Por que Maradona estaria orgulhoso do movimento por greve no futebol
"Dios" argentino teve seu período como sindicalista ao fundar associação dos jogadores em busca de melhores condições
O futebol mundial, em especial o europeu, vive um momento quase inédito na história com o movimento de diferentes jogadores contra o calendário, expandido com a Champions League e o “Super” Mundial de Clubes, e sendo favoráveis a uma greve.
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O primeiro a levantar esse discurso de paralisação foi Rodri, do Manchester City, na última semana, depois seguido por Jules Koundé, do Barcelona, Carvajal, do Real Madrid, e muitos outros questionados pela imprensa ao redor da Europa.
Esse movimento não aconteceu na história moderna no jogo, mas um cara que estaria orgulhoso dessa união entre jogadores seria Diego Armando Maradona.
O eterno “Dios” do povo argentino, falecido em novembro de 2020 por uma insuficiência cardíaca, liderou um movimento há 29 anos que lutava pelos direitos dos atletas contra os desmandos da Fifa, à época presidida pelo brasileiro João Havelange.
O ‘sindicalista' Maradona fundou associação de jogadores
O levante atual pela saúde dos jogadores contra o calendário inchado inicia em setembro, mesmo mês que em 1995 Maradona fundou a Associação Internacional de Futebolistas Profissionais (AIFP) ao lado dos brasileiros Raí e Bebeto, além de Éric Cantona, Stoichkov, George Weah e outros.
— [Os jogadores querem] participar da gestão do futebol mundial. A associação terá como objetivo a defesa dos princípios fundamentais do futebol e a salvaguarda dos direitos morais, sociais e de personalidade dos jogadores.. — explicou o argentino no dia da fundação.
Dios foi eleito o presidente da entidade, enquanto Cantona ficou a vice-presidência.
O argentino acreditava que o futebol tinha se tornado cada vez mais um negócio e os interesses estavam nas mãos dos empresários, sejam donos dos clubes, empresas de mídia ou de publicidade.
A ideia da organização era incomodar a entidade máxima do esporte e ser uma voz a uma classe que não tinha direito de escolha no que acontecia no futebol: apenas obedeciam às ordens de clubes, federações, Uefa e Fifa, por exemplo.
— O jogador de futebol é o mais importante e vamos defender suas reivindicações até a morte. — disse Maradona em uma das reuniões da AIFP, em 1997.
— Temos que lutar por um sindicato forte, porque as pessoas não vão a campo pelos líderes. — afirmou outra vez.
A Fifa de Havelange obviamente não assistiu isso alheia. “Apenas joguem e fiquem de boca fechada“, explanou o mandatário da instituição como resposta à fundação da AIFP.
Já o então número 2 da Fifa, Joseph Blatter (que seria presidente após Havelange), disse à revista Placar, em dezembro de 1995, que “A FIFA não fala com os jogadores. Os jogadores são funcionários dos clubes”.
— O Blatter é um cara pago e o Havelange, que sempre jogou polo aquático, decide por mim, coisa que não pode continuar assim. Diria apenas a Havelange e a Blatter que a partir desta união vamos defender os jogadores contra quem quer que seja. — rebateu Maradona.
Inicialmente, Pelé, um aliado da entidade máxima do futebol, se manteve quieto, mas, em 1996, apoiou a associação do colega argentino, segundo o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano no livro Fechado por Motivo de Futebol (publicado no Brasil pela L&PM Editores).
— O sindicato recebeu uma carta de Pelé, responsável pela arte do futebol. Apesar das notórias divergências com Maradona, o chefe do sindicato, Pelé saudou a iniciativa e anunciou: ‘Vamos formar o melhor time de todos os tempos, o time dos atletas livres'. — escreveu o escritor sobre o Rei do Futebol, falecido no fim de 2022.
O ‘nascimento' do Maradona sindicalista
Cerca de dois meses após a fundação da associação de jogadores, Maradona recebeu da Universidade de Oxford o título de “professor inspirador de alunos sonhadores” e discursou na tradicional instituição americana de ensino superior.
O jornalista Roberto Parrottino, em uma matéria ao jornal argentino Tiempo, contou essa visita e a definiu como quando “surgiu o sindicalista Diego“.
— Maradona concentrou suas palavras no “desenvolvimento da mídia” e na transformação do futebol em “esporte empresarial”. Ele citou o “assédio aos grandes homens do negócio do futebol” e “a convicção quase majoritária de que os jogadores de futebol eram pessoas sem instrução, muito rudimentares ou primitivas”. De jogadores de futebol sem “possibilidade de acesso à educação ou boa alimentação, vestuário ou medicamentos”. “Começamos a perceber a necessidade de humanizar nossa profissão”, disse ele. — escreveu Parrottino, no Tiempo.
Mas o Pibe de Oro já tinha reclamações contra a Fifa bem antes disso, a partir de 1986. A relação com a entidade foi se deteriorando especialmente após duas suspensões do jogador por uso de cocaína.
O auge, claramente, a fundação da AIFP e as reivindicações da associação.
Propostas da AIFP e um jogo histórico de abertura
A apresentação oficial do sindicato só aconteceu em abril de 1997, com um amistoso entre um time da Europa contra outro do resto do mundo no estádio Olímpico de Montjuïc, em Barcelona.
A partida amigável também era uma mensagem contra o preconceito, e Maradona conseguiu convocar figuras de peso da história do futebol. Entre aposentados nomes como Alfredo Di Stéfano, Johan Cruyff e Sócrates.
Já aqueles que estavam em atividade, jogaram Zinedine Zidane e Jürgen Klinsmann, além de outros fundadores da AIFP, como Weah e Stoichkov.
— A Associação Internacional de Futebolistas Profissionais arrancou em Barcelona, num dia contra o racismo e a discriminação. Foi um batismo eloquente, que tem muito a ver com a memória e a realidade do espoprte mundial. Os maiores craques do futebol sofreram racismo, por serem negros ou mulatos, ou sofreram discriminação, por serem pobres. E em muitos casos, aliados à cor da pele e à origem social, foram vítimas de ambas as humilhações ao mesmo tempo. Em campo encontraram uma alternativa ao crime, ao qual nasceram condenados pela média estatística. — escreveu Eduardo Galeano sobre a partida.
A AIFP sonhava que a organização da Copa do Mundo passasse ao controle dos jogadores, que poderiam trazer a visão de quem jogou na diagramação.
— Todos sabem o mesmo que eu, mas poucos se atrevem a se opor a Blatter, Havelange e Grondona [ex-presidente da Associação Argentina de Futebol]. […] Queremos nos reunir e planejar a Copa do Mundo entre nós e tudo o que tem a ver com os jogadores. Não pode ser que façam diagramas sem saber como é ter jogado, sem saber o que o jogador sente. Eles não têm direitos. — afirmou Dios à época.
Infelizmente para Maradona e outros membros da organização, as tentativas de mudança no esporte e maior protagonismo não deram certo.
A associação tentou que os atletas recebessem parte dos milionários contrato televisivos. Além disso, reivindicou que as partidas não fossem disputadas ao meio-dia pela saúde dos jogadores (algo próximo do protesto atual pelo calendário).
— Os jogadores de futebol são pessoas muito individualistas, temos muito que aprender para que isso avance. — lamentou o brasileiro Sócrates após os insucessos da entidade.
Talvez o único grande feito tenha sido o apoio do belga Jean-Marc Bosman, quem mudou a história do futebol em 1995 ao vencer um processo contra a Uefa que permitiu que atletas pudessem deixar seus clubes ao fim do contrato, além de outros pontos que deram mais poder aos jogadores.
A AIFP não funcionou, mas plantou que talvez influencie no papel de hoje da Fifpro (Federação Internacional de Associações de Futebolistas Profissionais).
Fifpro iniciou questionamentos ao calendário com processo
Fundada em 1965, antes da associação de Maradona, a Fifpro hoje é a porta-voz dos interesses dos atletas.
Nos últimos anos, a federação se manteve discreta e quieta, mesmo com o calendário cada vez maior, como na expansão da Copa do Mundo para 48 seleções a partir de 2026.
A Fifpro voltou aos holofotes ao entrar em processo contra a Fifa em junho deste ano.
O motivo é o novo Mundial de Clubes, agora disputado de quatro em quatro anos e com 32 clubes, que tornará o calendário mais longo principalmente aos jogadores do futebol europeu.
— Jogadores e seus sindicatos têm destacado de maneira consistente que o calendário do futebol está sobrecarregado e inviável. O novo torneio [Mundial] terá 32 clubes e seus atletas terão que disputar a competição nos Estados Unidos entre a metade de junho e a metade de julho de 2025. Com o período de preparação e a viagem, o torneio vai criar cerca de seis semanas de trabalho adicional para um calendário que já está bastante inchado. — justificou a Fifpro em comunicado sobre o processo.
A ver se essa soma de questionamentos, vindo em processos da Fifpro e outras ligas da Europa e o posicionamento dos jogadores, altere algo no calendário mundial e os atletas, como queria Maradona, tenham finalmente voz para participar das decisões no futebol mundial.