Na Bancada

Três pequenos pássaros e muitos grandes otários – a proibição da Uefa sobre a camisa do Ajax

A UEFA atacou os símbolos da blusa do Ajax com a sua tradicional incapacidade de transcender aos contratos comerciais

*Por Irlan Simões, do Na Bancada

Nunca se viu tanta camisa feia decorando os campos de futebol pelo mundo. Na Europa, onde os famigerados “third kits” seguem o padrão das redes sociais desses tempos malucos que vivemos – chocar, engajar e lucrar -, todo tipo de aberração cromática, estilística e visual tem sido colocada em prática com complacência das autoridades esportivas (e da moda).

Eis que 2021 nos apresentou outro mundo possível: um mundo de amor, um mundo de comunhão, um mundo de esperança, um mundo onde uma camisa de futebol pode ser bonita, doce e suave de novo. 

Como cantos de pássaros em uma manhã ensolarada, enviando uma mensagem de que tudo vai ficar bem, o gigantesco Ajax lançou uma camisa em homenagem a Bob Marley, músico que nos deixou há 40 anos. 

Uma simples camisa preta, com detalhes em vermelho, amarelo e verde – as cores consagradas do reggae (e do Império Etíope de Haile Selassie) -, com três pequenos pássaros estampados na parte alta das costas. Uma referência direta ao hino “Three Little Birds”, música do álbum Exodus do grupo Bob Marley and The Wailers, do longevo ano de 1977. 

Também uma saudação à elegância. Coisa fina. Camisa de clube futebol. O grande momento da vida futebolística-musical dos últimos tempos. 

Mas tal e qual grotesca invasão italiana à Abissínia em 1935, a UEFA atacou os símbolos da blusa do Ajax com a sua tradicional incapacidade de transcender aos contratos comerciais. 

A entidade máxima do futebol europeu notificou o clube neerlandês de uma regra que veta elementos que não sejam o símbolo do clube e a marca dos patrocinadores nas blusas dos participantes da Champions League. Um artigo que parecia meio esquecido nesses tempos de camisas agressivas aos olhos e repletas de elementos desnecessários.

Os três pequenos pássaros deveriam ser removidos caso o Ajax desejasse usar a blusa na maior competição esportiva de clubes do planeta. Uma decisão no mínimo curiosa, já que estamos falando do mesmo continente onde uma famosa marca esportiva lançou blusas de clubes e seleções sem os seus respectivos escudos, conferindo amplo destaque à sua própria marca.

Sim, sim. Um dos argumentos que reforçam o veto é a presença de três minúsculos “x” sob a figura das aves, que representariam as três cruzes de Santo André presentes na bandeira oficial da cidade de Amsterdã – e que já apareceram em outras tantas camisas do clube, inclusive na Champions.

O Ajax, evidentemente, acatou a medida de forma tão resignada quanto um jogador que receia tomar cartão amarelo por tirar a camisa (e esconder a marca do patrocinador) em um momento de euforia, ou um torcedor que pode ser banido de um jogo por colocar uma faixa (e esconder a marca do patrocinador) no parapeito de um estádio de jogo da Champions.

“Quem paga a banda escolhe a música”, dirão aqueles que acham que o futebol nasceu em 1992. 

Para o consumidor de futebol menos apegado a essas questões, talvez passe despercebido a dimensão agressão da UEFA. Apesar de parecer apenas mais um protocolar argumento de “organização comercial”, de “respeito aos contratos” e da “valorização da marca”, essa medida é ofensiva aos torcedores do Ajax.

Bob Marley foi homenageado porque a torcida do Ajax foi homenageada. Não é uma mera relação entre a aderência de Amsterdã ao reggae, gênero musical que carrega um estilo de vida até hoje muito influente.

A terceira camisa do Ajax de 2021 homenageia antes de tudo a sua própria cultura torcedora, que há décadas entoa a canção “Three Little Birds” na Johan Cruijff Arena.

Tempos atrás alguém bolou a ideia, fez seus amigos comprarem essa ideia, uns empolgados se somaram, outros grupos adotaram o canto, a torcida carregou por anos, e por fim o clube “oficial” – diretores e funcionários do momento -, passou a praticá-la, promovendo o ritual no sistema de som do estádio. 

Como toda expressão coletiva de arquibancada, a música “Three Little Birds” se impregnou na história do Ajax, porque é assim que se dá a produção do clube pela da torcida. 

Essa canção otimista virou uma marca do Ajax porque a torcida, de forma espontânea e autônoma, assim provocou. Não tem dono, não tem pai, não nasceu de um brainstorm. O Ajax ganhou um símbolo da arquibancada e fez dele camisa em um momento histórico propício. Mas Bob Marley foi homenageado porque a torcida do Ajax foi homenageada.

Mas, há mais. Foi o conflito entre a “norma” (a ortodoxia comercial da UEFA) e a vida das arquibancadas que trouxe esse caso à tona. A ausência dos “three little birds” sequer foi comunicada ao público. Foram os torcedores que notaram que o uniforme já estava adulterado na partida da liga doméstica contra o Zwolle, que antecedia o jogo da Champions League, contra o Sporting de Portugal. 

Não fosse o questionamento da associação de torcedores do Ajax (SupportersVereniging Ajax – SV Ajax) à diretoria do clube, a exclusão dos três passarinhos passaria despercebida, tão protocolar, fria e naturalizada foi a medida.

Afinal, não eram apenas três aves estampadas, era representação da torcida no uniforme oficial do clube, o uniforme mais icônico do futebol nas últimas décadas. 

Daqui a 30 anos esses elementos podem deixar de fazer parte da sempre cambiável cultura urbana neerlandesa? Podem, mesmo em Amsterdã. Mas vamos sempre olhar para trás e lembrar a bela camisa preta dos três pequenos pássaros, que homenageava Bob Marley porque homenageava a torcida do Ajax. Afinal, é disso que clubes – clubes, não times – são feitos.

Quanto aos muitos grandes otários, seguimos na desleal batalha contra as suas caretices.

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O Na Bancada é um podcast e canal em defesa das culturas torcedoras, dos clubes e dos estádios. Confira o nosso último podcast e a nossa próxima live!

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