Técnico campeão da Copa da Argentina lutou na Guerra das Malvinas: ‘Futebol salvou minha vida’
Omar de Felippe, do Central Córdoba, dedicou o título aos veteranos de guerra travada nos anos 1980
Um título histórico do futebol argentino aconteceu na noite da última quarta-feira (11). O modesto Central Córdoba bateu o favorito Vélez Sarsfield por 1 a 0 e venceu a Copa da Argentina. Esse é a maior taça do clube que já é centenário, mas só tinha conquistado títulos da segunda e terceira divisões.
Talvez o grande personagem dessa campanha, além do autor do gol Matías Godoy, é o técnico Omar de Felippe, de 62 anos, que assumiu a equipe apenas em julho, conduziu o time ao título e tem uma tremenda história de vida: lutou na Guerra das Malvinas, nos anos 1980, e demorou até superar o trauma para falar sobre o assunto.
Na coletiva pós-título, ele voltou a abordar sua experiência no conflito e comparou com a rotina dos argentinos.
–– É o que acontece com qualquer argentino. Você tem que acordar às 5 da manhã, pegar o ônibus, ir trabalhar e o dinheiro não chega. [Nas Malvinas] Tínhamos que acender uma fogueira e secar a roupa. Se não havia comida, procurávamos de qualquer maneira. Tínhamos que sobreviver e é a mesma coisa: é preciso levantar todos os dias, trabalhar e melhorar, no calor e no frio, você tem que prevalecer sobre tudo na vida — explicou.
De Felippe também mandou um recado para veteranos da guerra que se sentiram representados e torceram pelo título do Central.
— Estou muito grato a muitos veteranos de guerra que viveram a mesma coisa e, embora sejam torcedores de outros times, apoiaram o Central Córdoba para ser campeão. Quero agradecer publicamente. Sinto que os represento e quero compartilhar a alegria com eles — celebrou.
UNA REFLEXIÓN DE VIDA Y UN MENSAJE A LOS VETERANOS DE GUERRA DE MALVINAS: emocionantes palabras de Omar De Felippe.
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De Felippe viu companheiros morrerem na Guerra das Malvinas
Nascido em 3 de abril de 1962, Omar De Felippe sempre sonhou com o futebol e estava nas categorias de base do Hurácan quando cumpriu o serviço militar obrigatário em 1981.
Foi liberado no fim daquele ano, mas em 2 de abril de 82 o ditador que ocupava a presidência naquele momento, Leopoldo Fortunato Galtieri, ordenou a invasão das Ilhas Malvinas (Falkland para os britânicos). Uma semana depois, lá estava o então jogador a servir no conflito.
— Éramos mais ou menos uns 100 [soldados] no chão do avião, que era um avião comercial, mas sem assentos. Na viagem de seis horas até Río Gallegos ninguém falou nada. E nem de Río Gallegos até as Malvinas. Foi aí que dissemos: ‘A coisa é séria' — disse De Felippe em entrevista à revista “El Gráfico”.
Omar não chegou a se ferir no campo de batalha, mas viu a morte de outros combatentes de perto. Em uma carta enviada ao amigo Claudio Morresi em maio daquele ano, ele relatou as dificuldades.
— A verdade é que não comemos bem e como vocês também sabem, faz um frio absurdo. Já estamos cansados de estar aqui e esperar que os ingleses tentem tomar as ilhas. O que queremos é que, se não for consertado, se eles vierem assim, nós os explodiremos ou eles nos explodirão — escreveu.
As tropas argentinas ocuparam as ilhas por quase dois meses, mas as forças do Reino Unido tomaram o controle, com saldo de 600 mortes do lado sul-americano e 200 britânicos.
— No início, alguns jovens se feriam de propósito, para voltar para casa. Quando estavam limpando as armas, davam um tiro no próprio pé. Diziam que tinha escapado… E voltavam para a Argentina. Quando muitos começaram a fazer isso, os chefes perceberam e disseram ‘bom, daqui em diante quem estiver ferido vai ficar'. Eu nunca teria feito isso. Tinha a motivação de jogar no Huracán. Meu medo era perder um membro e não poder continuar jogando.
De Felippe conseguiu voltar para casa após a rendição e viveu um trauma de sete anos sem conseguir falar sobre o assunto. Mesmo assim, conseguiu construir uma carreira no futebol, se mostrando várias vezes grato pelo esporte, que “salvou sua vida”, garante.
— [O futebol] Me deu a oportunidade de ter um objetivo a seguir, de praticar o que eu gostava. Acho que se todos nós que voltamos das Malvinas naquela época tivéssemos tido a oportunidade de fazer algo, sentindo-nos importantes, muitas vidas teriam sido salvas. Naquele momento você não percebe, você vê com o passar dos anos e diz: ‘Nossa: quantos caras poderiam estar conosco hoje' — relatou certa vez.
Omar conquistou o grande título da carreira no Córdoba
Como jogador, De Felippe voltou ao Huracán no pós-guerra e também defendeu Arsenal, Once Caldas, Villa Mitre, Rosario Puerto Belgrano e Olimpo.
Após 11 anos nos gramados, fez um curso e se dedicou a carreira à beira do campo, em outra mostra de como não conseguia se desvincilar do futebol. Inicialmente, foi auxiliar técnico de Ricardo Zielinski e Julio César Falcioni.
A primeira experiência como técnico principal foi justamente no Olimpio, onde se aposentou como jogador. Na pequena equipe, conquistou o título da segunda divisão, o que era até ontem sua grande conquista em seu país.
Omar também trabalhou por Quilmes, Independiente, Emelec (onde venceu o Campeonato Equatoriano), Vélez, Newell's Old Boys, Atlético Tucumán e Platense. Ele passou pelo Córdoba entre o meio e o fim de 2023, voltando em julho de 2024.
Nesta segunda passagem, acumula 10 vitórias em 21 jogos, além de sete empates e quatro derrotas. O time é apenas o 20º no Campeonato Argentino, mas não corre risco de rebaixamento.
Em 2025, o Central disputará a Libertadores pela primeira vez em sua história, provavelmente sob o comando de um veterano que representa a resiliência do povo argentino em um dos maiores traumas do país.
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— Club Atletico Central Córdoba (@cacc_sde) December 12, 2024