O Brasil tem um grande caso de amor com o Mundial de Clubes
Entre nós a competição tem o status que a FIFA sonha espalhar pelo mundo. Rivalidade, zoeira e um certo complexo de inferioridade explicam o fascínio.
O AeroFlu decolou rumo à Arábia Saudita levando os sonhos do campeão da Libertadores e o fascínio único provocado entre os torcedores brasileiros pelo Mundial de Clubes. Em nenhuma outra pátria futebolística essa disputa angaria tamanho interesse e tanta polêmica como no Brasil. Os debates são infindáveis e calorosos, envolvendo desde a Copa Rio de 1951, passando pela Copa Intercontinental, Copa Toyota e o Mundial de Clubes da FIFA.
Estive em três Mundiais de Clubes da FIFA profissionalmente: 2006, 2010 e 2011. Avalio pela experiência vivida no local e pela repercussão histórica de outras disputas. Na Europa não existe o chamado desprezo pelos torneios, como muitos afirmam no Brasil. Tampouco existe o entusiasmo que nós, brasileiros, manifestamos. É uma competição oficial da qual os clubes participam, mas o resultado final em pouco ou nada impacta no dia-a-dia dos clubes. Se ganhar, tem festa, legal. Se perder, vida que segue. Para os europeus, o Mundial de fato é a Champions. Não se trata de desprezo, mas de constatação da realidade deles.
Para os brasileiros, mais do que para argentinos e uruguaios, o Mundial de Clubes tem um viés psicológico importante. Que resvala em certo complexo de inferioridade e necessidade de afirmação de um futebol que é o maior vencedor entre seleções.
Edições anteriores podem ser consideradas Mundiais?
Cabe uma contextualização histórica. A Copa Rio de 1951, considerada um Mundial pelos palmeirenses e assim tratada pela imprensa brasileira da época, foi uma espécie de embrião da Champions League. O secretário-geral da FIFA em 1951, o italiano Ottorino Barassi, participou da organização da Copa Rio de 1951, com a CBD (Confederação Brasileira de Desportos). Ele cultivava o desejo de organizar uma grande competição internacional entre clubes. A FIFA nunca deu muita bola para o futebol de clubes, registre-se. Mas Barassi ficou com a ideia na cabeça. Ele foi um dos fundadores da UEFA, três anos mais tarde, e contou com o auxílio de um jornalista francês chamado Gabriel Hanot, que também era entusiasta da ideia de um grande torneio internacional entre clubes. Hanot usou o prestígio dos veículos em que trabalhava, “L´Équipe” e “France Football” para trabalhar em busca da criação de um torneio europeu de clubes e do troféu Bola de Ouro. Ele havia contribuído com a organização da Copa Rio, ajudando a convencer os clubes europeus a participarem. Um colega de redação de Hanot, Jacques Ferran, tinha acompanhado o Campeonato Sul-americano de Campeões de 1948, vencido pelo Vasco, e entendeu que a Europa, se quisesse tomar as rédeas do futebol de clubes, precisava organizar um campeonato naqueles moldes. Foram essas ideias os embriões das atuais Europa League e Champions League.
Após a criação dos torneios continentais de clubes na Europa, em 1955/56, e na América do Sul, em 1959, surge a Copa Intercontinental, organizada por UEFA e Conmebol. O formato de confrontos em ida e volta prevaleceu entre 1960 e 1979. Houve percalços, como a desistência dos campeões europeus no início dos anos 1970, por questões políticas em virtude das ditaduras militares sul-americanas e também por alguns episódios de violência, notadamente em 1967, no duelo (literalmente) entre Racing e Celtic.
Desde que a Copa Intercontinental foi criada, a imprensa esportiva brasileira adotou a licença poética do codinome Mundial de Clubes. Até porque esse Mundial efetivamente não existia e aquele era o único confronto existente entre potências sul-americanas e europeias. Cabe o registro de que clubes argentinos como Independiente e Boca Juniors, em seus portais oficiais, chamam o torneio de Copa Intercontinental e valorizam da mesma forma. No Brasil a Intercontinental é tratada como Mundial de fato.
A partir de 1980 o que era a Copa Intercontinental passa a ser organizada pela Associação de Futebol do Japão, com patrocínio da Toyota, que passa a dar o nome para a Copa, sob supervisão – não mais organização – de UEFA e Conmebol. O sucesso televisivo do confronto chamou a atenção da FIFA, que não tinha direito algum sobre a propriedade. Em 2000 a entidade máxima do futebol organizou o primeiro Mundial de Clubes por conta própria, no Brasil, vencido pelo Corinthians. O torneio programado para o ano seguinte, programado para a Espanha, foi cancelado em meio a um escândalo envolvendo a empresa suíça de marketing esportivo ISL, parceira da FIFA. A Copa Toyota seguiu sendo disputada até 2004 e no ano seguinte houve uma espécie de fusão com o Mundial de Clubes da FIFA vigente.
Para o torcedor brasileiro o Mundial de Clubes é fonte inesgotável de provocações, zoeiras e gozações. Turbinadas pela indecisão da própria FIFA, que hora reconhece e hora desautoriza a Copa Rio e as Copas Intercontinentais.
O que vi nos locais em 2006, 2010 e 2011 foram interesses muito diferentes entre europeus e sul-americanos. Em termos de cobertura de mídia e de postura de jogadores e dirigentes. Os brasileiros montam operações de guerra para acompanhar o Mundial, enquanto mídias europeias muitas vezes nem sequer mandam seus principais quadros. Há nisso muito de uma arrogância enraizada, mas é claro que os europeus festejam as conquistas e lamentam as derrotas. Mas em proporções infinitamente menores que nós, sul-americanos.
Em 2011, recordo que o time do Santos ficou em regime de concentração total nos hotéis em Nagoya e Yokohama, os jogadores praticamente não deixavam seus quartos. Os atletas do Barcelona passeavam sozinhos por Tóquio e cruzamos com vários deles num vagão de metrô. As posturas são distintas.
Há entre os brasileiros aquele desejo de afirmação, o mostrar que somos capazes, o tal do calar a boca de todo mundo. Mas em sã consciência nenhum torcedor brasileiro, nem o mais fanático, afirmaria que um time sul-americano que vence o Mundial de Clubes é, de fato, o melhor time do mundo.
O desafio do Fluminense é gigantesco. Desde 2012 nenhuma equipe brasileira vence o Mundial. O primeiro passo é superar a traiçoeira semifinal, o que Atlético Mineiro, Palmeiras e Flamengo sofreram nas peles. O que parece viável atualmente é fazer finais dignas, como Palmeiras e Flamengo conseguiram diante de Chelsea e Liverpool. São mundos diferentes. A realidade brasileira está mais próxima de México, Arábia Saudita e Egito do que de Inglaterra e Espanha.
Num papo com Gustavo Scarpa, ex-Palmeiras, há algum tempo, ele fez uma afirmação que ajuda a explicar essa diferença, analisando o confronto com o Chelsea: “em alguns momentos parecia haver 14 deles contra 11 nossos”.
Que o Fluminense seja abençoado por João de Deus nessa tarefa de representar a incomparável paixão do brasileiro pelo Mundial de Clubes.