O outro lado: torcida única em clássicos em SP criou geração que nunca encarou os rivais na arquibancada
Os dias de um Morumbi disputado por duas torcidas não são nada além de uma lembrança desbotada pelo tempo

*Por Rodrigo Barneschi, autor do livro “Forasteiros: Crônicas, vivências e reflexões de um torcedor visitante”
Eu estive em Itaquera na última terça-feira à noite. O Corinthians recebeu o Boca Juniors, venceu por 2 a 0 e sua torcida viveu uma grande noite, com a arquibancada inflamada alguns níveis acima do habitual.
Ao que o leitor mais arisco pode perguntar: “mas que cazzo você foi fazer em Itaquera?”.
Bom, os três primeiros capítulos de “Forasteiros – Crônicas, vivências e reflexões de um torcedor visitante” (dica: dá para ler todos eles no preview da Amazon) deixam claro o quanto eu gosto de torcidas, de estádios, de rivalidades e das relações que se estabelecem quando multidões se colocam frente a frente, separadas apenas por cento e tantos metros do campo de jogo. E essa trinca inicial ressalta a influência de santistas, corinthianos e são-paulinos para o fortalecimento da minha identidade palmeirense.
O livro registra, também, o quanto eu não gosto do Boca. Mas, a convite de um amigo xeneize, resolvi encarar a ida ao setor visitante no duelo pela fase de grupos da Copa Libertadores de 2022.
Eu já vi dezenas de partidas na condição de infiltrado em torcidas brasileiras ou de países vizinhos e, em situações como essa, meu olhar costuma se direcionar para os forasteiros que estão no mesmo setor que eu. É, como eu já descrevi, um olhar quase antropológico.
Não foi bem o caso desta mais recente visita a Itaquera.
Nas proximidades do estádio, subindo a rua por onde os visitantes chegavam caminhando desde a estação Dom Bosco da CPTM, percebi que aquela cancha se tornou, para mim, solo estrangeiro, quase como se não fizesse parte da minha cidade.
Nós, palmeirenses, pudemos ocupar uma esquina do Setor Sul apenas três vezes, uma em 2014 e outras duas em 2015. Na primeira visita, pensei que teria de encarar aquela viagem de um extremo a outro da cidade pelo menos uma vez por ano, mas isso não aconteceu: a determinação de torcida única em clássicos estaduais veio em 2016 e, desde então, o alviverde voltou à zona leste 13 vezes, todas elas sem os seus aficionados.
Uma vez tendo girado a catraca para me juntar aos argentinos, revivi as escassas três incursões à cancha do arquirrival – além de uma outra, esporádica, com a hinchada do Racing, em 2017.
E, ainda que La 12 estivesse sendo comandada pelo lendário Rafa Di Zeo poucos metros abaixo de onde eu assisti à partida, notei que eu estava mais preocupado em observar a multidão alvinegra, a leste, a oeste e ao norte.
Ocorre que minha identidade torcedora foi forjada no embate com o outro, com o diferente, e então eu me dei conta que já fazia cinco anos que eu não tinha a oportunidade de compartilhar um estádio com a torcida do meu arquirrival.
Muito tempo para quem se habituou aos grandes clássicos com estádio dividido, às disputas de territórios, às trocas de impropérios por entre grades, fossos e alambrados.
Não poucas vezes durante o confronto, deixei de lado o que acontecia no gramado para observar os alvinegros na extremidade do Setor Leste. Eles cantavam, pulavam, agitavam os braços. E xingavam os forasteiros do Setor Sul, provocando-os, fazendo gestos, exibindo cartazes: um sujeito, bem na divisa, mostrou um letreiro improvisado com a inscrição “2012”; os xeneizes devolveram com uma mão estendida e mais um dedo da outra, em referência às seis Copas que foram para La Bombonera.
Relembrei, na noite da última terça, incontáveis confrontos verbais com a torcida do Corinthians: no Morumbi, no Pacaembu, no Palestra, em Prudente, em Itaquera, mesmo em jogos de futsal em São Bernardo do Campo. Reconheci, no gestual de cada alvinegro, a hostilidade que costuma ser dirigida aos adversários em noites de duelos grandiosos.
Senti até certa familiaridade ao visualizar, lá do outro lado, as faixas das quatro maiores organizadas, cada qual a ocupar o seu naco de arquibancada. E, confesso, invejei o fato de elas terem um setor inteiro só para elas e, ainda melhor, sem as inconvenientes cadeiras plásticas que, ao que consta, têm fãs ardorosos.
Devo admitir que as faixas das organizadas rivais, em especial a da Gaviões, tiveram papel fundamental para a construção da minha identidade torcedora. Ter um adversário do outro lado sempre me impulsionou a cantar mais, a gritar mais alto, a pular incessantemente. Era como se os encontros com o meu oponente me levassem a querer demonstrar o sentimento pelo meu time com ainda mais ímpeto.
Escutei, com especial atenção, as músicas entoadas pelos corinthianos, das mais tradicionais, capazes de inflamar todo o estádio, até as mais recentes, cujas letras eu fui absorvendo aos poucos.
Isso tudo, outrora tão natural e rotineiro, virou passado – e um passado cada vez mais distante. Temos, já, uma geração de frequentadores de estádio que nunca pôde ver a torcida rival na tribuna oposta e que trata como natural o que é aberração.
É uma geração que não teve o privilégio de forjar o caráter diante do estrondo de um gol do time adversário. Que não sabe o que é festejar a conquista de um título enquanto os oponentes abandonam a arquibancada em silêncio. Que não faz ideia do que é o êxtase de um gol nos descontos diante de uma maioria atordoada.
E sabem o que é pior? A julgar pela passividade com que o assunto é tratado, estamos presos a este caminho sem volta, em que os dias de um Morumbi disputado por duas torcidas não são nada além de uma lembrança desbotada pelo tempo.
Daí então que, em busca de migalhas de uma arquibancada que já não existe mais, eu me permito viver uma noite de terça-feira em Itaquera como a ocasião para, em silêncio e com a discrição pertinente, encarar os meus rivais e lamentar todos esses anos de distância…