que o técnico anterior tinha.

Com um time vencedor, cheio de estrelas, algumas já no limiar da carreira em alto nível, como Arjen Robben e Franck Ribéry, o time com Guardiola funcionava como uma orquestra bem afinada, com os jogadores atuando em função do sistema. O coletivo funcionava mais do que os indivíduos, que brilhavam como consequência, mas sem dependência deles. No Bayern, importava mais a orquestra do que os solistas.

Ancelotti trabalhava mais em função dos jogadores do que do sistema e isso era percebido como um problema. A ponto dos jogadores se rebelarem e mudarem as coisas por conta própria. A relação conturbada com as estrelas e a inconsistência do time levaram à demissão do treinador, um ano e dois meses depois da sua contratação. O descontentamento dos jogadores na Alemanha era tão grande que eles faziam “treinos secretos” sem o técnico. Sua reputação ficou abalada com o episódio. O grande gestor de vestiários não foi capaz de domar o sistemático Bayern.

Passagem conturbada pelo Napoli

Ancelotti comentou que estava difícil ver oportunidades no mercado, em maio de 2018. Poucos meses depois, voltaria a atuar, novamente no país natal. O Napoli também deixou a impressão que o treinador tinha feito menos do que se esperava. Ficou de julho de 2018 a dezembro de 2019 e o divórcio foi litigioso: com crise entre presidente, técnico e jogadores. O presidente dos Partenopei até hoje diz coisas não muito agradáveis sobre o treinador, dizendo que ele nunca se tornou um napolitano de fato. Nunca foi “um deles”.

Embora Napoli e Bayern sejam essencialmente diferentes, há uma semelhança que liga os dois episódios: os antecessores de Ancelotti no cargo. Se no Bayern ele substituiu Guardiola, no Napoli entrou no lugar de Maurizio Sarri, que não é conhecido como o primeiro, mas ganhou repercussão pelo trabalho no clube do sul da Itália. A semelhança com Guardiola está na atenção aos detalhes, nas inovações táticas, no sistema de jogo com uma construção ofensiva complexa, mexendo muito as peças e transformando, por exemplo, Dries Mertens de um bom ponta em um artilheiro excepcional.

Ancelotti não trouxe a mesma inovação, nem um jogo mais sistemático. Sua simplicidade, no 4-3-3 que se acostumou, sem grandes inovações, não encaixou tão bem quanto se imaginou no início. O time perdeu tração e não só não encantava como na época de Sarri, como perdeu a competividade que tinha com o técnico anterior.

A sua saída veio em meio a um motim dos jogadores, algo que não passava diretamente por ele, mas que foi só um novo capítulo de uma saga que tinha Ancelotti sem conseguir domar o vestiário, algo que sempre foi uma qualidade do seu trabalho. Parecia que ele estava ultrapassado.

A mediocridade no Everton

A sua chegada ao Everton era ao mesmo tempo interessante, por já ter trabalhado por lá no Chelsea e ser um nome de peso, como também parecia consolidar que agora ele era um treinador de meio de tabela. Sua passagem pelo clube é elogiada com razão, mas não tem nenhum grande brilho. Os torcedores esperavam que Ancelotti os alçasse de volta às competições europeias, mas o time ficou apenas no meio da tabela.

Apesar disso, ele conseguiu gerir bem o vestiário, que foi um problema nos trabalhos anteriores, e os jogadores não reclamaram da sua tática, que era mais simples. Parecia que aquele era o seu novo nível de trabalho: um clube intermediário em uma grande liga. Sua simplicidade tática funcionou, era um técnico enorme em um vestiário de jogadores que não eram grandes estrelas. Ele voltou a conseguir gerenciar bem o vestiário. Se ele não funcionava mais naqueles superclubes da Europa, funcionava em um clube que almejava pouco mais do que a mediocridade (e os torcedores do Everton certamente sentiram falta disso ao correr risco de rebaixamento até a penúltima rodada na temporada 2021/22).

Por tudo isso, a sua escolha para treinar o Real Madrid causou estranhamento. Parecia um pensamento mágico de Florentino Pérez, desejoso em voltar àquela conquista de La Décima, em 2013/14, um título muito esperado pelos madridistas, mas que foi desconsiderado ao final da temporada seguinte, quando o técnico acabou demitido.

Foi ele que deu a chance de Zinedine Zidane ser seu assistente e começou a carreira do ídolo na comissão técnica. O mesmo Zidane que causou em Ancelotti uma profunda mudança em seu jeito de entender o futebol taticamente. Até trabalhar na Juventus, Ancelotti era ortodoxo com o seu 4-4-2. O aplicava com muita rigidez e não tinha espaço para jogadores como Roberto Baggio, um meia-atacante que não se encaixava no seu esquema.

Foi dirigindo Zidane, na Juventus, que ele mudou de ideia e criou um sistema que pudesse ter o gênio rendendo no seu melhor. Anos depois, seria Zidane que aprenderia com Carletto sobre truques táticos e de gestão como técnico. Curiosamente, Carletto chegou para substituir justamente Zidane como técnico no Real Madrid.

Volta ao Real Madrid: a orquestra em função dos solistas

A virada de Ancelotti na carreira foi inesperada, mas não é inexplicável. O treinador se adaptou perfeitamente ao que o clube precisava: uma estrutura tática simples, valorização do talento individual, sem criar uma estrutura de ataque complexa e um futebol que não fosse defensivo. Sua abordagem tática não foi complexa e o time conseguiu mostrar grande capacidade em momentos-chave da temporada. Técnicos que são refinados taticamente, como José Mourinho e Rafa Benítez, sofreram no banco do Real Madrid, ainda que o português tenha conseguido conquistar títulos importantes, mas sofrendo constantemente nas mãos do Barcelona de Pep Guardiola.

Aquilo que o atrapalhou no Bayern e no Napoli foi justamente o que o funcionou no Real Madrid. Ao contrário desses dois trabalhos que ele herdou de técnicos com esquemas táticos complexos, o time merengue precisava do oposto disso. Se no Bayern os solistas eram coadjuvantes da orquestra, que era o mais importante, no Real Madrid seria o inverso: a orquestra era coadjuvante dos solistas. Assim, solistas como Benzema, Vinícius Júnior e Luka Modric fizeram com que a orquestra se moldasse em função deles. E o brilho individual deles fez com que a orquestra tivesse sucesso. A ordem altera o produto neste caso.

Ancelotti valorizou aquilo que os torcedores do Real Madrid mais gostam: o brilho de suas estrelas, atuais e futuras. O sistema não pode ficar acima dos jogadores em um clube como o Real Madrid e isso já ficou claro com outros treinadores, como o também italiano Fabio Capello, bem-sucedido em resultados, com um time funcionando bem, mas sem brilho individual.

Carletto conseguiu dar consistência ao time, resgatando o futebol de alguns jogadores veteranos onde já pairavam dúvidas, como Luka Modric e Karim Benzema. Zidane, quando assumiu no lugar de Rafa Benítez na sua primeira vez, conseguiu sucesso justamente aplicando fórmula parecida à que Ancelotti tinha nos merengues: simplicidade tática, calcada em individualidades fortes e capacidade de se impor sobre os adversários nos momentos críticos, com um mental avassalador.

Ancelotti tem muito conteúdo tático, mas o seu modelo parecia estar sob questionamento no futebol atual. A árvore de natal usada no Milan não tinha mais lugar, o meio-campo em losango que ele tentou usar poucas vezes no Real Madrid foi atropelado e superado com facilidade. Ele percebeu isso e o mérito foi entender o que o time precisava. E o que precisavam era justamente aquilo que ele melhor poderia oferecer. Foi a simplicidade nesse aspecto, somada ao seu conhecimento e capacidade de se adaptar a um elenco estrelado e extrair o melhor deles, que o tornou novamente bem-sucedido no clube que é um colosso continental.

Zidane teve dificuldades no seu retorno ao Real Madrid. Se na primeira vez ele pareceu ser um excelente gestor de talentos que apostava muito na individualidade sem grandes mudanças táticas, na segunda passagem ele se arriscou mais, tentou mudar formações, posições e funções de acordo com a necessidade. Funcionava em muitos jogos, mas acabou deixando a desejar em outros, especialmente aqueles chave, onde ele tinha sido tão bem-sucedido antes.

Era normal: Zidane estava incorporando novos elementos ao seu repertório, que só tinha o trabalho anterior no currículo. Queria uma orquestra mais ao seu molde. Os solistas sofreram mais, sem render como se esperava. Vinícius Júnior, um solista por natureza, não conseguia render o que se esperava. Havia questionamentos sobre os jogadores, individualmente, porque eles não entregavam tudo que se esperava deles, com exceção, talvez, de Benzema. Mas nem mesmo o francês conseguia fazer algo perto do que conseguiu na atual temporada.

Ancelotti chegou em um momento oposto. Suas soluções táticas pareciam ultrapassadas para o futebol atual. Seu estilo de preparação e treinamento não pareciam adequados em times que precisavam de construções ofensivas complexas. Mas não era isso que o Real Madrid precisava.

No Everton, ele conseguiu ir bem quando adotou a simplicidade e extraiu mais dos jogadores individualmente. No Real Madrid, com seus talentos tão grandes, ele desenvolveu alguns dos jogadores para serem ainda melhores, como Vinícius Júnior. Conseguiu fazer Benzema brilhar ainda mais, Modric fazer a temporada da sua carreira e fez de Éder Militão e David Alaba uma dupla de zaga firme, apesar de não serem tão experientes – em idade, no caso do primeiro, e na posição, no caso do segundo.

Os zagueiros, aliás, são um ponto particularmente interessante no trabalho de Ancelotti no Real Madrid. Os dois titulares anteriores deixaram o clube, Raphael Varane e Sergio Ramos, este último uma referência e capitão do time. Alaba e Militão mudaram o estilo da defesa do Real Madrid fazendo apenas o simples. Os italianos são muito olhados pela defesa, embora isso seja uma parte pequena do trabalho de Ancelotti na sua carreira. Mas ter conseguido dar consistência a uma dupla nova tornou-se importante para o time fazer tudo que fez na temporada até aqui.

Acreditar em ganhar o jogo nos últimos 10 segundos

Fazer o simples tem sido o mantra de Ancelotti. Todas as vezes que ele tentou algo diferente, a equipe sofreu. O que mais chamou a atenção foi quando ele não teve Benzema e montou um time sem centroavante, com meio-campistas concentrando pelo meio. A equipe foi simplesmente atropelada pelo Barcelona por 4 a 0. Ironicamente, o Barça desmanchou depois daquele jogo e o Real Madrid disparou, especialmente na Europa.

Andriy Shevchenko foi um dos grandes jogadores que Ancelotti dirigiu em sua carreira. Foi com ele no comando do Milan que o ucraniano se consagrou, foi artilheiro da Serie A e eleito Bola de Ouro na temporada de 2004. É dele a frase que parece definir o Real Madrid de Carlo Ancelotti na Europa. “Quando você dirige grandes jogadores, eles precisam acreditar que os jogos são decididos nos últimos 10 segundos”, conta Shevchenko. Ele sabe disso: viveu na pele os dois lados, com a vitória na Champions League de 2003 contra a Juventus, nos pênaltis, e a derrota para o Liverpool, em 2005, também nos pênaltis. “Essa é a beleza do futebol, mas você precisa construir a mentalidade certa. Basta olhar o Real Madrid de Carlo”, contou o jogador em entrevista ao Athletic.

O Real Madrid de Ancelotti não é brilhante ou encantador. Ele é simples e funcional. Entrega muitas vitórias, muitas delas sem grandes emoções. O time teve problemas graves contra adversários de peso, como o PSG, o Chelsea e o Manchester City, em que o jogo de volta parecia que resultaria em eliminação. Nas três vezes, ele não inventou para tentar mudar o resultado: ele dobrou a aposta no que conhece, no seu 4-3-3, no brilho dos seus jogadores e em uma mentalidade forte para acreditar até o fim. Benzema entregou os gols, Vinícius e Modric foram coadjuvantes de luxo e até Rodrygo saiu do banco para ser estrela. Os jogadores acreditaram até o último respiro.

O título espanhol veio com facilidade. Em uma temporada que o Atlético de Madrid, atual campeão, foi irregular e o Barcelona foi bastante medíocre para o seu padrão dos últimos anos, o Real Madrid conquistou a taça com cinco rodadas de antecedência. Não é um feito qualquer: o título espanhol fez com que Ancelotti seja o primeiro e o único até hoje a conquistar títulos nas cinco grandes ligas europeias: Itália, Inglaterra, Alemanha, França e Espanha.

Ancelotti foi muito mais um técnico de Copas do que de ligas ao longo da carreira. Se caracterizou muito pelas boas campanhas na Champions League mais do que por grandes campanhas em ligas nacionais. Ele só tinha quatro títulos de liga na sua carreira, um em cada país, até conquistar o quinto com o Real Madrid. Considerando que ele dirigiu times de ponta como Milan, Juventus, Chelsea, PSG, Bayern e o próprio Real Madrid, é pouco. Até por isso, o título desta temporada tem um significado ainda mais importante. Parecia que Ancelotti não seria mais capaz de estar no topo de uma liga nacional, mas ele conseguiu.

Incrivelmente, Ancelotti pode chegar ao quarto título de Champions League na sua carreira, apenas um a menos do que ligas nacionais. Não é por acaso que Ancelotti tem um currículo que o permitirá ficar na história como um dos grandes técnicos europeus de todos os tempos. Um quarto título de Champions League certamente seria mais um brilho para o técnico que parecia longe dessa mesa dos grandes técnicos do momento. Isso sem tentar se manter atualizado com técnicos com abordagem diferente ou inovadora. Simplesmente fazendo o que acredita, com simplicidade e efetividade que é tão difícil de fazer.

Foto de Felipe Lobo

Felipe Lobo

Formado em Comunicação e Multimeios na PUC-SP e Jornalismo pela USP, encontrou no jornalismo a melhor forma de unir duas paixões: futebol e escrever. Acha que é um grande técnico no Football Manager e se apaixonou por futebol italiano (Forza Inter!). Saiu da posição de leitor para trabalhar na Trivela em 2009, onde ficou até 2023.
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