Premier League

O Everton oficializa sua venda para a 777 Partners, num negócio cheio de poréns

O Everton vem em severa crise com seu antigo proprietário e a 777 não transmite confiança, diante das acusações; fundo de investimentos ainda passará pelo crivo da Premier League

O Everton confirmou nesta sexta-feira a aquisição de 94,1% das ações do clube pelo fundo de investimentos americano 777 Partners. O valor corresponde à parcela dos Toffees que pertencia a Farhad Moshiri, empresário britânico-iraniano que assumiu o controle da agremiação em fevereiro de 2016. O período sob a gestão do empresário não teve grandes sucessos esportivos, com o maior passo dado a partir da construção de um novo estádio para substituir o Goodison Park. No entanto, durante as últimas temporadas, o Everton sofreu com seu endividamento e a falta de investimentos no departamento de futebol gerou sérios riscos de rebaixamento. A 777 Partners chega sob desconfiança e existem sinceras dúvidas se a aquisição será aprovada pelos órgãos de controle da Premier League. O jornal The Guardian diz que esse será o “primeiro grande desafio” ao teste de proprietários realizado pela liga, que se tornou mais restrito recentemente.

O acordo foi assinado pelas duas partes nesta semana. A aquisição é importante para que o próprio Everton conclua a construção de seu novo estádio, com capacidade para 52,8 mil torcedores, localizado na região das docas de Liverpool. O dinheiro será redirecionado ao financiamento da arena. O acerto, porém, não garante que o negócio será aprovado. Nas próximas semanas, a Premier League irá avaliar as condições da 777 Partners para se tornar dona de um clube de sua competição. As acusações de fraude pesam contra a companhia americana, ainda mais porque não há detalhes do tamanho da transação e como ela será paga.

A 777 Partners possui um portfólio de clubes bastante conhecido, especialmente pelos 70% da SAF do Vasco no Brasil. A praxe dos americanos é comprar times em baixa para tentar valorizá-los. Os rebaixamentos recentes são comuns, a exemplo do que aconteceu com o Hertha Berlim e com o já promovido Genoa. Além disso, a lista de equipes também engloba Red Star Paris, Standard de Liège e Melbourne Victory. Ainda há uma parcela minoritária do Sevilla, bastante criticada pela torcida andaluz pelo modelo de atuação do fundo americano e também pelas quedas de braço internas.

E existem genuínas desconfianças sobre a legitimidade dos negócios da 777 Partners. Em julho, a revista norueguesa Josimar Football publicou um artigo investigativo sobre os bastidores da companhia americana. Há indícios de que o grupo 777 não é viável financeiramente, enquanto o texto também trazia indagações sobre a origem do dinheiro. Segundo um ex-funcionário que não se identificou, o montante movimentado pelo fundo de investimentos é sempre o mesmo, indo para diferentes clubes a fim de oferecer garantias na compra. Há uma situação claramente nebulosa que precisa passar pelo crivo da Premier League.

A Premier League introduziu novas diretrizes em seu teste para proprietários e diretores em março. A liga foi bastante criticada pela maneira como se abriu a magnatas estrangeiros, especialmente pelo investimento direto da Arábia Saudita no Newcastle para o qual a entidade fechou os olhos. Também há casos de clubes tradicionais da Inglaterra que sucumbiram nas divisões de acesso e tiveram dificuldades financeiras, mas geralmente da Championship para baixo. O caso do Everton também é emblemático pela importância histórica dos azuis no Campeonato Inglês. É a maior aquisição para a 777, mas também um teste de fogo para a imagem da liga.

O Everton tentou viabilizar sua venda ao longo dos últimos meses, diante de seus pesados compromissos financeiros provocados pela construção do novo estádio. O clube chegou a ser negociado com outro fundo de investimentos americano, a MSP Sports Capital, que emprestou £100 milhões para as obras da arena. No entanto, as conversas não se concretizaram. A MSP também tem controle sobre os rumos da venda do Everton à 777. Os credores dos Toffees, incluindo também a Rights and Media Funding, podem barrar a venda ou então exigir o pagamento antecipado dos empréstimos que fizeram, que chegam na casa dos £300 milhões. A dívida total do clube é ainda maior que isso, analisada com risco de punição pelo Fair Play Financeiro.

A venda do Everton foi criticada ainda pelos acionistas minoritários do Everton. Acusaram Moshiri de desconsiderá-los. “Receber apenas alguns minutos atrás o aviso dessa mudança de donos é decepcionante. Mais uma vez, o mau momento dos anúncios do clube antes de jogos importantes é desconcertante. O dono e o clube continuam a tratar os acionistas e os torcedores com desdém. Encorajamos os atuais e propositadamente futuros donos a praticar imediatamente seu discurso de comprometimento. Os torcedores são o ativo mais importante em qualquer clube”, escreveram, em nota.

As turbulências com Moshiri

Farhad Moshiri nasceu no Irã e se mudou ao Reino Unido depois da Revolução de 1979. O empresário se formou em economia em Londres e fez sua fortuna especialmente pelas ligações com uma empresa russa de forte atuação em metalurgia. Tal negócio o levou também ao futebol, como sócio minoritário do Arsenal ao lado de Alisher Usmanov. Já em 2016, Moshiri deixou os Gunners e adquiriu o Everton. Comprou 49,9% do clube de início, até ampliar sua participação rumo aos 94%, concretizados em janeiro de 2022. Seu investimento total no clube chegou a £750 milhões, mas não que isso tenha rendido totalmente. Até por causa dos impactos da pandemia e do novo estádio, as dívidas se acumularam e ultrapassaram os £400 milhões nos últimos cinco anos. Já os custos do novo estádio chegam a £760 milhões, £260 milhões a mais que a previsão inicial.

O Everton ainda se manteve como um time da parte de cima da tabela na Premier League durante as primeiras temporadas sob o controle de Moshiri. A equipe teve duas aparições consecutivas na oitava colocação e investiu em treinadores qualificados, como Carlo Ancelotti, Ronald Koeman e Marco Silva. Entretanto, as sucessivas trocas de comando indicavam turbulências desde então. O declínio se acentuou especialmente após a saída de Ancelotti, com a malfadada aposta em Rafa Benítez. Desde então, os Toffees se acostumaram apenas a sobreviver na parte inferior da Premier League, em busca da fuga do rebaixamento. É o que deve acontecer também nesta nova temporada, com Sean Dyche no comando. O time está na zona de rebaixamento da Premier League 2023/24, com um ponto em quatro rodadas.

Esportivamente, a gestão de Moshiri foi horrível. O Everton fez muitas apostas no mercado de transferências que não se compensaram. Contratações caras como Yannick Bolasie, Morgan Schneiderlin, Gylfi Sigurdsson, Michael Keane, Theo Walcott, Cenk Tosun, Yerry Mina e André Gomes não geraram grandes resultados em campo, nem mesmo lucros no mercado. Muitos dos negócios eram regidos mais por empresários do que por interesses técnicos e escolhas criteriosas. Ao menos, os Toffees venderam bem alguns jogadores – John Stones, Romelu Lukaku, Idrissa Gana Gueye, Lucas Digne, Anthony Gordon e Richarlison saíram por valores altos. Ainda assim, as contas estranguladas se notam nos mercados recentes. Enquanto Moshiri gastou £190 milhões em 2017/18, a última janela de transferências teve um gasto mínimo de £35 milhões. O atacante Beto foi o único reforço de peso, e isso porque o clube perdeu bem mais jogadores renomados, embolsando £75 milhões em vendas.

A essa altura, a situação financeira do Everton se tornava bem mais impactante sobre os caminhos do departamento de futebol. A construção de um novo estádio foi um passo ousado e uma maneira de colocar o clube na vanguarda da Premier League. No entanto, esse tipo de obra gera consequências pesadas nas finanças, vide as dificuldades que clubes mais ricos como Arsenal e Tottenham enfrentaram em períodos recentes. Sem um projeto tão sólido, o Everton viu seu time ruir e a situação se tornar delicada ao proprietário. Moshiri opta pela venda num momento de risco real de rebaixamento, o que teria um custo ainda maior para as finanças e para a própria transição à nova arena.

Outro “legado” de Moshiri é o risco de penalizar o Everton no Fair Play Financeiro. O clube está sob escrutínio da entidade responsável pela avaliação dos balanços na Premier League e será avaliado no próximo mês de outubro. Uma punição pode acelerar ainda mais um possível rebaixamento dos Toffees. Em meio a esse cenário preocupante, o proprietário pelo menos busca uma solução aos seus negócios com a venda para a 777 Partners. Mas não que a transação se sugira totalmente ilibada, pela maneira como o fundo de investimentos americanos atua e também pelas dificuldades que seus outros clubes enfrentam.

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A má reputação da 777

Não bastassem as denúncias contra a 777 Partners, a atuação esportiva do grupo deixa muitas reticências. O maior exemplo disso é visto de perto no Brasil, com o Vasco. A gestão dos cruzmaltinos é bastante problemática e, apesar do acesso na temporada passada, os riscos de um novo rebaixamento são notáveis. E que os entraves do clube não se restrinjam à 777, também não dá para tirar dos americanos a parcela de culpa pela montagem do elenco e pelo planejamento do departamento de futebol.

Na Europa, os dois principais clubes da 777 Partners foram rebaixados. Os investidores americanos assumiram o Genoa depois de uma administração caótica e não evitaram o rebaixamento, mesmo com uma janela de transferências de inverno já como donos em 2021/22. Ao menos, conseguiram o acesso imediato na Serie B 2022/23. Já na Alemanha, assumiram o Hertha Berlim em crise, diante da desastrosa gestão de Lars Windhorst, e sequer puderam fazer contratações para evitar o descenso em 2022/23. A campanha na segundona começou mal. A 777 pode ter adquirido vivência nos clubes de futebol, mas não com a taxa de acerto necessária para ter sucesso.

Não que a situação dos demais anime. O Standard de Liège é um gigante estagnado no Campeonato Belga e não começa bem a nova campanha. O Red Star Paris tem sua tradição restrita à terceirona do Campeonato Francês, em busca do acesso nesta temporada. Já o Melbourne Victory foi comprado na temporada passada e ainda tenta restabelecer sua importância no Campeonato Australiano. Esportivamente, a 777 passa longe de ser um grupo que impulsione os times em seu portfólio. Até por isso, crescem os rumores de que o futebol seja apenas um caminho para interesses escusos do fundo de investimentos – num ambiente historicamente tão propenso à lavagem de dinheiro.

O Everton será o carro-chefe da 777 Partners, se o negócio for realmente concluído. É um clube com títulos importantes em sua história, presente na liga mais rica do mundo, com uma maior capacidade de investimento. Até por isso, a avaliação realizada pela Premier League deveria ser bastante cuidadosa. Que Moshiri não tenha provocado aparentemente uma fraude, o teste realizado pela liga não tinha como prever a coleção de erros do proprietário. Mas a chegada da 777 na atual situação pode implicar em problemas maiores.

O que os responsáveis falaram

Em nota oficial, Moshiri falou sobre a negociação: “A natureza da propriedade e do financiamento dos principais clubes de futebol mudou imensamente desde que comecei a investir no Everton, há mais de sete anos. Os dias de um proprietário/benfeitor estão aparentemente fora do alcance da maioria, e os maiores clubes são agora normalmente propriedade de empresas com bons recursos, investidores especializados em esportes ou fundos apoiados por estados. Eu me abri sobre a necessidade de trazer novos investimentos e concluir o financiamento do nosso icónico novo estádio em Bramley-Moore Dock, que financiei predominantemente até à data. Falei com várias partes e considerei algumas grandes oportunidades”.

“É através das minhas longas discussões com a 777 que acredito que eles são os melhores parceiros para levar o nosso grande clube adiante, com todos os benefícios do seu modelo de investimento multiclube. Como resultado deste acordo, temos um investidor experiente e bem relacionado em clubes de futebol, que ajudará a maximizar as oportunidades comerciais e garantirmos o financiamento completo para o nosso novo estádio, que será o elemento central no sucesso futuro. Hoje é dia de um passo importante no desenvolvimento bem-sucedido do Everton e estou ansioso para acompanhar de perto o crescimento do nosso clube”, complementou.

Já em suas primeiras palavras, a 777 se endereçou as torcedores: “Estamos verdadeiramente honrados com a oportunidade de fazer parte da família do Everton como guardiões do clube e consideramos um privilégio poder desenvolver a sua herança e seus valores. Nosso principal objetivo é trabalhar com torcedores e partes interessadas para desenvolver a infraestrutura esportiva e comercial para as equipes masculina e feminina, que proporcionará resultados para as futuras gerações de torcedores do Everton. Como parte disto, estamos empenhados em estabelecer parcerias com a comunidade local a longo prazo, trabalhando em projetos importantes, como o desenvolvimento de Bramley-Moore Dock como um estádio de primeira classe, permitindo que milhares de torcedores assistam aos nossos jogos em casa e contribuir para a regeneração económica e cultural de Merseyside”.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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