Premier League

Das peladas descalço à Premier League em seis anos, Nicolas Jackson recontou sua bonita trajetória

Em entrevista ao Telegraph, Nicolas Jackson falou sobre a ascensão sem jogar em categorias de base, a importância dos pais em seu sucesso e a idolatria por Cristiano Ronaldo

Nicolas Jackson foi uma das principais apostas do Chelsea no movimentado mercado de transferências. Os Blues desembolsaram €37 milhões para tirá-lo do Villarreal, mas o início do senegalês de 22 anos em Stamford Bridge ainda foi lento. Apesar da confiança depositada por Mauricio Pochettino e da fome de bola demonstrada desde a pré-temporada, o nervosismo parecia pesar contra em meio às chances de gol perdidas. O atacante, entretanto, deslanchou nas partidas mais recentes. Fez três gols nos 4 a 1 sobre o Tottenham e também deixou o seu no intenso 4 a 4 com o Manchester City. Parece mais seguro para desabrochar na Premier League.

Jackson tem uma história bem interessante, vindo do interior de Senegal. Foi descoberto por um ex-jogador dos Leões de Teranga e conseguiu um salto à Europa mesmo sem passar por categorias de base. Nesta semana, o atacante concedeu uma longa entrevista ao jornal The Telegraph. Apresentou sua bonita transformação, de quem jogava descalço nas ruas há seis anos e agora se apresenta nos maiores estádios do planeta.

Os primórdios sem base

Nicolas Jackson teve uma trajetória pouco usual no futebol. Diferentemente da grande maioria dos jogadores, ele não passou por categorias de base. O atacante sequer teve uma experiência nas academias de futebol, como é comum na África – algo que inclusive impulsionou companheiros de seleção, como Sadio Mané, talento revelado pela Génération Foot. Jackson lapidou sua habilidade nas ruas, com os pés descalços e em ambientes nos quais prevalecia o gosto por jogar.

“Em Ziguinchor, eu costumava jogar nas ruas com meus amigos. Não era num clube, apenas jogar por seu amor pelo futebol. Talvez apostar um euro, um contra o outro. Era se divertir, jogar sem chuteiras. Apenas com os pés descalços, talvez com as chuteiras emprestadas de alguém”, rememorou. “Não tinha chuteiras, eram caras. Eu jogava com meu sapato da escola ou descalço. Acho que com 16 anos ganhei meu primeiro par de chuteiras. Minha mãe as comprou, eram baratas, não eram como as chuteiras originais. Eram de segunda mão. Não jogava com elas de início, porque não estava acostumado. Eu costumava jogar descalço, então levou um tempo, era um pouco estranho”.

Nicolas Jackson tinha 17 anos quando foi descoberto por Diomansy Kamara, atacante que passou por clubes como West Brom e Fulham, enquanto defendeu a seleção de Senegal em três edições da Copa Africana de Nações. Seria ele o responsável por levá-lo ao Casa Sports, antes de se destacar pela seleção sub-20 e atrair a atenção do Villarreal. De qualquer maneira, Jackson aponta a importância de Unai Emery para o seu desenvolvimento profissional no Submarino Amarelo.

“Estava jogando nas ruas, mas alguns empresários vieram assistir aos meus jogos. Diomansy Kamara fez um torneio para os melhores garotos de Ziguinchor e me viu lá. Fui para o Casa Sports na primeira divisão. Sete meses depois segui para a Espanha. Nunca frequentei uma escolinha de futebol. Apenas jogava nas ruas, era rápido e podia driblar. Quando fui para a Espanha, Unai Emery estava lá e me desenvolveu”, afirmou Jackson.

A importância dos pais

Nicolas Jackson se mostra uma pessoa muito ligada à família. Ao longo da entrevista ao Telegraph, deixou expressa a gratidão com os pais. Foram eles que o apoiaram desde o princípio e fizeram se apaixonar pela bola, um dos primeiros brinquedos. Foi a partir de então que o menino vislumbrou um caminho.

“Meus pais me disseram que, quando eu era pequeno, antes de começar a falar, eles me deram uma bola. Para me fazer dormir, eu tinha que estar com a bola. Eu era um bebê. Não tiraram foto disso porque não tinham uma câmera, mas eu dormia com a bola. Se eu acordasse e não visse a bola, chorava. Todo mundo me diz isso. O futebol era algo que eu tinha que fazer. É algo que Deus te dá e diz que você precisa seguir com isso”, lembrou.

Jackson chegou a tomar uma decisão difícil durante a adolescência: largou os estudos para se dedicar ao futebol. A família não aprovou a sua escolha, mas nem por isso deixou de apoiá-lo em seu sonho. Em especial, a mãe, que se desdobrava na roça para prover o sustento ao garoto.

“Em Senegal, alguns garotos vão para as academias. Mas, na minha família por parte de pai, não era o que queriam de mim. Eles questionavam se ia conseguir dar certo no futebol, porque é muito difícil. Você precisa escolher entre ir para a escola ou tentar jogar. Deixei os estudos e todo mundo ficou bravo comigo. Se eu não tivesse sucesso no futebol, não sei o que faria. Queriam que eu fosse para a escola e me formasse, mas eu precisava escolher meu próprio caminho”, apontou Jackson.

“Você sabe como as mães são, elas fazem o que você precisa. Elas te amam e sempre vão te apoiar. Eu não ia à escola, mas ela sempre me apoiava e me ajudava. Ela trabalhava numa fazenda, algo comum onde eu morava. Ela tinha que trabalhar de manhã até a noite para me sustentar. Ela cultivava, depois vendia. Vendia de tudo, amendoim, melancia. Eu estava jogando futebol, não vendendo com ela ou conseguindo qualquer dinheiro”, complementou.

Apesar do risco que abraçou, Nicolas Jackson teve uma mentalidade firme. Passou a se comportar como um profissional antes mesmo de ganhar suas primeiras chances. Assim, conseguiu cuidar-se sem cair nas tentações da juventude: “Eu tive que lutar e ser forte. Não ia a festas, não fumava, não bebia. Ainda não faço isso. Tinha muitos amigos que faziam, mas eu sabia que estava sozinho e que, se não desse certo, seria uma vida difícil. Não fui o único que tive uma vida difícil na África, então não tinha medo disso”.

Com a afirmação na carreira, o intuito do senegalês é retribuir ao máximo todo o carinho que recebeu em casa: “Não quero que minha mãe faça nada agora. Ela continua em Senegal, quer trabalhar, mas eu não quero que ela trabalhe. Ela não quer apenas se sentar num lugar, então veremos. Você não pode retribuir tudo o que sua mãe e seu pai fazem, nunca. Especialmente sua mãe, porque ela ficou com você na barriga por nove meses. Tudo o que você faz por ela nunca será suficiente. Estou sempre tentando fazer o possível para deixá-la feliz”.

A idolatria por Cristiano Ronaldo

Nicolas Jackson tem um grande ídolo de infância: Cristiano Ronaldo. O senegalês não nega a inspiração no português, especialmente por seus feitos nos tempos de Real Madrid. O garoto se esgueirava na casa de amigos para ver os gols do atacante com a camisa merengue. E isso é algo que segue regendo sua caminhada no futebol, de diferentes formas.

“Quando eu era criança, amava Cristiano Ronaldo. Eu tinha o nome dele numa camisa que sempre usava. Não uma camisa de verdade, porque são caras, então eu não comprava. Eu tinha uma camisa que coloquei o 7 e Ronaldo com uma caneta. Eu mesmo fiz isso quando era criança. Claro, eu imaginava ser ele, mas era difícil assistir aos jogos porque você precisava pagar. Todo mundo ia para a casa de um amigo. Víamos em grupo, todo mundo numa casa para assistir ao Real Madrid”, contou.

Quando Nicolas Jackson comemorou sua tripleta contra o Tottenham fazendo a característica celebração de CR7, era exatamente um sinal dessa inspiração: “Sempre fiz essa comemoração, mesmo quando estava no Villarreal e marquei dois gols. Então, quando consegui um hat-trick, tinha que repetir isso. Agora só comemorarei assim nos hat-tricks, não em todos os gols. Foi o primeiro hat-trick da minha carreira, então foi muito especial. A bola está na sala de casa para que todo mundo possa ver. Espero que tenha muitas mais, mas a primeira sempre é muito importante e tentarei mantê-la num lugar seguro”.

Além disso, o senegalês aponta como a postura de Cristiano Ronaldo, ao responder os críticos em campo, também serve de lição – especialmente depois de um início difícil no Chelsea, em que ouviu fortes declarações de comentaristas da televisão britânica, incluindo os veteranos Alan Shearer e Peter Crouch: “Cristiano podia marcar 30 ou 35 gols numa temporada e ainda assim as pessoas o criticavam. Você nunca o ouviria falar sobre isso, ele apenas respondia com uma comemoração. Então isso não me afeta. Estou aprendendo com ele, nunca retrucaria uma crítica. Eu sei o que posso fazer, acredito em mim mesmo”.

Por enquanto, Nicolas Jackson está distante das marcas de Cristiano Ronaldo, com seis gols em 11 aparições pela Premier League. No entanto, a empolgação pelos jogos recentes indica o amadurecimento do senegalês, depois de suas dificuldades iniciais. Aos 22 anos, há uma longa estrada para que ele continue a sonhar. A parte mais difícil do caminho, a pés descalços, ele já percorreu.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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