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Entre fantasmas e galinhas, o River se reergue com o brio e o talento de um grande campeão

“Pongan huevo! Son River, la puta que te parió! No me puedo creer, la puta que me parió! No! No! Estamos en la B! Estamos en la B!”. Tano Pasman quase cuspiu o próprio coração. Estava aos nervos no jogo que determinou o rebaixamento do River Plate no Campeonato Argentino. Em 2011, os millonarios eram amaldiçoados para sempre pelo Fantasma de la B. No entanto, a partir de então, também começariam a escrever um épico. Que chegou a seu grande momento nesta quarta, no Monumental de Núñez pulsando em 62 mil almas alvirrubras. De sua poltrona, Pasman deve ter falado outros tantos impropérios. Desta vez, da mais pura alegria. A comemoração pela vitória por 3 a 0 sobre o Tigres. Pela terceira taça da Libertadores. Pela ascensão que se desenhou em três anos consecutivos, com três títulos continentais.

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A reviravolta marca a conquista do River Plate. A maior delas, aquela que se desenhou lentamente, desde o acesso em 2012. Depois disso, os millonarios caminharam passo a passo rumo ao topo da América. Voltaram a ganhar o Campeonato Argentino, antes de triunfarem também na Copa Sul-Americana. Depois, ainda veio a Recopa. E a equipe de Marcelo Gallardo voltou à Libertadores após seis anos entre os favoritos. Por mais que a fase de grupos tenha apontado o contrário.

O River Plate só avançou por um milagre. Passou as cinco primeiras partidas sem vencer. Na quinta, aliás, escapou da eliminação por um triz. Teo Gutiérrez e Rodrigo Mora buscaram o empate por 2 a 2 contra o Tigres depois dos 41 do segundo tempo. O mesmo Tigres que referendou a classificação dos argentinos como o pior time na segunda fase. Enfim, o River venceu a primeira, superando o San José de Oruro dentro de casa. Mas precisou mesmo de uma vitória maluca do time reserva dos mexicanos, que bateram o Juan Aurich por 5 a 4 no Peru, em noite de duas viradas. Talvez a maior ironia do destino.

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No Superclássico das oitavas, o Boca Juniors que atropelou na primeira fase. E que também se esqueceu de jogar contra os rivais, muito mais cascudos para os duelos tensos, até por já terem eliminado os xeneizes nas semifinais da Copa Sul-Americana. Ainda assim, por mais que os millonarios tenham sido melhores, a classificação só veio depois de muita dor e medo. O spray de pimenta da Bombonera marcou para sempre o “Clássico da Vergonha”. O boquense amaldiçoado nesta noite por todos os seus pares, ao ajudar os arqui-inimigos a avançarem sem os 45 minutos finais e a crescerem na Libertadores.

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Na sequência, o River Plate eliminou o Cruzeiro com uma atuação impressionante no Mineirão, a melhor do clube na competição. Espantou qualquer chance de surpresa contra o Guaraní, especialmente pela maneira como furou a zaga no Monumental. E fechou o último capítulo da epopeia diante do mesmo Tigres que o salvou. O time ofensivo de Marcelo Gallardo se transformou no México, jogando como um campeão sul-americano diante da pressão dos felinos: se fechou na defesa e arrancou no 0 a 0. Em Núñez, partiu para cima. Conseguiu se impor, golear e ficar com a taça.

Após a impressionante entrada em campo, digna do renascimento do River Plate, o jogo não começou tão bem. Fechado, o Tigres continha o abafa dos donos da casa e até teve a chance de abrir o placar em erros dos adversários. Contudo, bastou um lampejo, no único lance de real perigo do primeiro tempo, para o gol sair pouco antes do intervalo. Vangioni fez um lance fenomenal pela esquerda, colocando a bola por entre as pernas do marcador. Cruzou para Lucas Alario completar de peixinho dentro da área. Justo ele, com a responsabilidade de substituir Téo Gutiérrez. Garoto de 22 anos que não sentiu o peso da cobrança e decidiu mais do que qualquer outro desde as semifinais.

O Tigres até tentou se recobrar do prejuízo no segundo tempo. Só que o River também tem suas virtudes defensivas, e mal deixou Rafael Sóbis e Gignac finalizarem. Pelos lados, Damm e Aquino não se criavam. E os millonarios tinham as suas chances de ampliar. Conseguiram aos 30 minutos, com Carlos Sánchez. Um dos protagonistas do clube desde a reconstrução na B, ele sofreu pênalti e cobrou. O melhor alvirrubro desta Libertadores. Já quatro minutos depois, o tento que sacramentou a vitória. Ramiro Funes Mori, um dos que mais sofreu com o spray de pimenta na Bombonera, abriu bem os olhos para cabecear e fazer o terceiro gol. A partir de então, a torcida podia cantar sem receio. Erguer a Libertadores novamente, após 19 anos, seria questão de minutos. Libertação evidenciada pela invasão de campo ao apito final.

O River Plate campeão deixa para trás o fantasma da B, ainda que nunca apague o rebaixamento. Esquece os tantos traumas que escreveram a sua trajetória na Libertadores desde 1996, com eliminações melancólicas nas semifinais e nas quartas de final de maneira sistemática. Nega o apelido de “galinhas”, nascido na virada de 1966 e reforçado pelo gol de Tevez nas semifinais 2004, especialmente pela maneira como o time encarou os seus desafios. Exalta os seus vencedores.

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Coragem, aliás, é a palavra de ordem em um time que também possui muita qualidade técnica. Não houve o que intimidasse o River ao longo da campanha. Um brio liderado por Marcelo Gallardo, o antigo capitão e craque que participou de muitos dos momentos frustrantes, mas terminou de reerguer os millonarios como técnico. Ao seu lado, outro símbolo da reviravolta é o zagueiro Maidana, xingados por Tano Pasman em 2011 e que agora é celebrado por seus torcedores.

O impossível se tornou uma palavra banal na Libertadores nos últimos anos. Basta vez as desconfianças ou os milagres que marcam os últimos campeões. De certa forma, o River Plate une as duas coisas. Se achavam loucura que os rebaixados reconquistassem o continente em tão pouco tempo, eles conseguiram. Se já o davam como peso morto pela péssima primeira fase, eles se superaram. Se rezavam o milagre necessário em diferentes momentos, eles alcançaram. Com méritos evidentes, os millonarios erguem a Libertadores. O Mundial será apenas um prêmio a mais. A façanha está cumprida, especialmente na cara daqueles que desacreditaram e riram da cara dos alvirrubros. A América agora pulsa a partir de Núñez.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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