Champions LeagueInglaterra

Klopp agora trabalha para engrandecer o seu legado, e a final da Champions é apenas o começo

Após reconstruir o clube e devolvê-lo ao topo de todas as competições, a missão de Klopp tem que ser apenas uma: ganhar o máximo possível

A temporada anterior do Liverpool foi tão ruim que houve o risco real de o então atual campeão inglês não conseguir vaga entre os quatro primeiros colocados. Chegou ao oitavo lugar no começo de março. Prova do quão bem gerido é o clube, a situação foi tratada pelo que ela era: uma pane na máquina após longa maratona, influenciada por lesões e pela pandemia, sem decisões precipitadas e desespero. E prova de que isso é verdade é que não foi necessária grande revolução para os Reds ficarem próximos da melhor temporada da sua história, e é impossível dar crédito suficiente a Jürgen Klopp.

Enquanto os jogadores se machucavam, as arquibancada seguiam vazias e os resultados desapareciam, Klopp parecia cansado. Ele tira grande parte da sua energia da relação com a torcida, que pelas restrições sanitárias não esteve em Anfield para ser levada à loucura pela sua sequência de socos no ar. Elisabeth Klopp, sua mãe, morreu aos 81 anos, e ele também não conseguiu viajar para o funeral por causa da Covid-19. Uma tragédia pessoal e o trabalho desmoronando. Geralmente um momento de muita reflexão.

O torcedor do Liverpool ficou deliciado que o resultado dessa reflexão foi a decisão de continuar na cidade por mais dois anos. O que poderia levar a uma saída precoce se transformou em renovação de contrato até 2026, o que significa que na prática a história de Klopp em Anfield está um pouco além da metade, e agora o processo entra em uma nova fase. Após restaurar as estruturas do clube e devolvê-lo à primeira posição de todos os campeonatos que disputou, chegou a hora de marcar seu nome o mais profundamente que puder ampliando a prateleira de troféus.

Klopp é muito comparado com Bill Shankly. Os títulos que conquistaram foram importantes, quebraram longos jejuns nacionais, mas o principal legado de ambos foi pegar uma instituição jogada às traças e reconstrui-la ao primeiro patamar da Europa. São amados pelo que fizeram, mas principalmente porque entenderam a cidade, entenderam as arquibancadas, entenderam a alma do clube. Compartilham visões de mundo e opiniões políticas semelhantes às da maioria da torcida. Ambos muito carismáticos, tornaram-se líderes de uma comunidade além do futebol.

Essa foi uma temporada especial para Klopp nesse sentido, das críticas à Federação Inglesa por marcar a semifinal da Copa da Inglaterra em um fim de semana no qual não haveria trens da região de Liverpool para Londres às cobranças por mais ingressos na final da Champions. Questionou se a sociedade inglesa realmente se importa com a origem do dinheiro que pinga em clubes como Newcastle, Manchester City e Chelsea (antes da Rússia invadir a Ucrânia) e cobrou uma posição da Premier League sobre as acusações de violações de direitos humanos contra a Arábia Saudita. Em dezembro, quando os números da onda da Ômicron não paravam de subir, disse que vacinação é uma questão de “solidariedade, lealdade e união”. É um antigo e feroz crítico do calendário que favorece a ganância às custas da saúde dos jogadores.

Cabeça a cabeça com Shankly nas questões místicas, o interessante é que Klopp está posicionado para disparar em conquistas, talvez se aproximar do vencedor em série Bob Paisley, e se juntar as duas coisas será difícil fazer um contra-argumento de que é o maior da história do Liverpool. Os anos de gradual reconstrução foram concluídos. Ele tem em mãos uma máquina azeitada de vencer jogos de futebol que só não venceu mais porque concorre com outra histórica máquina de vencer jogos de futebol. Os próximos quatro anos serão sobre engrandecer e fortalecer o seu legado.

Shankly também perdeu as primeiras temporadas limpando a casa, antes de quebrar um jejum de 17 anos sem títulos nacionais, com a primeira Copa da Inglaterra da história dos Reds na sequência. Terminaria sua passagem com seis conquistas relevantes: três Campeonatos Ingleses, duas FA Cup e uma Copa da Uefa. A mesma quantidade que Klopp tem neste momento, se colocarmos o Mundial de Clubes (ok) e a Supercopa da Uefa (vá lá) nesse balaio. E em muito menos tempo.

Mas os prazos mudaram. Shankly viveu uma época em que o dinheiro era importante, mas havia uma gangorra muito mais inquieta, principalmente no futebol inglês, que teve sete campeões diferentes na década de sessenta. Que Paisley pouco depois tenha conseguido conquistas no ritmo dos Superclubes (14 em nove anos) é incrível e resultado da estrutura que herdou de Shankly. O que Klopp deixará para seu sucessor é um fator misterioso dessa comparação que permanecerá assim por muitos anos.

Hoje em dia, a cobrança é para que clubes do tamanho do Liverpool ganhem mais de um título por temporada, no mínimo, e há registros do Bayern de Munique em crise após levar a Dobradinha nacional e do Real Madrid campeão de La Liga demitindo técnico. É uma cobrança um pouco insana por um lado, natural por outro dada a atual desigualdade financeira do futebol europeu, e nesse cenário seis títulos em sete temporadas é até pouca coisa, mesmo com os fatores atenuantes – os anos de reconstrução, a concorrência do City.

A possibilidade do quádruplo, que acabou sendo bem mais real do que o torcedor do Liverpool mais otimista realmente acreditava, era uma maneira de acelerar o processo e principalmente de dar a Klopp um feito inédito e inigualável que valeria mais do que números brutos. Mesmo que a Premier League tenha ficado a um ponto, as duas copas nacionais foram importantes porque era o departamento em que ele mais estava devendo. E agora pode acrescentar a sua segunda Champions League.

Apenas Paisley ganhou mais de uma com o Liverpool, e o status que Klopp tem como um dos melhores técnicos do mundo neste século, quase consensualmente o segundo atrás de Guardiola, justifica que ele entre no seleto grupo de múltiplos vencedores na Europa. Será a sua quarta final, e uma vitória o deixaria próximo dos líderes Paisley, Carlo Ancelotti e Zinedine Zidane, cada um com três vitórias.

Um segundo motivo que levou Shankly a não conquistar tantos títulos quanto poderia, e está registrado em vários livros o seu arrependimento, foi a relutância em abrir mão dos jogadores que formaram o seu primeiro grande time. Houve um hiato de seis temporadas até conquistar o Campeonato Inglês e a Copa da Uefa em 1972/73, prestes a se aposentar. Klopp, muito em breve, talvez na segunda-feira, terá que começar a tomar decisões difíceis para não cair na mesma armadilha, com as renovações de Roberto Firmino, Sadio Mané e Mohamed Salah como o maior símbolo delas. Não sustentará a competitividade até o fim do seu contrato (ou além) sem uma boa reformulação.

O que o favorece é estar em um clube no qual controla ou tem muita influência em todos os processos, tem o lastro de uma das potências da Europa, dinheiro suficiente para fazer investimentos quando considerar adequado, que observa o mercado como poucos e se tornou extremamente estável, continuando a vencer mesmo com saídas de nomes importantes, como o seu ex-auxiliar Zeljko Buvac ou o diretor esportivo Michael Edwards. Para minar as perspectivas de Klopp, o Liverpool teria que começar a cometer erros que parou de cometer desde que contratou o alemão em 2015.

Klopp tem um lugar de honra reservado na história do Liverpool. Pode ir embora amanhã (o que causaria certo terremoto) que ainda será o melhor e maior treinador da era Premier League, em linha com Shankly, Paisley e outras lendas, como Kenny Dalglish. Exatamente qual lugar terá nesse ranking dependerá dos próximos anos. Dependerá essencialmente da quantidade de troféus que conseguirá acumular e a próxima chance é no sábado, com a final da Champions League.

Foto de Bruno Bonsanti

Bruno Bonsanti

Como todo aluno da Cásper Líbero que se preze, passou por Rádio Gazeta, Gazeta Esportiva e Portal Terra antes de aterrissar no site que sempre gostou de ler (acredite, ele está falando da Trivela). Acredita que o futebol tem uma capacidade única de causar alegria e tristeza nas mesmas proporções, o que sempre sentiu na pele com os times para os quais torce.
Botão Voltar ao topo