É incrível como nenhum time treinado por Sampaoli consegue ter paz
Desde La U, quase todos os trabalhos de Sampaoli tiveram seus momentos de turbulência - nem sempre por sua culpa
O que acontecerá com Jorge Sampaoli no Flamengo ainda é incerto. A agressão de seu preparador físico ao atacante Pedro meio que abalou o ambiente. Ele foi demitido por justa causa, e ainda não se sabe se o argentino continuará no comando rubro-negro. A sua declaração sobre o assunto não conteve a condenação mais rígida que já se viu a uma agressão, mas parece que os jogadores querem que ele continue.
O que aconteceu, porém, não é exatamente chocante. Tudo bem que dessa vez foi mais grave e não foi sua culpa – exceto por ter parceria profissional com um preparador físico que resolve discussões no tapa -, mas Sampaoli simplesmente não consegue emplacar um trabalho sem turbulência.
A atual, claro, é a mais séria de todas. Entre as anteriores, algumas são do jogo, outras nem tanto, e ele não esteve sempre errado. Mas o padrão é que ninguém tem paz.
Sampaoli acaba de se pronunciar, via Instagram:
“Não acredito na violência como solução. Isso não nos leva a lugar nenhum. Não tenho dormido pensando como ajudar Pedro e Pablo (…)
Temos obrigação de nos cuidar. Para ser melhor. E colocar o Flamengo no topo” | @trivela pic.twitter.com/BAWoVjfFx0
— Gui Xavier (@GuiVXavier) July 30, 2023
Briga com a Federação Chilena
O primeiro grande trabalho de Jorge Sampaoli foi com a Universidad de Chile. Tricampeão chileno, entre Clausura e Apertura, e campeão da Copa Sul-Americana. A sua saída para treinar a seleção chilena não chegou a ser uma enorme polêmica, mas ele tinha contrato por mais um ano e foi necessária uma negociação para liberá-lo, em dezembro de 2012. E ele já vinha meio que ameaçando. Em julho daquele ano, depois de La U vencer o Apertura nos pênaltis contra o O’Higgins (após Sampaoli ser expulso), mandou uma mensagem cifrada: “Tenho reunião com o presidente e teremos várias coisas a esclarecer”. Curiosamente, estava cotado no Flamengo.
Sampaoli foi brilhante no Chile. Entregou o primeiro título da história do país na Copa América de 2015. E em poucos meses, a relação ficou azeda. Para começar, o presidente da Federação Chilena que o havia contratado, Sergio Jadue, renunciou em meio a uma investigação de corrupção em novembro. Aquele foi um fim de ano movimentado porque Sampaoli quase imediatamente pediu para sair, mas o novo mandatário da entidade, Arturo Salah, fez jogo duro e tentou cobrar o valor total da cláusula de rescisão – US$ 6 milhões.
A briga foi feia. O salário de Sampaoli foi vazado para o público, incluindo valores depositados em contas em paraísos fiscais, como as Ilhas Virgens Britânicas. O treinador entendeu como uma tentativa de acusá-lo de evasão de impostos e se defendeu em entrevista ao site Faro Esportivo, dizendo que considerava justo manter seus vencimentos em “países que protegem essas receitas legítimas” e que os impostos tinham que ser regularizados pelo seu empregador – o que a federação realmente fez. Na época, disse que era um refém da seleção chilena.
– Neste ambiente, eu não quero trabalhar ou viver neste país. Nunca imaginei que em tão pouco tempo se destruiria a imagem de um ídolo que tanto deu ao futebol chileno. Estou francamente decepcionado e nestas condições não posso continuar treinando quando estou com a cabeça em outro lugar – afirmou.
Sampaoli e Federação Chilena finalmente chegaram a um acordo no fim de janeiro de 2016. O técnico pagou um valor menor pela rescisão e ficou livre para seguir sua carreira, alguns meses depois, no comando do Sevilla. A história não morreu. Quando estava no Santos, entrou com um processo contra a Federação Chilena alegando prejuízo à sua honra e pedindo o reembolso de impostos.
Saída do Sevilla
Sampaoli confirmou suas qualidades como técnico na Espanha. Embora tenha perdido rendimento na segunda metade da campanha, classificou o Sevilla à Champions League, com algumas ótimas atuações. No entanto, não conseguiu resistir à seleção argentina. Quando houve a primeira abordagem, após a saída de Tata Martino, havia acabado de acertar com o clube e o elenco foi montado pelo diretor Monchi pensando em seu estilo de jogo. Seria chato demais abandonar o projeto. Um ano depois, como a Argentina continuava bagunçada, pintou uma segunda chance e dessa vez ele pulou no cavalo.
Novamente, seu contrato teve que ser rescindido porque ainda previa mais uma temporada, e Sampaoli, antes do fim de La Liga (embora já classificado à Champions), falava abertamente que queria mesmo ir embora.
– O meu país me quer como técnico da seleção e eu tenho esse sonho desde que era criança. No verão do ano passado, eu não podia sair porque já havia me comprometido com o Sevilla e montado o elenco com Monchi. Desta vez, é diferente. A oportunidade de guiar o time nacional apareceu novamente e, como argentino, não posso recusá-la. Mesmo que isso signifique não poder mais trabalhar em clubes europeus, eu sinto que preciso fazer isso. Hoje, não sou o técnico da Argentina. Há um contrato, e a AFA e o Sevilla precisam resolver. Não está em minhas mãos – disse.
Sonho vira pesadelo
A passagem de Sampaoli pela Argentina foi horrível. Messi precisou brilhar em Quito para garantir a classificação, e a campanha na Copa do Mundo da Rússia deixou muito a desejar. Começou com empate com a Islândia, seguiu com derrota acachapante para a Croácia e foi salva por uma vitória apertada contra a Nigéria. Terminou nas oitavas de final, com um atropelo da França, e durante todo esse processo ficou claro que havia algo de muito errado no ambiente da seleção.
A cena marcante foi Javier Mascherano conversando com Sampaoli em torno de uma prancheta, como se os jogadores tivessem começado a escalar a seleção. Em entrevista à TyC Sports, Ángel Di María não foi tão longe, mas disse que os líderes da equipe realmente conversaram com Sampaoli para tentar melhorar a situação. Um pouco tarde demais. Entre os problemas, segundo Di María, estavam desavenças com o então assistente do técnico, Sebastián Beccacece.
– Às vezes, Sampaoli dizia uma coisa, e Beccacece, outra. Não havia boa comunicação entre eles. Em alguns momentos, parecia que eles estavam brigados entre si porque um comia sempre antes que o outro. Aconteceram muitas coisas aí no meio que, como jogador que trabalha com ambos, nos afeta um pouco. Parece que não, mas afeta bastante. Por isso, foi um Mundial em que sinceramente tudo foi me desanimando por tudo o que aconteceu – afirmou.
Di María também expressou insatisfação por ter sido retirado do time, e o técnico Márcio Zanardi, que acompanhou o argentino no Santos, chegou a dizer, em entrevista à ESPN Brasil, em novembro de 2021, que ouviu de Sampaoli as piores palavras possíveis para quem treina a Argentina: “Briguei com o Messi”.
Mais reforços, por favor
A chegada de Sampaoli ao futebol brasileiro era inevitável. Ele sempre foi constantemente especulado e o casamento se consumou em 2019 por meio do Santos. Seu trabalho foi excepcional, com mais de um ponto positivo. A identificação com a cidade foi muito forte. O mesmo não pode ser dito da sua relação com o então presidente José Carlos Peres, piorando pouco a pouco ao longo do ano. Grande parte das rusgas referia-se a reforços e esse também foi um ponto central no seu desejo de ir embora, ainda com uma temporada de contrato.
O Santos, sendo justo, fez um esforço para bancar o salário alto da comissão técnica de Sampaoli e lhe entregar reforços, mas Peres avisou que a situação seria diferente em 2020. Disse com todas as letras que não haveria grandes contratações. Eu poderia escrever que ele deixou claro que esse foi o motivo para forçar a saída em uma carta à torcida santista, mas ela foi tudo menos clara.
– O próximo ano será muito difícil para o Santos. Jogará o Paulista, o Brasileirão, a Copa do Brasil e a Libertadores. Penso, com chance de me equivocar, que algumas circunstâncias estruturais não me permitiriam sentir com comodidade – escreveu.
Esclareceu um pouco mais em entrevista ao Bem Amigos, do SporTV.
– Minha exigência é que precisamos dar passos certos no processo. No Santos, era muito difícil continuar porque havia diferenças com o presidente. Lá, não havia nenhuma possibilidade de melhorar. Não faria sentido trabalhar mais um ano sem possibilidade de melhora – disse.
Ainda houve um imbróglio jurídico porque o Santos alegava que Sampaoli havia pedido demissão dois dias antes da expiração da sua cláusula de rescisão e, portanto, poderia deduzi-la dos valores de férias, 13º e FGTS que devia ao argentino. Em outubro de 2020, a Justiça deu ganho de causa ao treinador e condenou o clube a lhe pagar R$ 4,3 milhões.
Sampaoli chegou a negociar com o Palmeiras, que estava em uma época de vacas um pouco magras e não conseguiria atender as suas exigências. Na entrevista ao Bem Amigos, disse que o clube paulista “não estava nas condições que eu necessitava” para ganhar do Flamengo, que ele considerava o principal objetivo. No fim, foi no Atlético Mineiro que sentiu com comodidade.
O trabalho no Galo não foi tão bom, diante do que se esperava, nem tão conturbado, apesar de relatos de bastidores dizerem que a relação com a diretoria não era show. Ele também reforçou a fama que caiu na boca do povo de que está sempre cobrando mais reforços. Em Belo Horizonte, chamou de “retoque muito mais ambicioso”. E não faria muita coisa para amenizá-la no seu próximo clube, o Olympique de Marseille.
Mais reforços, s'il vous plaît
A grande tragédia de Sampaoli é que ele é de fato um ótimo treinador. O retorno à Europa foi bem sucedido em um primeiro momento. Começou a mudar a sorte do Olympique de Marseille em 2020/21, após a saída conturbada de André Villas-Boas. Ganhou seus reforços para a campanha seguinte e foi vice-campeão, o que, em francês, quer dizer campeão dos mortais porque ninguém consegue competir com o PSG. E aí adivinha o que aconteceu?
Sampaoli começou a mandar indiretas para cobrar mais reforços, como dizer que o OM precisava “saber o motivo pelo qual estaria na Champions”. No começo da pré-temporada, acabou saindo e afirmou no Instagram que “não tem nada de errado em querer coisas diferentes” e que o “mais importante é buscar a excelência”. O presidente Pablo Longoria classificou as fricções como “profissionais, não pessoais” e admitiu que os reforços tiveram um papel central no fim da relação, mas culpou o timing.
– Todo mundo tem as mesmas ambições, mas é o tempo por alcançá-las que é diferente. A janela de transferências é como presentes de Natal. Todo mundo está esperando o seu. Não acho que falta ambição, é questão de tempo – disse.
Em número de partidas (66), foi seu trabalho mais longo por clubes desde a Universidad de Chile, o que ilustra muito bem como as relações rapidamente se deterioram nos clubes que treina. A próxima empreitada foi tentar terminar o que havia começado no Sevilla quando sentiu que precisava sair para comandar a seleção argentina. Até disse que não tem o costume de voltar para os lugares onde foi feliz, mas abriu uma exceção para os espanhóis porque não gostou da maneira como foi embora.
Houve uma polêmica com Isco, que teve seu contrato rescindido em dezembro, mas por uma briga com o diretor Monchi, não com Sampaoli. A segunda passagem pelo Sevilla nem foi conturbada. Foi apenas fraca. Demitido em março, deu lugar a José Luis Mendilibar, que conseguiu conduzir mais uma campanha vitoriosa na Liga Europa.
Sampaoli assumiu o Flamengo em abril. Perdeu apenas uma das últimas 21 partidas, encaminhou a classificação à final da Copa do Brasil e parecia que tudo estava bem. Até não estar mais.
A conturbada carreira de Sampaoli desde La U
- Universidad de Chile (2010-2012)
- Chile (2012-2016)
- Sevilla (2016-2017)
- Argentina (2017-18)
- Santos (2019)
- Atlético Mineiro (2020-21)
- Olympique de Marseille (2021-22)
- Sevilla (2022/23)
- Flamengo (2023-)