Morituri mortuis: até onde irá o lobby pelo clube-empresa?
Por que criar um simulacro de debates, quando todos os presentes adotam a mesma posição?

Luciano Motta estará na live do Na Bancada de sexta-feira (30/4). Ative o lembrete e mande mensagens no chat para participar com perguntas e opiniõesDISSECANDO A LEI DAS S.A.F.Uma live só para perguntas e respostas.Desmentindo textos horríveis sobre clube-empresa.Participe. É sexta.Proteja seu clube!Aqui: https://t.co/c1NqkOXgK8
Por Luciano Motta*
Os tempos difíceis já não são novidade. Fruto de diversas situações: pandemia, politicagem exacerbada, forte polarização política, etc. A história do clube-empresa, infelizmente, guarda enorme similitude com o presente momento. Antes, porém, é preciso regredir no tempo.
Inicialmente, em boa parte da Europa (por exemplo, Itália, França, Espanha, Portugal), mas não só, fora proposto como remédio milagroso que revigoraria clubes de futebol moribundos e enfermos que apresentavam déficits constantes e uma mescla de má-gestão com gestão temerária, culminando na difusão de um termo genérico e estéril: “mal geridos”.
No Brasil não foi diferente. O tema que se iniciou na década de 1970, ganhou proporções inimagináveis cujo ápice foi a obrigatoriedade em se adotar essa tipologia jurídica com o advento da Lei Pelé (Lei n. 9.615/1998).
Mesmo diante de flagrante violação constitucional, haja vista disposição expressa, apesar de não absoluta, enaltecendo a autonomia das entidades de prática desportivas quanto a sua organização e funcionamento (art. 217, I, da Constituição Federal – CF) bem como direito fundamental à livre associação para a prática de atividades lícitas (art. 5º, XVII a XIX, da CF), a devoção a esse medicamento foi tamanha, que a medida ganhou força nos bastidores políticos, recebendo inúmeras aprovações, com louvor, nas reuniões, fóruns e comissões temáticas do Congresso Nacional. Os agentes ficaram eufóricos. Se pairavam dúvidas quanto a constitucionalidade da medida, no imaginário, provavelmente, o entendimento era de que seria um “mal necessário”.
Contudo, toda essa construção ficta que permeava o âmago de alguns doutores da lei e de alguns políticos, que não gostariam de perder a oportunidade de se tornarem os pais da profissionalização do esporte-rei, só não encontrou ressonância nas agremiações. Tudo foi bem “combinado”, menos com os clubes que desprezaram completamente, sem o menor pudor, a medida. Pela ineficácia e ausência prática de sanção direta, ela acabou por cair em desuso e foi abandonada: a obrigatoriedade se converteu em facultatividade.
Mas não se espante. O Estado e legislador nunca esqueceram desse “sonho”. Tentaram inúmeras formas: obrigaram (como dito), impuseram sanções legais, promoveram concessões, incentivaram. Enfim, nesse vai e vem, verdadeiro rodopio, procedeu-se, desde a Lei Zico, oito alterações legislativas sobre a matéria. Haja criatividade e insistência. Problemas outros foram e são negligenciados e jogados para debaixo do tapete.
Recentemente, o tema ganhou força política e naturalmente midiática. Uma vez mais, o clube-empresa era proposto como remédio. Pior, diante de todo o histórico que se viu, parece ser a carta final; o Estado pede “all in”. Agora a justificativa é que o clube-empresa não havia deslanchado, pois inexistia marco regulatório.
A “nova” modalidade proposta no Brasil, denominada Sociedade Anônima do Futebol, (S.A.F. – por meio do Projeto de Lei n. 5.516/2019) divide até os “defensores” do dito clube-empresa. Para muitos destes, não haveria a necessidade de se criar uma modalidade de sociedade empresária específica para o futebol. A legislação vigente, com algumas alterações (ou mesmo nenhuma), já poderia “dar conta do recado”. Aliás, essa era a opinião dos responsáveis pelo último projeto de lei (n. 5.082/2016) que até então era o que mais havia “caminhado” nas casas do Congresso Nacional.
Não obstante, dessa vez, uma importante modificação doutrinária se observou. A literal totalidade de devotos do clube-empresa, que em seu interior abarcava desde consagrados estudiosos e autores até “torcedores”, foi paulatinamente substituída por outras visões e formas de interpretação, que se fundamentaram através de diversas pesquisas científicas realizadas, tendo como objeto de estudo o funcionamento e aplicação dessa formatação jurídica na Europa e América do Sul.
Novamente, relembra-se que a matéria que gravita ao redor do tema clube-empresa é hiper-complexa, envolvendo as cadeiras de: Direito, Contabilidade, Economia, Administração, Relações Internacionais, História, Sociologia, Geografia, Jornalismo. Definitivamente, é um tema multidisciplinar que exige análise ampla e profunda.
De qualquer modo, a medicina proposta em alguns países europeus e sul-americanos não funcionou: as contas simplesmente não fecharam no azul, a administração não melhorou, enfim, a profissionalização não veio. Prova concreta foi a necessidade de se estabelecer um Fair Play Financeiro para que cada clube conseguisse equilibrar suas contas, isto é, gastar somente aquilo que se arrecada. E, mesmo assim, subsistem inúmeros desafios.
Para além, tiveram que se ocupar dos efeitos deletérios de se impor uma legislação comercial para entes cuja natureza é diversa. Em outras palavras, o dito remédio gerou mais efeitos colaterais do que benefícios, a ponto de alguns destes levar, efetivamente, o clube-enfermo a óbito. “Lá fora”, a discussão é outra: como sair dessa encruzilhada? Como se propor outra alternativa viável? Como transformar o futebol em uma atividade sustentável?
Enquanto isso, no Brasil, diante das primeiras publicações que chegavam a conclusões diversas, apresentando visões opostas do que até então se tinha, não tardou e surgiram os primeiros a manipularem o discurso. De forma genérica, acrítica e atabalhoada afirmam existir uma politização quanto ao tema, concluindo existirem fanáticos que apregoam a sua utilização como remédio e outros que a condenam. No entanto, essa prática traduz-se como mera tentativa de se criar uma miragem de “confronto político” (quase bélico), com o intuito de se afastar o debate construtivo.
Vão além, alguns promovem textos eruditos, prolixos e com alusões poéticas. Tentativa inócua de se dar um verniz de intelectualidade para um conteúdo carente de criticidade e tecnicidade. O leitor desatento, perdido, acaba por se encantar por mágicas palavras e por fim, promessas vazias.
Comparações esdrúxulas chegaram a ser proferidas. O clube-empresa não só profissionalizaria, mas faria seu clube competir em pé de igualdade com os gigantes europeus; até Copa do Mundo prometeram. Se os devaneios passam, os escritos ficam, ainda mais em um mundo virtual: scripta manent.
O pior é verificar importantes influenciadores de opinião explicitamente a tomar partido, sem nenhuma forma de possibilitar o exercício do contraditório. Imprudente, não só impossibilitam como ocultam dos torcedores visões outras, como se somente aqueles estivessem habilitados para determinar o que estes devem ou não pensar.
Alguns terceirizam até suas colunas em consagrados veículos de comunicação. Nem se dão ao trabalho de propor qualquer tipo de debate edificante e construtivo. Lotearam seus espaços para aqueles que pensam igual a si ou defendem pautas afins.
Não se espante, pois isso não se passa somente no meio midiático. Especialmente e de forma ainda mais gravosa tem, com bastante frequência, ocorrido no meio profissional. Inúmeros eventos organizados por instituições e entidades estão a perpetuar essa prática deletéria que em nada contribui para o avanço de uma análise técnica sobre o tema.
Indivíduos que desconhecem completamente o assunto proferindo “pareceres”, sob o pretexto de que a posição profissional que ocupam, ou melhor dizendo, da posição institucional que exercem, o habilitariam a emitir opiniões sobre todas as temáticas. Muitas vezes é como se convocassem um atleta de vôlei para ser jogador de futebol (ressalvadas as exceções que possam ocorrer).
A questão é: por que criar um simulacro de debates, quando todos os presentes adotam a mesma posição? Quando diverso, simplesmente estão a figurar e legitimar opiniões já previamente acordadas. Na melhor das hipóteses são os chapa-branca. Como avançar cientificamente através de monólogos? Trata-se de debate, diálogo ou propaganda?
Apregoam democracia, contraditório, utilização e supervalorização do conhecimento científico, mas no dia a dia não passa de discurso vazio. Não possuem nenhuma preocupação com o desporto e somente consigo próprio.
Acumulam-se textos repletos de imprecisões e, mais recentemente, até fake news. Muito além de uma análise técnica, estão a vender produtos e de forma agressiva. Pode-se dizer que se tratam ou se transformaram em corretores de clubes-empresas, pois o interesse maior está nas dezenas de milhares de reais que essa dita “transformação”, especialmente em clubes de grande porte, pode lhes acarretar, independentemente do êxito.
Em síntese, algumas cadeias, direta ou indiretamente, se apropriaram de uma agenda que em nada contribui com um debate técnico, democrático e plural. Ao contrário, cria atecnismo e uma legião de fieis fanáticos que cedo ou tarde perpetuará vícios que perduram no ecossistema jusdesportivo.
Por fim, em alusão a um recente artigo publicado pelo Prof. Doutor Gladston Mamede, este relembra uma frase de origem latina presente na entrada de famoso cemitério localizado em Minas Gerais.
Morituri Mortuis: dos que vão morrer para os que estão mortos.
*Advogado, Doutorando em Direito Societário, Mestre em Direito Empresarial e Especialista em Direito Desportivo e Gestão Desportiva.
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