60 anos de revolução no futebol alemão: A história da criação da Bundesliga
Em 24 de agosto de 1963, a Bundesliga iniciou sua história como liga nacional na Alemanha e recontamos os meandros de toda essa construção
Texto originalmente publicado em agosto de 2013 e ampliado
A Bundesliga é a competição nacional mais recente dentre as principais ligas da Europa. O Campeonato Alemão existe desde 1903, mas os primeiros 60 anos do torneio tiveram um formato distinto, com uma fase final que reunia os melhores times dos certames regionais. O conceito de liga nacional só foi abraçado de verdade pelos alemães-ocidentais na temporada 1963/64, com a rodada inicial ocorrida há exatos 60 anos, em 24 de julho de 1963. Não seria um caminho tão simples até que a adoção de formato acontecesse, numa história muito influenciada pelo jogo de poder e até pelas guerras. Mesmo depois de inaugurada, a Bundesliga também enfrentou outros desafios tremendos – as fraudes, a resistência ao profissionalismo, as quedas de público.
Passadas seis décadas desde aquele apito inicial da Bundesliga, o saldo é positivo. O Campeonato Alemão representa um sucesso de público inegável, assim como possui um viés comunitário singular em seus clubes. Muitas decisões tomadas na Bundesliga servem de parâmetro no futebol, da abertura a patrocinadores à divisão mais igualitária do dinheiro da televisão. Abaixo, aproveitamos a data especial para reconstruir essa história, desde a resistência à unificação do Campeonato Alemão até os marcos temporais nesses 60 anos de Bundesliga.
Os primórdios do Campeonato Alemão
O futebol começou a florescer no Império Alemão a partir da década de 1870. O esporte chegou ao país através de professores e estudantes, bem como de trabalhadores sob influência da Inglaterra. A década de 1880 acabou marcada pelo surgimento de diversos clubes, concentrados em cidades importantes como Berlim, Frankfurt e Hamburgo. Também foram criadas as primeiras associações locais, que organizavam competições citadinas e regionais. Já a criação da DFB, a federação alemã, aconteceu em janeiro de 1900. Representantes de 36 clubes se encontraram em Leipzig para formar a entidade que concentraria a organização do esporte no país. Ao todo, 86 equipes foram signatárias da associação em sua fundação.
A criação de um Campeonato Alemão surgiu pouco tempo depois, em 1903. Mesmo com o início da DFB, a forte regionalização do futebol alemão prevalecia e a ideia encontrou certa resistência das associações regionais, sob o temor de que seus torneios fossem desprestigiados. Assim, a competição nacional surgiu dentro dessa estrutura capilarizada. A primeira versão do Campeonato Alemão era muito parecida com a ideia que imperava na Copa do Rei e que décadas depois também seria aplicada na Taça Brasil: os campeões regionais se juntavam ao final da temporada num torneio de tiro curto, que determinaria o melhor do país. O calendário era ocupado pelas competições locais, enquanto a cereja do bolo ficava para a fase final do torneio nacional.
Na época em que o Campeonato Alemão saiu do papel, em 1903, mais de 150 times faziam parte da DFB. E a entidade também abarcava 30 associações regionais distintas. Desta maneira, a primeira edição do torneio poderia ter englobado 30 campeões regionais, mas apenas seis aceitaram a empreitada. O certame acabou realizado em menos de um mês, ao longo de maio de 1903. Entre os participantes não estavam apenas times limitados ao território do Império Alemão, mas também representantes de colônias alemãs em países vizinhos, como o DFC Praga. O formato era simples, com mata-matas em jogo único até definir o campeão.
A primeira partida da história do Campeonato Alemão, em 3 de maio de 1903, aconteceu na cidade de Altona, norte do país. O Altonaer 1893 inaugurou os trabalhos com uma goleada por 8 a 1 sobre o Victoria Magdeburgo. Aquela primeira edição do torneio teve suas particularidades. A partida entre Deutscher Fussball-Club de Praga e Karlsruher inicialmente deveria acontecer pelas quartas de final, mas depois acabou promovida como semifinal. Tal mudança foi possível pela falta de equipes no certame e pelo atraso na realização do duelo, com a discordância entre os clubes sobre o local onde ele ocorreria. No fim das contas, o Karlsruher teria recebido um telegrama falso de que o jogo seria adiado e nunca se apresentou para o embate em Leipzig. O DFC Praga avançou diretamente à final sem nem entrar em campo.
O primeiro campeão da Bundesliga foi o VfB Leipzig, representante da cidade que é considerada o berço da federação. A equipe eliminou o Britannia Berlim na estreia e depois deixou pelo caminho o Altonaer 1893. A decisão contra o DFC Praga aconteceu em Altona, cidade bem distante para os finalistas, e apenas 2 mil espectadores compareceram nas arquibancadas. A decisão contou com um show do Leipzig, que goleou os oponentes por 7 a 2. Os primeiros campeões nacionais dariam origem, décadas depois, ao Lokomotive Leipzig – que se tornou uma potência dentro da Alemanha Oriental.
O maior símbolo daqueles primórdios era o suntuoso troféu oferecido pela DFB: a Taça Victoria, que representava a alada deusa romana da vitória. A peça tinha uma base onde seriam registrados os times campeões, enquanto a escultura da Deusa Vitória sentada sobre uma pedra era feita em bronze. A inspiração vinha de uma escultura em mármore de Christian Daniel Rauch, concluída em 1845 e presente no Palácio da Cidade de Berlim. O troféu foi doado pelo Império Alemão à federação depois das Olimpíadas de 1900, e deveria se revezar entre os campeões nacionais de futebol e também de rúgbi. No entanto, a partir de 1903, a Taça Victoria passou ao VfB Leipzig e ficaria nas mãos apenas do vencedor no futebol.
Os primeiros planos de uma Reichsliga
A partir de 1904, o Campeonato Alemão não mais permitiu a participação de clubes localizados fora do território, como o DFC Praga. Outro momento importante aconteceu em 1906, quando a DFB partilhou o território do Império Alemão entre suas associações regionais e deixou os limites mais claros dentro da divisão interna. Já em 1910, com a franca expansão do futebol no país, a federação abriu sua sede em Dortmund. Na época, a entidade abrangia 1361 times espalhados por 641 cidades. Enquanto isso, mais de 110 mil jogadores estavam sob o comando da associação. Ainda existiam entidades paralelas em nível regional, mas a força da DFB como estrutura central estava expressa.
Naquele momento, o Campeonato Alemão abrangia times que hoje pertencem a territórios de países como a Polônia, a Rússia, a República Tcheca e a Dinamarca. O torneio não aconteceu de 1915 a 1919, em decorrência da Primeira Guerra Mundial. A retomada se deu num território reduzido em relação aos primórdios, como consequência da derrota da Alemanha no conflito. A partir de 1920, a competição passaria a contar com suas primeiras grandes hegemonias, graças à força de Nuremberg e de Hertha Berlim. O Campeonato Alemão também passou por uma expansão no número de participantes em 1925, com 16 equipes classificadas à fase final. Com isso, vice-campeões regionais também passaram a ser admitidos na etapa principal.
A esta altura, já existiam interesses em transformar o Campeonato Alemão numa liga nacional. O Campeonato Inglês se aproximava dos 50 anos, enquanto outras iniciativas despontavam na Europa continental, como o Campeonato Espanhol e o Campeonato Italiano. O modelo da Serie A, inclusive, poderia ser visto como exemplo diante da onda de autoritarismo crescente na Alemanha. A nacionalização do torneio estava dentro dos planos do regime fascista de Benito Mussolini, que passou a usar o esporte como uma ferramenta de poder. Clubes foram unificados e a competição passou a abranger o território nacional com mais força, enquanto existia um projeto para impulsionar a seleção.
Um dos principais partidários para a criação da chamada Reichsliga era o presidente da DFB, Felix Linnemann. Contava com o apoio inclusive das duas principais mentes por trás da seleção naquele momento, o técnico Otto Nerz e seu assistente Sepp Herberger. A ideia era fortalecer o nível competitivo e, por tabela, elevar também a qualidade do Nationalelf. Existia um entendimento de que os jogadores não estavam sendo desafiados ao seu melhor de forma constante nas ligas regionais. Àquela altura, porém, o poder na DFB estava arraigado dentro das federações locais, tal qual a CBF ainda hoje. Qualquer tipo de reestruturação que tirasse o poder dessas entidades acabaria fatalmente rechaçado. Assim, a ideia da Reichsliga não saiu do papel. A votação, realizada em outubro de 1932, acabou com derrota dos planos de nacionalização.
Mais um ponto importante que ganhava destaque nos debates naquele momento era o da profissionalização do Campeonato Alemão. Da mesma maneira, a transição era vista como importante para elevar o nível competitivo. Contudo, prevalecia um senso de que o amadorismo “valorizava o esporte” e que uma mudança no regime poderia “desmoralizar a modalidade”. Mesmo nomes importantes dentro da DFB, como o próprio Sepp Herberger, tinham as suas reticências. No fim, a aprovação dos pagamentos aos atletas foi apenas parcial, com limitações. Imperava o amadorismo marrom, em que muitos jogadores eram recompensados por seus sucessos em campo através de prêmios ou mesmo de empregos paralelos às carreiras como futebolistas.
Os nazistas se apoderam também do futebol
Uma cisão importante no Campeonato Alemão ocorreu em 1933, mas nada relacionado à ideia de uma liga unificada: afinal, os nazistas chegavam ao poder naquele momento. O futebol também teve sua estrutura reformada, com o privilégio a dirigentes partidários do regime e a perseguição especialmente à comunidade judaica dentro do esporte – algo ocorrido, por exemplo, com o inédito campeão nacional de 1932, o Bayern de Munique. Os clubes e a própria DFB foram “nazificados”, com membros do partido chegando aos postos executivos. O número de equipes também foi reduzido, com muitas delas dissolvidas. Os próprios jogadores necessitavam de “recomendações de dois não-marxistas” para conseguirem suas licenças. Há relatos de dirigentes banidos do esporte por se recusarem a fazer a saudação nazista. Os ideais da prática esportiva eram misturados com a visão de provar a “raça ariana” como superior, algo que abarcava também outras modalidades.
Já o Campeonato Alemão passou a se basear numa nova divisão regional do território da Alemanha, através das chamadas Gauligas. As associações regionais foram reformuladas em 16 entidades distintas e ganharam mais força. A partir de 1933/34, a fase final do Campeonato Alemão voltou a contar apenas com campeões regionais. Tempos em que o Schalke 04 se consolidava como uma potência, com um time muito ligado à classe trabalhadora de Gelsenkirchen e também à comunidade de imigrantes poloneses – mas que, mesmo assim, passou a ser usado pela propaganda do regime nazista por suas glórias. Além do mais, se antes a decisão do Campeonato Alemão ocorria em diferentes cidades do país, a construção do Estádio Olímpico de Berlim para as Olimpíadas de 1936 o transformou também no grande palco das finais a partir de então.
Uma novidade naquele período surgiu em 1935, com a criação da Copa da Alemanha. Era uma competição de cunho nacional, que ampliava o leque em relação ao Campeonato Alemão: tinha um número maior de participantes e não se resumia apenas aos campeões regionais. Entretanto, também não dá para dizer que a iniciativa elevava o nível da modalidade, com os geralmente 64 participantes se enfrentando num modelo de mata-matas simples. A competição seguiu em frente até 1943 e acabou descontinuada em decorrência do fim da Segunda Guerra Mundial, com sua retomada apenas nove anos depois, em 1952.
O futebol da Alemanha, de uma maneira geral, não se desenvolveu durante os anos 1930 – como na fascista Itália, por exemplo. O Nationalelf no geral teve resultados fracos nas competições internacionais. Com a presença de Adolf Hitler nas arquibancadas, a equipe sucumbiu nas quartas de final dos Jogos Olímpicos de 1936 contra a Noruega. Maior vexame ainda aconteceu na Copa do Mundo de 1938, mesmo com a anexação da Áustria e, por tabela, dos melhores jogadores austríacos. A Suíça despachou os alemães logo na fase de entrada do Mundial. A partir desse momento, a unificação do Campeonato Alemão voltou a pintar na pauta. Entretanto, a Segunda Guerra Mundial trouxe novas preocupações bem maiores nos meses seguintes.
O Campeonato Alemão se expandiu naqueles anos, à medida em que o Terceiro Reich de Hitler realizava suas invasões em territórios vizinhos. Isso se refletia no aumento de participantes na fase final do torneio. O Campeonato Austríaco, por exemplo, virou uma Gauliga e passou a classificar seu campeão para a etapa principal do Campeonato Alemão a partir de 1938/39. O Rapid Viena chegou a erguer a Taça Victoria em 1940/41. O ápice do inchaço do Campeonato Alemão aconteceu em 1943/44, com 31 participantes na fase final, que incluíam times da França, da Polônia, da República Tcheca e de Luxemburgo. Também eram comuns times ligados a departamentos das forças nazistas, como a Luftwaffe e a SS.
A última partida do Campeonato Alemão sob o regime nazista aconteceu em 18 de junho de 1944. O Dresdner SC vivia anos avassaladores e, na decisão, venceu o time da Luftwaffe de Hamburgo por 4 a 0, diante de 70 mil espectadores no Estádio Olímpico de Berlim. Um dos gols foi anotado por Helmut Schön, craque do time e futuro treinador da seleção. A esta altura, a derrocada alemã na Segunda Guerra Mundial já tinha seus reflexos dentro de campo. Muitos jogadores precisavam ir para o front e as equipes se fundiam por falta de atletas. Os bombardeios sobre os estádios se tornaram mais comuns, assim como ficou difícil de viajar entre as cidades para realizar as partidas. A derrota do Terceiro Reich se tornava iminente. Tanto é que o Campeonato Alemão de 1944/45 sequer aconteceu – depois da temporada de 1943/44 ser realizada sob protestos. Em abril de 1945, Hitler estava morto. O futebol já não era necessário para ludibriar parte da população em meio às atrocidades da guerra.
O Dresdner SC foi o último clube da Alemanha a erguer a Taça Victoria, que seguiu sendo entregue ao campeão alemão durante 41 anos. A partir de então, o paradeiro do troféu se tornou um mistério. Diferentes rumores surgiram. Uma das versões, publicada inclusive pela revista Kicker, afirma que um torcedor de Berlim ficou com o troféu e o escondeu sob uma pilha de carvão. A casa estava situada no que se transformaria na Berlim Oriental e só depois da queda do Muro de Berlim é que a Taça Victoria chegou à DFB. Outra versão, contudo, aponta que o troféu estava em Dresden inicialmente. Helmut Schön, que fugiria para o lado ocidental, tentou levar a Taça Victoria consigo. Em sua autobiografia, o futuro treinador da Alemanha Ocidental contou que o plano deu errado e acabou descoberto por um membro do novo regime comunista, que o ameaçou. O caneco, então, teria passado décadas nos cofres da federação da Alemanha Oriental em Berlim. Fato é que, a partir de 1991, a Taça Victoria voltou para as mãos da DFB e passou a ser oferecida ao campeão alemão numa cerimônia a parte. O troféu está exposto no museu da entidade, em Dortmund.
A reformulação do futebol na Alemanha que se reconstruía
O futebol alemão passou por uma longa reformulação após a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Os países que ocupavam a Alemanha dissolveram as organizações ligadas anteriormente ao regime nazista. Com isso, a maioria dos clubes de futebol foi banida. Somente depois de um ano é que as entidades esportivas puderam retomar suas atividades e muitos clubes que não estavam ligados politicamente aos nazis foram reabertos. Aos poucos, o futebol alemão retomou suas atividades dentro das estruturas já existentes das ligas regionais – agora chamadas de Oberligas. Neste primeiro momento, não havia mesmo distinção entre os territórios que se dividiriam em Alemanha Ocidental e Oriental.
A volta do Campeonato Alemão aconteceu em 1948. O modelo regional acabou mantido porque sequer era viável pensar numa Bundesliga unificada. A Alemanha enfrentava um duro processo de reconstrução, que afetava muitos clubes, já que vários estádios haviam sido bombardeados. Também se tornava complicado viajar entre diferentes zonas ocupadas, enquanto a própria limitação financeira era um entrave para fomentar o campeonato. Outro detalhe importante é que a competição ainda não refletia a divisão do país entre as áreas administradas por capitalistas e comunistas. Berlim tinha apenas um campeonato, vencido pelo Oberschöneweide, que deu origem ao atual Union Berlim. Também vinha um campeão do que se tornaria o lado oriental, o Planitz, mas a equipe foi impedida de participar do Campeonato Alemão por motivos políticos. O campeão nacional de 1948, o Nuremberg, recebeu a Salva de Prata pela primeira vez. O novo troféu era criticado por “parecer um prato de salada”, distante da imponência da antiga Taça Victoria, mas se tornou um clássico a partir de então.
A cisão da Alemanha em dois países aconteceu de fato em 1949. A partir de então, o Campeonato Alemão-Ocidental se concentrou nos representantes das Oberligas Norte, Oeste, Sul, Sudeste e Berlim. O Campeonato Alemão-Oriental, também batizado de Oberliga, representava a região leste do território e adotava os pontos corridos desde a primeira edição em 1949/50. Cabe dizer que, nestes primeiros anos, Berlim ainda continuou com uma competição só. Não à toa, o Union Oberschöneweide também se classificou para a fase final do Campeonato Alemão-Ocidental em 1950. Os jogadores não receberam permissão para viajar de Berlim Oriental para o lado ocidental e mesmo assim peitaram o regime, perdendo do Hamburgo por 7 a 0 em Kiel. Boa parte do elenco se desmembrou e muitos atletas fugiram para Berlim Ocidental antes da construção do muro. Por lá fundaram um novo clube, o Union 06 Berlim.
De um lado, o Campeonato Alemão-Oriental reorganizava seus clubes dentro da estrutura do regime comunista e as equipes passavam a ser apadrinhadas por instituições estatais, tal qual na União Soviética. Já o Campeonato Alemão-Ocidental mantinha a livre organização dos seus times, o que não significava necessariamente uma entrada total no sistema capitalista. Por exemplo, aquela mentalidade de que o profissionalismo desvirtuava o esporte prevalecia entre os clubes alemães-ocidentais. Existiam apenas concessões, mas que não significavam a adoção completa do profissionalismo. Isso proporcionava um cenário mais amplo e horizontal ao futebol local. Qualquer time, entre dezenas deles, poderia ser campeão nacional ao final da temporada dentro do modelo de Oberligas. Mesmo os craques de equipes mais modestas tinham chances na seleção, ainda bastante aberta em suas convocações.
De qualquer maneira, existiam demandas econômicas que não poderiam ser negadas pelos alemães-ocidentais. Um primeiro passo aconteceu na Oberliga Süd, que contemplava o forte Nuremberg, além de clubes como o Eintracht Frankfurt, o Stuttgart e o Bayern de Munique. Em 1948, a competição passou a estabelecer contratos para os jogadores. Antes, os futebolistas só podiam atuar se fossem sócios dos clubes. A partir de então, se estabeleceu um vínculo mais claro, embora não fosse uma relação profissional completa. A medida ainda tímida representava certo temor dos clubes: se perdessem o status de que não tinham fins lucrativos, corriam riscos de perder benefícios do poder público e isenções fiscais.
Outras associações regionais passaram a seguir o mesmo modelo, como a Oberliga West e a Oberliga Nord, a partir de 1949. Para não serem tratados como profissionais, os jogadores na Alemanha Ocidental tinham um teto salarial e mesmo limites estabelecidos por lei em relação às premiações pagas. Mais do que isso, eles precisavam ter um trabalho regular fora do esporte e provar isso para conseguir as inscrições nas competições. Obviamente, existiam maneiras de burlar tal sistema. Muitos empregos eram só de fachada. O dinheiro rolava solto por baixo dos panos.
A partir da década de 1950, as transferências entre clubes na Alemanha Ocidental se tornaram mais frequentes. O contexto auxiliava. O país vivia seu milagre econômico, com a injeção de dinheiro através do Plano Marshall. Os estádios voltavam a encher e o novo sistema de contratos facilitava as transações. Nem sempre esses negócios eram bem aceitos pelos torcedores, que chegaram a perseguir e até agredir alguns atletas por mudarem de cores. Entretanto, o Campeonato Alemão-Ocidental era só mais um inserido num contexto de florescimento das transferências na Europa. E, sem o regime profissional, havia dificuldades de competir com outras ligas. Muitos jogadores preferiam sair e buscar salários mais altos no exterior, mesmo que isso significasse renunciar à seleção. Até ligas menores, como o vizinho Campeonato Suíço, conseguiam pinçar seus talentos alemães-ocidentais.
Diante de tal concorrência, os clubes do Campeonato Alemão-Ocidental precisavam agir. Tinham um limite de dinheiro às claras, mas podiam criar cenários favoráveis nos bastidores para manter seus talentos. Foi o que aconteceu especialmente no início da década de 1950: vários jogadores que conquistariam depois a Copa do Mundo de 1954 quase deixaram a Alemanha Ocidental antes disso. Os irmãos Fritz e Ottmar Walter receberam ofertas de Helenio Herrera para defender o Atlético de Madrid. Helmut Rahn teve chance de assinar até com o Racing de Avellaneda.
A própria DFB adotava caminhos paralelos para segurar os melhores jogadores da seleção. Por exemplo, a entidade chegou a emprestar dinheiro para que Fritz Walter abrisse uma sala de cinema e uma lavanderia na Alemanha Ocidental e, assim, complementasse sua renda. Neste sentido, a situação econômica favorável do país também era um chamariz para que ninguém seguisse ao exterior. Também pesava o medo de que os forasteiros nunca mais atuassem pela seleção, o que de fato aconteceu com alguns. Além disso, prevalecia certa “ode aos valores do amadorismo” compartilhada mesmo por parte dos atletas.
De qualquer maneira, não era uma situação simples de se controlar. A década de 1950 marcou também um período de progresso no futebol europeu, com a criação da Copa dos Campeões e o fortalecimento das ligas nacionais que abriam suas portas aos estrangeiros. La Liga e Serie A, em especial, reuniam uma coleção de talentos que figuravam entre os melhores do mundo. Essa pressão das ligas vizinhas recaía sobre o Campeonato Alemão-Ocidental, inclusive sobre o técnico Sepp Herberger. Mesmo sem ser partidário do profissionalismo, o comandante da seleção era pragmático e sabia que algo precisava ser feito para preservar os melhores jogadores na Alemanha Ocidental.
A Bundesliga volta à pauta
O caminho mais lógico para dar esse salto era a criação de uma liga nacional. A Bundesliga voltava a entrar na pauta, como ocorrera na década de 1930. O torneio ofereceria um ambiente mais competitivo e também mais rentável para os jogadores. Disputar a Oberliga contra oponentes mais fracos, para só no final da temporada chegar à fase final do Campeonato Alemão-Ocidental, não agradava a todos. Entretanto, os argumentos contra Sepp Herberger ainda eram fortes – alguns nos quais o treinador tinha sido protagonista. A conquista dos alemães na Copa de 1954 era um dos contrapontos: por que mudar o formato se o Nationalelf conseguiu o Milagre de Berna? Os estádios também continuavam cheios, o que era outro fator importante. Também se temia uma insolvência em série dos times que ficassem de fora da elite nacional.
Tinha gente que acusava Herberger até de buscar uma cortina de fumaça. Os resultados do treinador à frente da Alemanha Ocidental não eram muito bons após a Copa do Mundo de 1954. A criação da Bundesliga seria um jeito de “desviar o foco” sobre o mau momento do time. Tal desconfiança foi rebatida apenas em 1958, quando o comandante deu a volta por cima. Liderou um time envelhecido e desacreditado (mesmo sendo o então campeão) até as semifinais do Mundial da Suécia. O problema é que os questionamentos sobre a Bundesliga sempre se renovavam.
Algo que repercutiu bastante na Alemanha Ocidental após a Copa de 1958 era a postura dos “mercenários” que atuavam em ligas profissionais. Existiram muitas críticas contra os jogadores suecos em atividade na Serie A, especialmente depois que a Suécia despachou os alemães num jogo envolto de polêmicas nas semifinais. Além disso, os clubes alemães começaram a fazer bonito na Copa dos Campeões. O Borussia Dortmund deu trabalho a Manchester United e Milan, o Schalke 04 eliminou o poderoso Wolverhampton, o Eintracht Frankfurt atropelou o Rangers e fez uma final épica contra o multicampeão Real Madrid. Isso até a caminhada do Hamburgo rumo às semifinais de 1960/61, superado no jogo-desempate pelo fortíssimo Barcelona, trazer outros reflexos.
Helenio Herrera voltou a aparecer em cena e tentou levar Uwe Seeler, craque do Hamburgo, para a Internazionale. A oferta recorde para o melhor jogador em atividade na Alemanha Ocidental deixou as questões mais expostas. Os nerazzurri ofereceram 1,2 milhão de marcos para o HSV, no que se tornaria a transferência mais cara da história do futebol. Já o centroavante ganharia 500 mil marcos de luvas e um salário mensal de 155 mil marcos, um valor absurdamente maior que os 6 mil marcos recebidos dos Dinossauros na época. Todavia, Seeler tinha uma personalidade particular. Preferia continuar perto da família em Hamburgo e recusou a mudança para a Itália. Uma maneira para compensar sua decisão foi ganhar um emprego como representante de vendas da Adidas, num acordo amarrado com auxílio da federação alemã-ocidental.
Seeler, contudo, se transformou numa exceção. Se o técnico Sepp Herberger afirmou que poderia não convocar mais o centroavante se ele saísse, depois veria como aquela era uma batalha perdida. Outros tantos jogadores optaram por sair da Alemanha Ocidental, mesmo que não fossem as propostas mais grandiosas. Herói em 1954 e melhor do Nationalelf em 1958, Helmut Rahn se mudou para a Holanda em 1960 e defendeu o Enschede SC. Já a debandada para a Itália aproveitava vários jovens em ascensão. Horst Szymaniak, Helmut Haller e Karl-Heinz Schnellinger seguiram para a Serie A no início dos anos 1960. Em comum, nenhum deles deixou de constar nas convocações.
Com a fuga de talentos, a campanha fraca da Alemanha Ocidental na Copa do Mundo de 1962 acendeu o alerta de vez. O time ainda chegou às quartas de final, mas o futebol pobre e muito retrancado gerou insatisfação. A preparação da equipe não tinha sido feita de maneira adequada e existia o medo de que os alemães-ocidentais ficassem pelo caminho no desenvolvimento do esporte. Sepp Herberger voltou a levantar a bandeira da Bundesliga, como um caminho para elevar os desafios aos seus atletas e também para garantir um ambiente mais forte que evitasse o escoamento de craques rumo ao exterior.
A Bundesliga, enfim, sai do papel
O projeto do Campeonato Alemão-Ocidental unificado como Bundesliga ganhou força também por outras personalidades além de Sepp Herberger. Um nome essencial é o de Franz Kremer, presidente do Colônia e considerado um visionário para a época. O dirigente foi o responsável pela fusão que deu origem aos Bodes e impulsionou o clube como um representante de toda a cidade. Kremer era visto como um vanguardista pela maneira como transformou a gestão do Effezeh, num modelo muito mais profissional. Tinha influência nos corredores da DFB, ainda mais como presidente da Oberliga West. E aproveitaria esse poder para acelerar a nacionalização da liga.
Em 1961, Franz Kremer já reunia dirigentes favoráveis à criação da Bundesliga. O contexto o auxiliou e, no ano seguinte, uma comissão foi formada dentro da DFB para avaliar a viabilidade de unificar o campeonato. A votação sobre o início da Bundesliga aconteceu em julho de 1962, durante a assembleia geral da federação. A queda precoce da Alemanha Ocidental na Copa do Mundo aumentou a mobilização, bem como os insucessos do Nuremberg na Copa dos Campeões. A aprovação da Bundesliga aconteceu com ampla diferença de votos: 103 dos membros da DFB aprovaram a nacionalização da liga, contra apenas 26 contrários.
Nem tudo eram flores, porém. Franz Kremer também tentava emplacar um regime totalmente profissional no Campeonato Alemão-Ocidental. Contudo, o pedido foi deferido depois de apenas 49 votos favoráveis e a DFB criou uma nova comissão para estudar as possibilidades. No fim das contas, os alemães continuaram girando em círculos sobre o tema e mais uma vez arranjaram um subterfúgio. A partir de então, passaria a existir o “jogador licenciado”, que teria um contrato especial com o clube. Não seria ainda totalmente dedicado à carreira, mas teria um vínculo empregatício mais claro com suas equipes e poderia buscar um novo destino quando os contratos terminassem. Os salários aumentaram, bem como os bônus por vitórias. O valor máximo em uma transferência também aumentou, com 20% garantido em luvas aos atletas. Ainda criaram o status de “jogador de mérito nacional”, com um salário especial para os heróis da Copa de 1954.
A partir da aprovação da Bundesliga em 1962, a missão para a criação do novo torneio era delinear o modelo rumo a 1963/64. Apenas 16 times participariam da primeira divisão, num formato mais enxuto. A segunda divisão permaneceria regionalizada. Enquanto isso, a seleção dos clubes participantes foi realizada por uma somatória de pontos, em critérios determinados por seis oficiais da DFB. Apenas os cinco campeões de cada Oberliga em 1962/63 poderiam se garantir em campo. O restante das equipes seria selecionado por uma tabela que envolvia as campanhas mais recentes, o retrospecto na década anterior e a estabilidade econômica. Não seriam aceitos dois times da mesma cidade, o que gerava outras restrições.
A lista de interessados teve, ao todo, 46 clubes fazendo suas solicitações formais pela inclusão na nova Bundesliga. Eles seriam escolhidos a partir de divisões regionais dentro da estrutura já estabelecida: cinco viriam da Oberliga West, cinco da Oberliga Süd, três da Oberliga Nord, dois da Oberliga Südwest e um de Berlim. As Oberligas, por sua vez, se tornariam divisões de acesso – num sistema que perdura ainda hoje, como a atual quarta divisão do Campeonato Alemão.
Aos poucos, as escolhas para a edição inaugural da Bundesliga foram definidas. Borussia Dortmund e Colônia, campeão e vice em 1962/63, estavam entre as potências da Alemanha Ocidental na época e a participação de ambos soava natural. Outros sete times foram indicados pelos dirigentes de início. Não havia muitas dúvidas sobre a importância de Nuremberg, Hamburgo, Eintracht Frankfurt, Werder Bremen e Schalke 04, com um status de força similar aos de Dortmund e Colônia. Entretanto, outras equipes eram mais contestadas. O Saarbrücken não vinha em melhor fase na sua região, mas tinha influência nos bastidores, sobretudo de Hermann Neuberger, jornalista renomado e futuro presidente da DFB a partir de 1975. Da mesma forma, o Hertha Berlim entrava por um lobby na capital.
A situação do Hertha Berlim merece um destaque à parte. A Velha Senhora era um clube histórico, com grandes campanhas na virada dos anos 1920 para os 1930, e também bastante popular. Entretanto, o retrospecto recente não era tão bom. Pesava o título no Campeonato Berlinense de 1962/63 e também a força política: não iam deixar Berlim de fora da Bundesliga. Com a disputa de poder com os comunistas, ignorar a cidade na Bundesliga era um sinal desfavorável que os capitalistas não dariam. Àquela altura, integrar um time berlinense ao campeonato gerava um grande desafio logístico, por conta do isolamento em relação ao restante do território. Mesmo assim, os alemães-ocidentais não abririam mão de um representante local.
Posteriormente, mais sete equipes foram confirmadas na lista complementar da Bundesliga, com destaque ao Kaiserslautern, potência na década de 1950 e base da seleção no Milagre de Berna. Os outros foram Preussen Münster, Eintracht Braunschweig, Duisburg (então chamado de Meidericher), 1860 Munique, Stuttgart e Karlsruher. Nem todo mundo gostou, é claro. A DFB recebeu uma carta de protesto assinada por 13 equipes que ficaram de fora do projeto. Curiosamente, nenhuma delas era o Bayern de Munique, que tinha um retrospecto até melhor que o Munique 1860 nos dez anos anteriores, mas viu os rivais conquistarem a Oberliga Süd e ficarem com a vaga direta. Mesmo na segunda divisão, uma fornada de talentos muito boa consolidaria os bávaros como potência em breve. As principais queixas vinham de Alemannia Aachen e Kickers Offenbach, dois clubes de desempenhos sólidos que terminavam ignorados. Por fim, ambos subiriam em breve.
O pontapé inicial da Bundesliga
A Bundesliga começou em 1963/64 sem tantos clássicos regionais quanto nos tempos de Oberliga. Entretanto, o interesse da população era alto e os estádios se encheram, com média de 27,5 mil espectadores por jogo. O pontapé inicial ocorreu em 24 de agosto, com rodada cheia e 327 mil pessoas espalhadas por oito estádios. Todos os 16 times estiveram em campo. O primeiro gol foi anotado exatamente pelo então campeão, o Borussia Dortmund, que balançou as redes no primeiro minuto do jogo contra o Werder Bremen. Timo Konietzka teve a honra de assinalar o tento na casa dos adversários. Curiosamente, o gol anotado logo no primeiro minuto não tem registros em vídeo e sequer em fotos. Depois, os Verdes garantiram a virada por 3 a 2. Seria uma tarde com gols de vários jogadores simbólicos: Max Morlock (Nuremberg), Helmut Rahn (Meidericher), Rudolf Brunnenmeier (1860 Munique) e Wolfgang Overath (Colônia) anotaram os seus. Já Uwe Seeler passou em branco na estreia, mas seria um lendário primeiro artilheiro, com seus 30 gols pelo Hamburgo.
A primeira edição da Bundesliga também premiou os esforços de Franz Kremer. O Colônia se tornou o campeão do novo torneio. Era uma equipe muito forte dos Bodes, treinada por Georg Knöpfle. Overath despontava como um jovem talento de 20 anos, bem antes de se consagrar como multicampeão pela seleção. A experiência ficava por conta de Hans Schäfer, este já veterano e com o título mundial de 1954 no currículo. O goleiro Fritz Ewert, o zagueiro Wolfgang Weber, o líbero Leo Wilden, o ponta Karl-Heinz Thielen, o centroavante Christian Müller e o volante Helmut Benthaus eram outras figuras de relevo – com vários desses nomes passando pela seleção. O Effezeh terminou a campanha com seis pontos de vantagem, numa situação confortável diante da perseguição de Meidericher e Frankfurt. Preussen Münster e Saarbrücken foram os primeiros rebaixados.
A criação da Bundesliga teve vários pontos positivos. Se alguns eram contrários por causa do risco de criar grandes hegemonias, o início ofereceu um cardápio variado no topo da tabela. Foram sete campeões diferentes nas sete primeiras temporadas. Outro reflexo favorável era o sucesso nas copas europeias, mais especificamente na Recopa. Até o final dos anos 1960, Dortmund e Bayern foram campeões do torneio, enquanto Hamburgo e 1860 Munique disputaram finais. Mesmo a seleção voltou a render bem no âmbito internacional, com a campanha até a decisão da Copa de 1966. Mas não que estivesse tudo bem, sobretudo porque o serviço de reformulação do Campeonato Alemão-Ocidental tinha sido realizado pela metade.
A profissionalização completa ainda era uma necessidade. O teto salarial poderia sugerir sua contribuição ao equilíbrio da Bundesliga, mas era só uma impressão. Constantemente as regras financeiras eram burladas nos bastidores. Uma das medidas adotadas, por exemplo, era o pagamento de benefícios além do valor da transferência. Um clube poderia contratar um jogador pagando o teto da liga e ainda oferecia serviços como o financiamento de obras no estádio da equipe vendedora. Quem também ganhava força nos bastidores eram os empresários, cada vez mais inseridos no negócio e prontos para lucrar com a saída de talentos para o exterior.
O clube que escancarou como a Bundesliga não era suficiente por si enquanto não tivesse um sistema mais profissional era o Hertha Berlim. A Velha Senhora estava totalmente isolada do mapa da Alemanha Ocidental e enfrentar os alviazuis significava embarcar em viagens tensas à Berlim Ocidental cercada pelo muro. Não era um ambiente convidativo inclusive para que a diretoria contratasse jogadores. A solução? Romper os limites salariais e de transferências, de uma maneira que não era muito segredo para ninguém. O Hertha pagava mais dinheiro para convencer os jogadores que morar na cidade cercada era uma boa ideia. Só a grana acima dos tetos para tornar o elenco mais competitivo.
Estava clara a manipulação que ocorria. Os outros clubes, afinal, também estavam na jogada para vender. A Bundesliga não esperou muito para tomar uma atitude contra o Hertha: em 1964/65, ao final da segunda temporada do torneio, a DFB revogou a licença dos berlinenses e os rebaixou. A ideia era de que “enquanto Berlim tem uma posição especial, o Hertha não pode esperar um tratamento especial”. Contudo, com a punição, o Hertha quis levar mais gente para o buraco. Os alviazuis apresentaram provas contra diversos outros clubes, que também estavam envolvidos em negociações irregulares e dribles nos limites salariais. O saldo final é que outras 13 equipes também foram punidas por quebrar as regras. Apenas os dois rebaixados foram poupados e, por isso, permaneceram na elite.
O caso do Hertha Berlim causou seu impacto na estrutura da própria Bundesliga. Por conta das fraudes, a organização do campeonato decidiu revogar os rebaixamentos de Karlsruher e Schalke 04. Além disso, Bayern de Munique e Borussia Mönchengladbach haviam sido promovidos à elite. E a saída do Hertha significou que os dirigentes pescariam mais um time de Berlim Ocidental por motivos políticos. O escolhido foi o Tasmania Berlim, que atendia a critérios da DFB, mas não tinha qualidade para disputar a primeira divisão. Permanece ainda hoje como a pior campanha da história da Bundesliga, com míseros oito pontos disputados. E foi por causa de todo o escândalo com o Hertha que o Campeonato Alemão-Ocidental adotou seu formato atual com 18 times.
A temporada de 1965/66 proporcionou outra novidade fundamental: foi a primeira com transmissão da televisão. A DFB assinou contrato com os dois canais de TV públicos da Alemanha Ocidental, num acordo que rendeu 647 mil marcos à Bundesliga – uma ínfima casa centesimal se comparada aos valores atuais. Antes disso, apenas os melhores momentos eram transmitidos, e nem todos os jogos eram contemplados. A partir daquele instante, o Campeonato Alemão deixava de ser uma questão apenas de arquibancadas.
Outro escândalo impulsiona o profissionalismo
A Bundesliga ainda levou mais um tempo razoável para adotar o profissionalismo. O sucesso das equipes do país nas competições internacionais fazia a DFB passar o pano para a mudança no sistema, da mesma forma como a seleção elevou seus resultados depois que Helmut Schön foi promovido de assistente a treinador principal em 1964. Porém, a mensagem que ia ao exterior escondia que o futebol alemão-ocidental estava contaminado internamente. A federação até promoveu mudanças tímidas depois do caso com o Hertha, com um novo aumento do limite salarial e do limite de transferências. Também criou um sistema de registro dos atletas para maior controle. Mas nem tudo passava pela entidade.
Os pagamentos por baixo dos panos ainda eram costume. E não serviam apenas para compensar o salário dos atletas, mas também para manipular resultados. O Campeonato Alemão-Ocidental viu se arraigar um sistema em que muitos jogadores recebiam dinheiro para perder jogos e também cobravam de clubes alheios para garantir vitórias que os interessavam. Tal postura não deixava de ser um reflexo do sistema, com um meio ilícito de lucrar. Não existiam muitas garantias profissionais como jogador de futebol, afinal. Sofrer um rebaixamento na Bundesliga significava que você perderia o seu contrato e não necessariamente teria vínculos salariais com sua equipe no futuro. As chamadas “malas” eram uma maneira de fazer um fundo de garantia caso algo desse errado em breve.
A Bundesliga precisou de um novo escândalo para, enfim, rever seu sistema e abraçar o profissionalismo por completo. E levou um tempo para que a bomba estourasse, somente ao final da temporada 1970/71. O caso foi exposto por Horst-Gregorio Canellas, importador de bananas e presidente do Kickers Offenbach. Em junho de 1971, o dirigente convidou vários membros da DFB, incluindo o técnico Helmut Schön e o secretário-geral Wilfried Straub, para seu aniversário de 50 anos. Canellas então aproveitou a ocasião para exibir uma gravação, em que comprovava a manipulação de resultados na Bundesliga.
Tasso Wild e Bernd Patzke, jogadores do Hertha Berlim, pediram dinheiro ao presidente do Kickers Offenbach para que eles vencessem o Arminia Bielefeld na rodada final e auxiliassem Canellas na luta contra o rebaixamento. Chegaram a mencionar que também tinham recebido uma oferta de mala do Bielefeld e tentaram fazer um leilão com isso. Já o goleiro Manfred Manglitz, do Colônia, pediu dinheiro para facilitar a derrota diante do Offenbach na última rodada. Canellas agiu nos bastidores e, acompanhado por seu filho de cinco anos, para demonstrar que não havia tramas, denunciou o episódio inicialmente a Wolfgang Overath, capitão do Colônia, antes do embate. Os dois times se enfrentaram, sem Manglitz em campo, e o Offenbach terminou rebaixado ao ser derrotado – com uma vitória paralela do Bielefeld, que se salvou ao bater o Hertha. Só depois do desfecho do campeonato é que o dirigente apresentou suas provas à DFB.
O caso gerou uma série de punições individuais, inclusive a Canellas. A federação alemã-ocidental avaliou que o presidente do Kickers Offenbach havia tentado realizar subornos anteriormente e o baniu. Wild e Manglitz também foram banidos do esporte, enquanto Patzke recebeu uma suspensão de dez anos. Todavia, o desfecho do caso não agradou Canellas. O presidente do Kickers Offenbach conseguiu juntar evidências contra mais oito jogos manipulados. Nada menos que 12 times estavam ligados aos esquemas. O Schalke 04, por exemplo, viu oito jogadores aceitarem os subornos. A nova bomba geraria uma segunda onda de punições. Ao todo, 52 jogadores receberam suspensões, além de dois técnicos e seis dirigentes. As sanções abreviaram as carreiras inclusive de destaques da seleção, como Patzke e Manglitz, ambos presentes na Copa de 1970.
Entretanto, não dá para dizer que as ações da DFB foram exemplares. Os resultados de 1970/71 foram mantidos e o Kickers Offenbach terminou rebaixado. O Arminia Bielefeld disputou a primeira divisão em 1971/72, quando ganhou um rebaixamento automático pelos crimes. O Offenbach precisou conquistar o acesso em campo na segundona, de volta em 1972/73, mas sem o seu presidente. A delação de Canellas não foi premiada e o empresário até deixou a Alemanha Ocidental pelo desgosto com a condução do caso. Seu ato, ao menos, contribuiu para que o profissionalismo se transformasse numa realidade dentro da Bundesliga.
O profissionalismo na Alemanha Ocidental, enfim, foi totalmente aprovado em 1972. O teto salarial deixaria de existir e os clubes estavam livres para contratar jogadores. Tal sistema auxiliaria não apenas os clubes da Bundesliga a evitarem a debandada de talentos, num momento crucial em que a seleção conquistava a Euro 1972 e logo depois a Copa de 1974. Também seria um meio de tornar o Campeonato Alemão-Ocidental mais atrativo para talentos estrangeiros. Por mais que alguns bons jogadores chegassem desde antes, a robustez econômica começaria a transformar a Bundesliga num destino mais convidativo. Outro passo importante veio com a ampliação da pirâmide do futebol local. A segunda divisão se tornou uma competição também nacional a partir de 1974, o que contribuiu para uma profissionalização crescente nos níveis inferiores.
Os sucessos da seleção alemã-ocidental e dos clubes além das fronteiras, revigorados pelo profissionalismo, também foram essenciais para resgatar a confiança do público. O escândalo de 1970/71 manchou a reputação da Bundesliga, a ponto de reduzir a média de espectadores – o que impactava diretamente nas bilheterias, a principal fonte de renda dos times na época. Em 1972/73, a média foi de apenas 17,4 mil pessoas por jogo, ainda hoje a pior da história da competição. As transmissões da televisão também tinham seus efeitos negativos, ao garantir outra alternativa para que as partidas fossem assistidas, bem como a falta de conforto nos estádios atrapalhava.
Naquele momento, a DFB chegou a considerar um novo sistema de disputa ao Campeonato Alemão-Ocidental, com a formação de dois grandes grupos regionalizados de nove equipes para reduzir os custos nas viagens. A sugestão feita pelo Colônia, contudo, não foi para frente. E a recuperação se deu graças ao clima positivo que o esporte no país logo ganharia. A Copa do Mundo de 1974 garantiu melhorias nos estádios e a empolgação com o título do Nationalelf. Já os clubes passaram a fazer bonito nas competições continentais, com destaque ao Bayern de Munique tri da Champions. A média de público saltou para 22,2 mil por jogo logo na temporada seguinte, de 1973/74, e teria novo recorde com os 27,6 mil de 1977/78.
Os passos da Bundesliga ao longo das últimas décadas
A década de 1970 na Bundesliga permaneceu dominada por clubes que colhiam os frutos de craques formados em casa – Bayern de Munique e Borussia Mönchengladbach. E o profissionalismo levou os times a diversificarem a renda. O exemplo maior vem do Eintracht Braunschweig: os auriazuis se tornaram pioneiros ao estamparem um patrocinador em suas camisas. Virou icônico o uniforme com o símbolo da Jägermeister, tradicional produtora de licores da Alemanha Ocidental, que ofereceu um contrato de 500 mil marcos por cinco anos. O caso ainda se desdobrou numa disputa de bastidores, diante da resistência da federação. Os sócios do Braunschweig chegaram a aprovar uma mudança de estatuto para que o cervo, símbolo da Jägermeister, se tornasse o novo escudo do clube. Tal pressão levou a DFB a mudar de ideia e permitir o patrocínio dentro de certos padrões. A estreia da marca ocorreu logo no segundo turno da temporada 1972/73 e ficou na camisa até 1987. Outras tantas equipes, não só na Alemanha, adotariam a publicidade para melhorar seus rendimentos. Com o dinheiro, o Braunschweig chegou inclusive a tirar Paul Breitner do Real Madrid na sequência dos anos 1970.
Já a virada da década de 1970 contou com uma abertura maior das fronteiras na Bundesliga, exemplificada pela contratação de Kevin Keegan pelo Hamburgo. A chegada do craque inglês foi revolucionária não apenas pela consolidação dos Dinossauros como uma potência naquele momento, mas também pelo seu simbolismo internacional. Keegan conseguiu levar duas vezes a Bola de Ouro enquanto estava na Alemanha Ocidental, afinal. Seu antecessor no prêmio já tinha sido Allan Simonsen, dinamarquês que gastava a bola no Gladbach. Talento individual não era problema aos alemães naquele momento, que levaram todas as Bolas de Ouro de 1976 a 1981 – contando também com uma vitória de Franz Beckenbauer e duas de Karl-Heinz Rummenigge.
A década de 1980 ofereceu novas realidades à Bundesliga, até pela maneira como o futebol italiano se fortaleceu a partir de um investimento maciço dos empresários locais. A Alemanha Ocidental viu jogadores importantes saírem para a Serie A e o nível do campeonato local ficou em xeque, com um estilo de jogo endurecido, muito físico. E o impacto se notou novamente nas arquibancadas, onde havia ainda um reflexo do hooliganismo que assolava toda a Europa, bem como da infiltração de movimentos neonazistas nos estádios. As médias de público na Bundesliga se reduziram na metade final dos anos 1980, voltando a ficar abaixo dos 20 mil por partida de novo. Foi nesta época que surgiu a chamada pausa de inverno, para recuperar o público que se perdia também por conta das condições extremas do clima entre dezembro e janeiro.
Uma nova cisão temporal aconteceu na Bundesliga naquele momento, e na Alemanha como um todo. A queda do Muro de Berlim amplificou vários processos e tornou o Campeonato Alemão-Ocidental um destino comum para talentos que saíam da Cortina de Ferro. Com o iminente fim do sistema na Alemanha Oriental, a Bundesliga se transformou num Eldorado para os talentos da Oberliga. Um grande leilão ocorreu para fisgar os destaques da DDR e alguns clubes se deram bem, a exemplo do Bayer Leverkusen e do Stuttgart. Já a própria Bundesliga absorveu a Oberliga em 1991/92. Foi uma incorporação, porém, bastante questionada pela maneira como se deu. Apenas dois times alemães-orientais tiveram vaga garantida na elite alemã-ocidental, com o aumento momentâneo da Bundesliga para 20 participantes. Seriam quatro rebaixados logo naquela temporada, para reduzir novamente o número de integrantes para 18, e o campeão oriental Hansa Rostock sequer evitou o descenso. Enquanto isso, os demais times da Oberliga precisaram se virar nas divisões de acesso e as dificuldades financeiras, sobretudo com uma ampla mudança de sistema econômico no país, levaram vários deles à bancarrota.
A Bundesliga continuou com a estrutura construída em décadas de consolidação na Alemanha Ocidental, mesmo depois da reunificação. A Alemanha Oriental pintou mais como um puxadinho de sucesso bastante limitado, com as melhores campanhas dos antigos times da Oberliga só registradas atualmente, por um Union Berlim que precisou renascer das cinzas e nem era potência na DDR. Em compensação, o clima geral da reunificação da Alemanha seria crucial para recuperar o prestígio da Bundesliga por outras vias. A virada de chave para o futebol aconteceu a partir de mais um sucesso da Alemanha Ocidental na Copa do Mundo.
O Mundial de 1990 se transformou num catalisador do sentimento ao redor do futebol, que trazia a ideia de um país reconciliado como um forte elemento dentro da conquista do tricampeonato do Nationalelf. Com a atmosfera positiva, surgiu também um movimento forte dos clubes e dos próprios torcedores para expulsar os grupos extremistas e de hooligans das tribunas. Os números de espectadores voltaram a se recuperar a partir dos anos 1990. A temporada de 1994/95 foi a primeira que superou os 30 mil torcedores por jogo na média – uma marca que, desde então, só não foi batida quando houveram as restrições por causa da pandemia de covid-19. A Bundesliga passava a transmitir uma imagem de competição mais aberta a jogadores de todo o mundo e ainda assim muito ligada às massas, reforçando seu viés social dentro das comunidades locais.
Este seria um período também de modernizações no aspecto administrativo da Bundesliga, num futebol que se transformava com a Lei Bosman e com a criação da zona do euro. Primeiro, a partir de 1991, o Campeonato Alemão passou a ser transmitido por canais privados e a ganhar mais dinheiro. Já em 1998, a DFB aprovou a regra do 50+1 para preservar o poder dos associados sobre os clubes. Desta maneira, surgiam travas para o acúmulo de poder e se privilegiava um modelo mais democrático nas decisões. As raízes comunitárias se tornavam mais profundas e o envolvimento do público crescia. E em 2000, a Bundesliga se desmembrou do controle direto da federação e passou a ser gerida pela DFL, a liga composta pelos times da primeira e da segunda divisão. Através disso, existiam novas condições para negociações em conjunto e uma gestão mais profissional. Novas possibilidades comerciais se abriram, com o aumento expressivo nos contratos relativos à televisão e aos patrocinadores. As novas fontes de receita tornavam os times menos dependentes das bilheterias. A Bundesliga se tornou parâmetro inclusive de divisão igualitária do dinheiro da TV.
Desde então, algumas das principais revoluções da Bundesliga também estão atreladas à história do país nas Copas do Mundo. O Mundial de 2006 serviu para acelerar a reforma dos estádios e criar um ambiente mais moderno, mas que não perdesse o fervor nas arquibancadas. As médias de público explodiram rumo aos 40 mil por jogo, um número inédito até 2005/06 e que se tornou constantemente repetido a partir de então. Mesmo as divisões de acesso aproveitaram a onda, bem como o futebol feminino que se estabelecia com mais força. Já o tetra na Copa do Mundo de 2014 reflete um planejamento realizado para a formação de jogadores nas categorias de base. Tecnicamente, a Bundesliga cresceu bastante nas últimas três décadas. O modelo de jogo acaba servindo também de trunfo, com as altas médias de gols. Os fracassos recentes da Mannschaft nos últimos Mundiais até provocam pertinentes e fundamentais reflexões, bem como a supremacia do Bayern de Munique. Mas, por enquanto, a ideia de repensar o formato da liga está descartada.
Aos 60 anos, o desafio da Bundesliga é realmente manter a sua essência diante daquilo que se transforma com passos acelerados no futebol. Há impactos inegáveis de um mundo de Super Liga Europeia, de dinheiro infinito ligado a sports washing, de clubes-estado e de tantos outros fatores que pesam na balança econômica. O Campeonato Alemão costuma ser bastante questionado por seu modelo, em que limita as possibilidades financeiras para garantir os direitos de propriedade aos associados. Isso mina a capacidade competitiva da maioria, pensando sobretudo na bonança vivida pela Premier League com seus investimentos estrangeiros. No entanto, o ideal preservado pela regra do 50+1 ainda concede um cenário particular ao futebol alemão, que a maioria não pretende abandonar, mesmo que alguns magnatas consigam driblar a legislação de uma forma ou de outra – nada inédito no passado da liga, aliás. Apesar disso, o Campeonato Alemão possui virtudes que o tornam singular dentro do nível apresentado na Europa.
A Bundesliga hoje transmite uma imagem de competição com as arquibancadas mais vibrantes da Europa Ocidental. Isso é reflexo de uma política de ingressos mais baratos, que mantém o futebol ainda acessível à maioria absoluta da população. Não à toa, muitos estrangeiros fazem com frequência turismo aos estádios alemães para viver uma experiência que se perde em outros lugares. Outro ponto forte é que, sem um dinheiro infinito, a Bundesliga se transformou num dos destinos preferidos dos jovens talentos e os clubes utilizam muito bem essa capacidade de formação. Ver o Campeonato Alemão antecipa muitos craques do futuro, mesmo que eles não fiquem todo tempo nesses times, e isso beneficia o nível técnico. Por fim, a Bundesliga é um dos raros campeonatos que mantém o poder de decisão nos clubes ligado às massas. Nem tudo é perfeito no sistema e, por vezes, pode até lembrar aquele idealismo de quem negava o profissionalismo no passado. Contudo, isso permite ao futebol alemão ainda ser um reduto popular em sua essência e um pouco mais protegido dos grupos de poder. O papel social dos times é bem importante por lá, num quadro que se moldou nestas seis décadas.