A realidade bateu à porta do Fluminense em 40 segundos
Sair atrás de um gigante europeu é chamar a derrota, ainda mais tão cedo no jogo; final entre Fluminense e Manchester City reforça ideia de mundos diferentes dentro de um mesmo esporte
Uma das delícias de se falar sobre futebol é lançar teses. Neste 22 de dezembro de 2023, durante o Papo de Craque da Rádio Transamérica, lancei a minha sobre a missão do Fluminense contra o Manchester City no Mundial de Clubes. Qual era? A de que, se quisesse ter alguma chance no jogo, o time brasileiro precisaria aproveitar as oportunidades que surgissem para sair na frente no marcador. Não que eu saiba mais do que alguém, longe disso, mas não deu nem tempo de testar a tese. Em 40 segundos o City fez 1 a 0, com o Flu ainda se ajeitando no gramado, e Inês era morta.
De onde vem a tese? De fatos. Os últimos clubes brasileiros que venceram o Mundial de Clubes o fizeram ganhando por 1 a 0. Saíram na frente e viram grandes atuações de seus goleiros ou ficaram entrincheirados defendendo sua vantagem. O São Paulo bateu o Liverpool com uma das maiores atuações da vida de Rogério Ceni. O Corinthians venceu o Chelsea com uma das maiores atuações da vida de Cássio. O Internacional treinou um dia antes e executou a jogada que consagrou Gabiru para vencer o Barcelona pela vantagem mínima, sofrendo menos que São Paulo e Corinthians para sustentar uma vantagem tardia, mas definitiva. Flamengo e Palmeiras fizeram bons jogos recentemente, contra Liverpool e Chelsea. Tiveram oportunidades de sair na frente, mas não conseguiram e terminaram derrotados.
A tese está baseada não apenas nos resultados, mas nos desempenhos. Sem nenhum desrespeito ao Fluminense, mas uma comparação da intensidade de jogo do City em Jedá com o ritmo imposto na Premier ou na Champions League ajuda a compreender. Mesmo sem ser avassalador, o City fez quatro gols, e o Fluminense mal deu ao seu torcedor o direito de gritar aquele “uhhhhhh”.
O campeão da Libertadores foi fiel ao seu conceito de jogo, atuou dentro de suas características e teve momentos interessantes na partida. Mas suas três oportunidades mais empolgantes (nenhuma clamorosa) surgiram de um passe errado do goleiro brasileiro Ederson, de uma bola parada em escanteio e de uma arrancada na raça de John Kennedy. O estilo de jogo não foi o elemento propulsor dessas chances.
Final evidencia ideia de ‘mundos diferentes' no futebol
Fato é que o futebol praticado no Brasil é um esporte diferente daquele jogado nos grandes centros da Europa. As regras são as mesmas, o objetivo é o mesmo, mas a execução é outra. O City atuou sem dois de seus jogadores mais decisivos, Halland e De Bruyne, e um talentoso Doku. O grande nome da equipe inglesa foi Rodri. O espanhol é o senhor do ritmo da partida. Os movimentos que determinam o ritmo passam por ele. Quando é hora de avançar a marcação, quando é hora de acelerar a troca de passes, quando é hora de desacelerar.
A contida celebração do time inglês ao final não reduz a importância do jogo, apenas retrata fielmente a diferença de abordagem. Claro que o City vibrou com a conquista inédita e trabalhou para isso. Mas basta recuperar a cena do apito final da vitória sobre a Inter de Milão na final da Champions para perceber o peso de cada conquista.
Para nós, brasileiros, o Mundial representa uma espécie de afirmação. Uma rara oportunidade de os eternos dominados derrotarem os dominadores, uma chance de ganhar dos caras que vemos pela TV e com cujos avatares jogamos nos videogames. As imagens do time do Fluminense no túnel antes de entrar em campo escancaram o tipo de motivação envolvida. O goleiro Fábio dizendo que Deus tinha escolhido aquele grupo para estar ali, e Felipe Melo pedindo para o time “ter raiva desses caras”. Deus torce para algum time? Raiva joga bola? A tônica é a mesma das reações nas vitórias, como numa entrevista recente de Zetti, goleiro campeão com o São Paulo, na qual afirma “fomos bi mundiais contra os mascarados Milan e Barça”.
Essa lógica do calar a boca, o eterno posicionamento do Davi contra o Golias, tudo isso tem feito muito mal ao futebol brasileiro.
O resgate das vitórias passa pela recuperação da essência de algo simples: jogar melhor que o adversário. Corrigir os inúmeros problemas administrativos de nosso futebol, reconduzir a formação na base para produzir jogadores diferentes. Ainda mais importante: encontrar um calendário racional que possa oferecer a oportunidade de mais intercâmbio para que nossos clubes possam enfrentar adversários que jogam no ritmo dos principais torneios europeus.
Uma reflexão livre de fanatismo na comparação entre o que o Fluminense sofreu diante do Al Ahly, do Egito, e o que impôs de sofrimento ao City escancara as diferenças.