Brasil

Quanto custa ser um treinador ‘pro’ no Brasil? Preço da CBF é caro e alunos lamentam

Entidade máxima do futebol brasileiro cobra cerca de 35 salários mínimos para concluir todas as licenças de treinador

Se o sonho de se tornar jogador parece tão difícil e tortuoso no Brasil, ser técnico é outra forma de mudar de vida e ainda trabalhar com o que ama. É um caminho que muitos almejam, mas alguns vão lidar com um grande obstáculo: o alto custo que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) cobra até que um profissional chegue à beira do campo.

Em um país marcado pela grande desigualdade social, onde 31,8% da população vive na pobreza ou na extrema pobreza, segundo levantamento de 2023 do IBGE, e o salário mínimo é de apenas R$ 1.509, chama atenção que a CBF Academy, o setor de educação da entidade máxima do futebol brasileiro criado em 2016, obrigue que toda pessoa que quer ser um treinador da elite precise passar por quatro licenças (C, B, A e Pro), que totalizam investimento de mais de R$ 50 mil.

O presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, discursa em evento do CBF Academy Summit
O presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, discursa em evento do CBF Academy Summit. Foto: Rodrigo Corsi / FPF

É obrigado que todo profissional passe por todas as licenças, iniciando na C para chegar na B, depois A e no fim Pro. Cada uma delas permite que um aspirante a treinador trabalhe em categorias específicas e alcance os níveis mais altos, como o Campeonato Brasileiro e a Libertadores.

No entanto, até chegar o topo da cadeia, onde costumam receber salários mais altos, o caminho do profissional pode ser complicado por conta do custo.

No último ano, a CBF Academy fez pela primeira vez cursos para técnicos em nove estados. Até por isso, a organização viu o número de alunos matriculados saltar de 1,7 mil em 2023 para 3,5 mil em 2024.

A Trivela conversou com pessoas que desejam ser técnicos, profissionais já formados na CBF Academy e especialistas para entender como o alto investimento nos cursos dificulta — e muito — o acesso para ao sonho de ser um treinador.

  • Licença C (210 horas de carga horária): R$ 5.800 para ser técnico em escolas de futebol ou similares e na categoria sub-11
  • Licença B (260 horas): R$ 9.030 para ser técnico em nível de formação de atletas, em equipes de categoria de base de clubes e demais organizações do Futebol do sub-12 até sub-17
  • Licença A (330 horas): R$ 13.200 para ser técnico em equipes de futebol sub-20, primeira divisão Estadual e Séries A, B, C e D do Campeonato Brasileiro profissional
  • Licença Pro (450 horas): R$ 24.900 para ser técnico em competições internacionais
  • Total: R$ 52.930
O técnico Dorival Júnior em aula do curso de treinadores da CBF Academy
O técnico Dorival Júnior em aula do curso de treinadores da CBF Academy (Foto: Divulgação/CBF Academy)

Por que o curso da CBF é tão caro?

Para entender os altos valores nas formações para técnico, a Trivela entrevistou Davi Feques, gerente da CBF Academy. Segundo o executivo, para a entidade chegar nessas quantias, é considerado todo o processo de logística para a parte presencial (a outra metade da licença é online), que dura seis dias, sendo necessário os custos de viagem, hospedagem e alimentação de seis professores e um coordenador da capacitação.

Ainda há gastos de estrutura, como alugar o espaço que serão realizadas as aulas (no campo e na sala de aula), e também na compra de equipamentos esportivos. Toda formação do curso é baseada em um documento da Conmebol, no qual define as regras para formação de técnicos.

O que faz a licença tem um valor alto, e nós reconhecemos isso, é a parte presencial. Só que é custosa porque queremos uma qualidade no ensino, que os melhores professores em cada disciplina viajem lá para as funções — disse Feques.

— Eu sou do Maranhão e eu quero que o professor bom vá para lá, vá para Campo Velho, o mesmo que vai ao Rio de Janeiro. Tem que ter esse ensino uniforme, padrão, em todo país e para isso tem uma logística grande a se fazer. E nós temos uma realidade aqui no Brasil um pouco complicada na licença C, pois se eu for com esse curso para São Luís, e tenha 10, 15 alunos, vai sair no vermelho, fica com balanço negativo financeiro porque ela é uma despesa alta. Conseguimos equilibrar ao fazer um curso no Rio de Janeiro, aí mantemos a operação balanceada e estável — completou.

O último balanço financeiro publicado pela CBF indicou que a entidade registrou uma receita bruta de R$ 1,172 bilhão em 2023.

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Professor individual opta por curso de futsal por custos das licenças da CBF Academy

Como quase todo brasileiro, Adriano Arce nasceu com uma bola no pé. Jogando desde garoto, ele conseguiu avançar na carreira, passar por categoria de base e até a atuar na Espanha. Porém, por motivos pessoais, largou os gramados para trabalhar à beira do campo, ainda em 2009.

Naquela época não tinha licença da CBF, muito menos uma área de cursos. O primeiro passo para Arce foi a formação no curso de Educação Física. Inicialmente trabalhou em uma escolinha de futebol, depois se tornou personal soccer de jovens, profissão que atua no atendimento pessoal de futuros jogadores para ajudar na evolução na performance e preparação física (no passado, um deles foi Diego Costa, ex-São Paulo), mas seu grande objetivo era ser técnico principal de um time.

— Eu me formei em Educação Física e comecei a sonhar com essa jornada de um dia estar no profissional. Só que me deparei com uma realidade diferente, essa obrigação de ter as licenças e os valores. Eu falei, ‘nossa, um curso é 8 mil, o outro curso é tantos' e eu recuei pelos custos. Fiquei um bom tempo trabalhando em escolinha. Então, decidi fazer cursos mais baratos, de outros locais, de 100, 200 reais, para ter um certificado — explicou.

Nesse momento de procura de outras capacitações fora da CBF, Arce encontrou um caminho mais acessível e que tem um peso no mercado: as licenças da Confederação Brasileira de Futsal (CBFS).

— Comecei com as licenças do futsal, que são licenças mais baratas. Paguei R$ 1,2 mil na ‘C', enquanto a ‘B' é R$ 2,5 mi e a ‘A' custa R$ 3 mil. É mais acessível — disse Arce. Somado os três cursos da CBFS, não chega ao custo da capacitação “mais baixa” da CBF.

Adriano Arce, personal soccer que trabalha com jovens
Adriano Arce, personal soccer que trabalha com jovens (Foto: Arquivo pessoal)

O interesse por outros cursos também despertou em João (nome fictício, pois o profissional prefere falar sob anonimato), que até é formado na Licença C da CBF, mas vê as capacitações da Associação do Futebol Argentino (AFA) um passo à frente do Brasil.

— Eu não vejo a capacitação da CBF em um nível tão bom. É um curso que você passa 15 dias só, não te capacita, é mais para dar a licença. (…) Me despertou muito interesse a licença da AFA. Eu estava pesquisando e vi que a licença C na Argentina dura quase um ano, período que você passa estudando, mesmo que online. No final desse um ano você vai para lá fazer uma prova e ver se está apto. E eu senti que tem um acompanhamento maior, tem um interesse maior e não só te vender algo, mas em te ajudar a aprender e a seguir na carreira. A CBF deveria aprender com eles nesse sentido — disse.

— Até por conta de ver a valorização do treinador argentino. Tem treinador argentino em todos os países do mundo, nas principais ligas do mundo, e brasileiro não. As seleções da América do Sul são dominadas por técnicos da Argentina também — completou.

Outra vantagem da AFA em relação à CBF é a capacitação ser igualada a cursos da Uefa e permitir que o profissional atue na Europa — o que não acontece com o brasileiro que se forma na Academy.

Postulantes a alunos temem dificuldade em ingressar no mercado após investimento

O investimento de quase R$ 50 mil nas licenças na CBF Academy não trazem garantia de retorno, pois os alunos não têm emprego garantido após a conclusão. Adriano Arce teme que isso aconteça e o faz ponderar em investir em outros pontos da sua carreira.

— Quero começar a entrar nas categorias de base até os 13, 14 anos, tanto no futsal como no campo. E depois conseguir um acesso mais, quem sabe, o clube bancar esses cursos. Mas eu penso: ao invés de gastar R$ 47 mil, é mais fácil eu estruturar a minha escolinha, né? Comprar equipamento, bola, tudo. E você tem um retorno melhor porque, mesmo dentro do clube, não é garantido que você ganhe bem — disse o professor.

João passou exatamente por isso. Ele conseguiu bancar a licença C, em 2020, mas até hoje não conseguiu avançar nas outras por conta do aspecto financeiro. O profissional, que atua como treinador em uma universidade, compara que ainda é mais difícil para quem não é ex-jogador.

— Eu sigo com o sonho de fazer as outras licenças. Infelizmente, o dinheiro não me permitiu. Já faz cinco anos que fiz a C e não consegui ainda ir para o próximo nível. Estou lutando, estou tentando, mas realmente a parte financeira pesa muito. E nós que somos profissionais de educação física entramos em desvantagem porque o ex-jogador de futebol entra direto na licença B ou na A, a depender do acordo que fazem na CBF. E como eles têm conhecimento, conhecem pessoas dentro do futebol, fica muito mais fácil de entrar depois — desabafou.

Técnico já formado só conseguiu terminar licenças após longa trajetória

O técnico Edivan Coelho durante sua gradução na licença Pro do curso de técnicos da CBF Academy
O técnico Edivan Coelho durante sua gradução na licença Pro do curso de técnicos da CBF Academy (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

A dificuldade em bancar um investimento tão alto fez parte da rotina de Edivan Coelho, técnico de apenas 33 anos e atualmente no sub-17 do Jabaquara-SP. Nascido na área rural de Registro, o profissional nunca pensou em ser jogador, mas a carreira à beira do campo sempre o atraiu. Em um processo árduo, ele conseguiu trilhar todo o caminho da CBF Academy, da licença C até a Pro, concluída no fim de 2024.

— Juntei dinheiro de 2013 a 2016. Foi bem difícil, eu tinha vendido uma moto também, trabalhava todos os dias, não só no futebol, mas fora também, com vendas, não foi fácil. No fim, foi muito gratificante quando consegui – disse Coelho, que também passou pelos clubes paulistas Amparo e Linense.

Valor também afasta técnicos negros, população com taxa maior de pobreza no Brasil

A síntese de indicadores sociais do IBGE aponta que a população preta e parda no Brasil representa mais de 70% dos pobres e extremamente pobres. Isso se reflete em pouca representatividade em setores de maior escolaridade e, obviamente, o futebol não fica fora. Entre os 20 treinadores da Série A do Brasileirão, apenas um é negro: Roger Machado, do Internacional.

Para Marcelo Carvalho, do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, o combate ao preconceito também parte por tornar esses espaços mais inclusivos e representativos.

— A gente não combate o racismo apenas com punição. Precisamos pensar em conscientização e educação. É preciso combater toda a estrutura racista do futebol, pensando na inclusão de pessoas negras nos espaços de gestão e poder, como os treinadores de futebol. O racismo impede que a gente consiga ver pessoas negras nesse espaço de gestão. E, na outra ponta do racismo, é encontrar aonde estão as pessoas negras nessa faixa de poder aquisitivo menor, que é mais difícil ter dinheiro para poder fazer os cursos para treinador porque realmente tem um valor alto — analisa.

Os projetos da CBF para tentar democratizar o preço

Não há, no momento, nenhum projeto da CBF Academy para tornar o acesso mais democrático a pessoas de baixa renda. A entidade tem algumas políticas de desconto, mas a única que busca a inclusão de um grupo pouco representado é voltada para mulheres. O público feminino pode ganhar entre 20% e 50% de desconto pelo programa “Mulheres no Jogo”.

Marcelo Carvalho, porém, exalta dois bons exemplos de inclusão em trabalhos do Observatório do Racismo junto à organização. Em 2022, ao lado de uma empresa de telefônia, as entidades promoveram o projeto “Professores Pretos”, no qual seis profissionais fizeram as licenças para treinadores na entidade do futebol brasileiro.

Agora, está aberto um edital ao projeto “Professoras Pretas” para realização da mesma ação ao público feminino.

— Essa é uma luta do Observatório muito antiga e já teve alguns avanços nesse sentido, como essas duas parcerias com a CBF incluindo pessoas negras justamente porque o curso é caro e a CBF entendeu isso — completou.

A entidade ainda oferece bolsas nas licenças que realiza em cada estado, porém, o critério é indicação da federação de futebol local.

Roger Machado no comando do Internacional
Roger Machado no comando do Internacional – Foto: Imago

Davi Feques destaca que a Academy necessita de mais tempo, uma estrutura melhor, para que seja possível no futuro um programa de desconto por renda. O assunto é discutido hoje na entidade, mas não há nenhuma previsão no curto prazo. A participação de um patrocínio, por exemplo, poderia ajudar no processo.

— Tem a balança: queremos dar descontos, mas, ao mesmo tempo, o curso tem que ser pago. E, como na maioria dos estados não é pago, a gente não consegue. […] A gente pensa, discute esse desconto por renda, só que precisa ser muito bem organizado, estruturado para conseguirmos com a balança equilibrada. É algo que está em constante discussão — detalhou o gerente do braço educacional da entidade.

— Para conseguir um programa com base na renda e ter mais bolsas, precisa de um incentivo maior, às vezes buscar um patrocínio, mas não temos na CBF Academy. Isso já poderia ajudar bastante a conseguir mais bolsas — completou.

Foto de Carlos Vinicius Amorim

Carlos Vinicius AmorimRedator

Nascido e criado em São Paulo, é jornalista pela Universidade Paulista (UNIP). Já passou por Yahoo!, Premier League Brasil e The Clutch, além de assessorias de imprensa. Escreve sobre futebol nacional e internacional na Trivela desde 2023.
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