Brasil

A visão de Cruyff e a nostalgia torta de um mito de 30 anos

Time montado por Parreira vai e volta entre o que foi e o que poderia ter sido

Foram dias passando pela série do Romário, depois por especiais de televisão que vão multiplicando as brincadeiras do Ricardo Rocha no ônibus, o olhar de Roberto Baggio no túnel captado pela impressionante produção brasileira do filme oficial do Mundial, um vídeo da festa em que Bebeto recebe de volta, feito passe vagaroso e na medida em São Francisco, um eu te amo de seu parceiro de ataque.

Os trinta anos do tetracampeonato da seleção bagunçam e confundem a memória, chegam meio cegos do sol do Rose Bowl num jogo de hora do almoço, entre o tempo presente e o que virou o jogo, da posse de bola mediada por Dunga à revolta oportunista da fala de Jorginho — o time perdendo e os caras postando foto, onde já se viu. Daqui, aquela fagulha de um tempo em que a Copa nos apresentava o mundo.

A caixa de biribinhas que estourei precocemente, ainda no zero a zero, na estreia contra a Rússia, ou a culpa carregada pelo empate da Holanda: eu soprando a corneta antecipadamente e minha avó me repreendendo porque não se canta vitória antes, o gol do Winter por total soberba de uma criança de seis anos em São Bernardo do Campo, mas que por sorte o Branco acertou o chute da vida.

O dia que lembro do meu pai criança, quebrando copos na parede, destroçando a fila, a aposentadoria do Pelé, a angústia do Sarriá, o pênalti do Zico e a bronca do Lazaroni ali, num vidro quebrado na calçada. O prato que eu fui convidado a atirar nem alcançou a meta, se espatifou no chão, direto.

No domingo seguinte, na quadra do Atlético Vila Alpina, uma caixa de fósforos para o pau quebrar no futebol de salão com a arquibancada quase invadindo a linha lateral, me lembro bem do que me contou o goleiro dos veteranos: onde já se viu, campeão do mundo nos pênaltis!

Foi meio assim, num tom de cobrança e certo constrangimento, ainda que com o alívio da retomada de grandeza. A impressão era de que não houve unanimidade, mas gratidão, afinal, se Baggio faz, Bebeto erra e um Viola da vida depois perde nas alternadas, pronto, Itália tetra, que coisa.

Acontece que o tempo é maravilhoso, porque as intempéries fazem das nossas lembranças um zigue-zague, não uma linha reta. O time montado por Parreira vai e volta entre o que foi e o que poderia ter sido cada vez que a Alemanha marca mais um, que o chute de uma Croácia ordinária desvia em gol a quatro minutos do fim do mundo. Entre críticas ácidas e elogios tardios, esse barato de uma nostalgia torta, condição fundadora da conversa de futebol.

É verdade que não havia os requintes de brilho do São Paulo de Telê Santana ou do Palmeiras de Vanderlei Luxemburgo, dois times icônicos passando ali na esquina, mas tampouco se tratava de um quadro apenas pragmático, bruto.

Na Folha de S. Paulo, escreveu Johan Cruyff na véspera da final (Johan Cruyff, viu):

Que ganhe o Brasil. De forma clara e sem qualquer dúvida. (…) Eles buscaram a vitória sempre. Se a Itália conseguir o título, a estatística dirá que venceu em 94, mas a história recordará que o Brasil foi o melhor. (…) Sou exigente, mas acho que a torcida brasileira exagera. É curioso, mas Carlos Alberto Parreira, criticado antes e durante a Copa, foi quem conseguiu o equilíbrio total nesta seleção.

É engraçado ver Cruyff dizendo que nossa régua para futebol de qualidade é alta (o Cruyff!), e também lembrar que em algum momento se olhou aquela formação como algo conservador, num controle de bola cauteloso, com um articulador, veja só o peso do apelido, chamado de enceradeira. Tudo isso para anos depois a gente esperar sentado (descabelado, indignado, chocado) um meio-campista mediar um atropelo alemão no Mineirão ou uma prorrogação ganha no Catar.

O futuro por ali virou o século e projetou craques do controle como Pirlo, Xavi e Modric, e por tabela redimiu Zinho e companhia, quem diria que sem herdeiros na atual amarelinha. Carente de pausa, Tite buscou por anos seu ritmista, Dorival Junior não encontra meia dúzia de passes numa Copa América de campo reduzido, e a perseguição pitoresca do Casseta e Planeta, em coro de Galvão Bueno, envelheceu muito mal.

Outra maluquice é a relação de Romário com essa equipe, seja pela voz do próprio camisa 11, mergulhado num megafone egocêntrico ao rever seus feitos, seja por algum olhar romântico do tempo dos craques donos dos times, justo, que me interessa, porque negá-lo não nos faz melhor.

É um barato como as pessoas enchem a boca para dizer que, viu só, tem que jogar para o melhor mesmo, o Baixinho voltou e botou a Copa debaixo do braço! Ao mesmo tempo que, como nunca antes, o futebol atual faz cara feia para privilégios ao talento, como se não fizesse mais sentido correr para a estrela decidir. É como se houvesse saudade, mas pedindo distância.

Ganhar como 1994 virou essa etiqueta pairando nesse meio-tempo, porque não era o time do Rei nem do Galinho, aquela coisa toda, mas também foi se percebendo que não é banal criar mais e ganhar com merecimento do dono da casa com um a menos, e da Holanda, da Suécia, da Itália.

Ainda mais batendo três décadas e olhando no espelho tomando ferro de França, Holanda, Alemanha, Holanda de novo, Bélgica e Croácia. Toda uma coleção de jogos em que o time tem extrema dificuldade em deixar o campo ao seu gosto, ainda que com bons momentos, feito o primeiro tempo em Porto Elizabeth ou a reação em Kazan.

De 1994 eu guardo num pote na estante aquele frescor de assistir pela primeira vez Maradona, Valderrama, Hagi, Stoichkov, Baggio e tantas figuras, uma televisão cheia de signos, alfabetizado sem medo de ser feliz seguindo as grandes estrelas, esperando a bola, naquele calor ardido, chegar no melhor pé em campo.

Também um certo cansaço da autoridade com que os campeões do mundo abrem a boca por aqui, autorizados a reproduzir clichês de comportamento e bravatas guardiãs dos bons costumes, e urge ganhar a Copa logo, de preferência duas e de novo, para que possamos aposentar certos chavões de laterais moralistas.

E fica ainda um bom papo, porque ganhar é bom, e reclamar de time campeão, nossa, uma delícia, então seguiremos, a bola rodando de um lado para o outro em Pasadena, metade da casa bufando impaciente, a outra metade entendendo que só dava Brasil, as velhas perguntas atravessando os anos sem resposta, o videotape e a desordem de ideias resistindo a cada quatro anos.

Foto de Paulo Junior

Paulo JuniorColaborador

Paulo Junior é jornalista e documentarista, nascido em São Bernardo do Campo (SP) em 1988. Tem trabalhos publicados em diversas redações brasileiras – ESPN, BBC, Central3, CNN, Goal, UOL –, e colabora com a Trivela, em texto ou no podcast, desde 2015. Nas redes sociais: @paulo__junior__.
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