Ásia/Oceania

Com apoio da FIFPro, governo australiano resgata jogadoras de futebol e outras atletas afegãs em Cabul

Por conta dos riscos e perseguições, um grupo de 75 mulheres esportistas deixou o Afeganistão em voo garantido pela Austrália

Nesta terça-feira, o governo da Austrália promoveu o resgate de um grupo de 75 jogadoras de futebol e outras atletas afegãs em Cabul. A evacuação através da força aérea australiana foi apoiada pela FIFPro, entidade que representa os futebolistas profissionais ao redor do mundo. Diante da volta do Talibã ao poder no país, existia um claro temor de que as esportistas fossem perseguidas. As atletas afegãs vinham sendo orientadas a se esconder e a eliminar evidências de suas trajetórias, por conta das restrições impostas às mulheres pelo Talibã e pela maneira como elas quebraram barreiras para disseminar suas modalidades durante as duas últimas décadas. A Austrália também providenciou vistos às jogadoras.

“Somos gratos ao governo australiano por evacuar um grande número de jogadoras de futebol e atletas do Afeganistão. Essas jovens, como esportistas e ativistas, estavam em posição de perigo e, em nome de suas colegas ao redor do mundo, agradecemos à comunidade internacional por ter vindo em seu auxílio”, afirmou a FIFPro. “Gostaríamos de prestar tributo ao trabalho incansável e ininterrupto de muitas pessoas, incluindo Khalida Popal, Kelly Lindsey, Nikki Dryden, Alison Battisson, Haley Carter e Craig Foster em ajudá-las a garantir uma viagem segura para fora do Afeganistão”.

O grupo de 75 pessoas incluía também familiares das atletas. Estavam presentes jogadoras da seleção principal, da seleção juvenil e também dirigentes ligadas ao futebol feminino. As mulheres resgatadas precisaram atravessar postos de controle estabelecidos pelo Talibã ao redor de Cabul. Algumas delas foram espancadas e precisaram fugir de tiros para conseguir chegar ao aeroporto. Advogados ligados aos direitos humanos e organizações não-governamentais deram apoio à evacuação.

Segundo a FIFPro, o trabalho agora se voltará para acolher essas atletas no novo país, providenciando a ajuda necessária. A entidade também enfatiza como outros esportistas permanecem em situação de risco no Afeganistão, o que demandaria novos esforços da comunidade internacional em oferecer apoio. Ao todo, a Austrália evacuou em voos militares cerca de mil pessoas de Cabul.

Antiga capitã da seleção do Afeganistão e pioneira do esporte no país, Khalida Popal teve um papel importante na ação. A veterana mora como refugiada na Dinamarca, após deixar Cabul em 2011 exatamente pela perseguição sofrida por seu ativismo em prol do futebol feminino. Mesmo distante, ela se manteve em contato para coordenar as jogadoras e auxiliar em suas fugas. Treinadoras no Afeganistão, Kelly Lindsey e Haley Carter também participaram da iniciativa. Já Craig Foster, antigo capitão da seleção australiana, auxiliou através do diálogo com o governo de seu país para conceder os vistos.

“Os últimos dias foram extremamente estressantes, mas hoje alcançamos uma vitória importante. As jogadoras de futebol foram corajosas e fortes em um momento de crise. Esperamos que elas tenham uma vida melhor fora do Afeganistão. Porém, ainda há muito mais trabalho a se fazer. O futebol feminino é uma família e devemos garantir que todos estejam seguros”, declarou Popal.

Em entrevista recente ao jornal The Guardian, Popal ressaltou como o futebol feminino no Afeganistão era um ato de resistência, mesmo quando o Talibã não estava no poder: “A seleção feminina do Afeganistão foi construída para lutar contra o Talibã e contra a ideologia talibã, contra as pessoas que tomaram o direito à educação e o direito à participação social das mulheres, que as mantiveram sob silêncio, em casas escuras, incapazes de sair, aprisionadas. A criação do time foi uma forma de ativismo para nós, uma maneira de nos levantarmos e enviarmos uma mensagem ao Talibã de que as mulheres do Afeganistão estão unidas”.

Contudo, se as perseguições já eram comuns durante o período de invasão americana, as jogadoras temiam execuções em massa a partir do retorno do Talibã ao poder: “O simples ato de jogar e participar de esportes é uma violação à lei sharia. Mesmo se for apenas uma vez. Se a lei é estrita, isso significa morte por execução. Cada vez que nossas jogadoras iam para o campo, havia histórias de algumas se tornando alvos de cuspes e pedras, ou então de comentários terríveis. Elas convivem com isso há 20 anos. Se isso era aceitável sob a chamada democracia, como seria agora?”.

Kelly Lindsey, ex-jogadora da seleção americana e treinadora da seleção afegã até 2020, salientou como a luta é mais ampla e também não deve se restringir às atletas: “A comunidade esportiva internacional pediu às mulheres afegãs que defendessem seus direitos. Dissemos a elas que era a coisa certa a fazer. Como esportistas, temos a responsabilidade de garantir a segurança delas agora. Elas são parte importante da jornada pela igualdade a todas as mulheres ao redor do mundo – se podem fazer isso no Afeganistão, podem fazer em qualquer lugar. As entidades esportivas precisam assumir a responsabilidade. E quem sou eu para dizer que minhas garotas são mais importantes que mulheres ativistas ou jornalistas? Tirem todas de lá”.

Secretário-geral da FIFPro, Jonas Baer-Hoffmann reiterou a mensagem e indicou que os esforços da entidade continuarão para novos resgates: “Estamos aliviados que este grupo de jogadoras de futebol e atletas tenha conseguido deixar o Afeganistão hoje. Tem sido um processo incrivelmente complexo para todos os envolvidos garantir a evacuação. Nossos corações estão com todos os outros que permanecem presos no país contra a sua vontade”.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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