Assistimos na Quarentena: O ensaio do milagre – ou como o Manchester United tomou Turim para si
Em meio à pandemia do novo coronavírus, criamos a seção Assistimos na Quarentena, com jogos históricos revisitados. Muitos dos jogos você encontra no Footballia. Quer ver um jogo específico aqui? Vá aos comentários e sugira. O espaço é seu.
Contexto
A Itália vivia uma hegemonia no continente à época. Nas sete temporadas anteriores, times italianos haviam chegado à decisão da Champions League em todas as edições. A Juventus, particularmente, tinha estado nas três últimas finais, vencendo em 1996 e ficando com o segundo lugar em 1997 e 1998. No âmbito doméstico, a Juve não vivia uma temporada tão boa quanto a anterior, em que fora campeã, mas vinha de uma importante vitória por 3 a 1, fora de casa, contra a Lazio, que terminaria como vice-campeã da Serie A.
A partida de ida havia representado um bom resultado aos bianconeri, que levaram para casa um empate em 1 a 1 no Old Trafford. Para além do resultado, a atuação indicava uma Juventus favorita. Os italianos haviam feito bem seu jogo e seguravam a vitória por 1 a 0 até os momentos finais, quando Ryan Giggs marcou o gol do empate já nos acréscimos. Gianni Agnelli, então proprietário da Juve, havia admitido até mesmo que a atuação em Manchester havia sido a “mais bonita” que ele havia visto desde que se tornara parte do clube, no fim da década de 1940.
Com os bianconeri jogando com o regulamento debaixo do braço, a missão era dura para o United: quebrar uma defesa italiana.
Primeiro tempo
O duelo começou corrido. O Manchester United se lançava à frente, mas acabava se expondo para contra-ataques. A Juventus apostava em bolas longas. Em uma delas, aos cinco minutos, Zidane lançou Inzaghi com precisão, mas Jaap Stam chegou para fazer a cobertura e mandar para a lateral. Aquele era apenas o primeiro indício de como a movimentação de Pippo iria complicar a vida dos defensores do United.
Apenas um minuto depois, Edgar Davids fez boa jogada individual pelo meio de campo e deu um passe cortando as linhas para Di Livio. Antes que o ponta pudesse finalizar a jogada, Beckham, ajudando na marcação, chegou de carrinho e mandou para escanteio.
Na bola parada, entrou em ação a jogada ensaiada da Juve. Zidane cobrou rapidamente o escanteio com Di Livio, recebeu de volta e cruzou baixo, na segunda trave. Gary Neville, que fazia a marcação de Pippo Inzaghi, se descuidou. Até tentou alcançar novamente o matador italiano, mas era tarde demais: o camisa 9 apenas completou para as redes para abrir o placar.
O Manchester United respondeu rápido: aos oito minutos, Keane acertou belo passe pelo alto para Neville. De dentro da área, o lateral cruzou, e Andy Cole acertou uma bonita bicicleta, mas na direção de Peruzzi, que defendeu sem problemas.
Apostando ainda na construção rápida de jogo, a Juventus chegou a seu segundo gol. Aos 11 minutos, com dois passes, os italianos foram da defesa ao ataque. Pessotto, por fim, tocou para Inzaghi. O atacante, marcado de perto por Stam, tentou o cruzamento, mas a bola desviou no zagueiro neerlandês e tomou outra trajetória, encobrindo Peter Schmeichel para o 2 a 0.
Se desde o início a Juventus se preocupava mais em se defender, aproveitando chances pontuais de se lançar ao ataque, com o 2 a 0 no placar isso se exacerbou. Carlo Ancelotti recuou suas linhas de defesa e meio de campo, tirou basicamente toda a criatividade de Zidane e Davids, colocando-os como operários da marcação para bloquear Roy Keane e Nicky Butt, e tentou se agarrar à vantagem. Seu erro começava aí.
Seja pelo posicionamento dos italianos ou por sua necessidade própria, o Manchester United ocupava todo o campo de ataque. Na sobra, para lidar com contra-ataques, ficavam apenas o zagueiro Johnsen e um dos laterais por vez, Neville ou Irwin, no campo de defesa. Mesmo Stam se transformava em meio-campista para ajudar a bola a rodar mais rapidamente e encontrar espaços na fechada defesa italiana.
Com as linhas lotadas da Juve, o United precisava de mais movimentação de sua dupla de ataque, e Cole e Yorke começaram a entregar isso. Aos 16 minutos, Yorke dá um lindo corta-luz, deixando a bola passar para Cole. O camisa 9 devolve ao companheiro, que finaliza de primeira, mas por cima do gol.
Em outro ataque, aos 21 minutos, Yorke é derrubado na área por Ferrara, a bola sobra para Beckham, o chute é desviado e cai nos pés de Cole, mas o árbitro assinala impedimento. Na narração da TV inglesa, a cobrança é por um pênalti não marcado em Yorke.
Os gols sofridos não parecem ter alterado significativamente os planos do United. Na metade da primeira etapa, a equipe não mostrava afobação para construir suas jogadas, e isso passava muito pelos pés de Roy Keane – mas falamos mais dele mais tarde.
Aos 24 minutos, em linda trama do ataque do United, a bola passa por Beckham, Yorke, Neville, Keane, Stam, Irwin, Blomqvist, de volta para Irwin, que faz um lançamento primoroso para Cole. Ferrara, na hora certa, aparece para desviar para escanteio. E assim nascia o primeiro gol do United.
Na cobrança de Beckham, Keane aproveita que Zidane não consegue alcançar a bola, se antecipa ao restante da marcação na primeira trave e desvia de cabeça, com efeito, para marcar o 2 a 1. O irlandês pouco comemora. Volta rapidamente para o seu campo, com um olhar de concentração máxima: afinal, a missão estava apenas na metade.
A importância de Keane àquele Manchester United ia se evidenciando a cada minuto, e então veio um pequeno baque: aos 32 minutos, o meia errou um domínio de bola e, para impedir o contra-ataque de Zidane, cometeu falta no francês. O árbitro Urs Meier lhe mostrou o cartão amarelo, tirando-o de uma eventual decisão.
O pequeno percalço não tirou a concentração do Manchester United. Aos 34 minutos, a Juventus tinha a posse de bola e tentava chegar ao ataque. Em uma tentativa de bola longa de Davids, Beckham interceptou de cabeça e iniciou a transição ofensiva dos ingleses. Depois de rodar, a bola foi lançada por Neville, Beckham fez o pivô de cabeça, deixando com Cole. O camisa 9 então cruzou, mandando a bola exatamente na altura perfeita para impossibilitar a chegada de Ferrara e entregar na cabeça de Yorke. O atacante mergulhou de cabeça, tirando de Peruzzi, e conseguiu o gol do empate.
Aquele 2 a 2 já classificava o United, devido ao número de gols fora de casa, mas os comandados de Alex Ferguson seguiram sua grande atuação na primeira etapa. Aos 36, em ótima trama, Neville fez uma inversão de jogo, Irwin cruzou baixo para Cole, que evitou a chegada da zaga e girou rapidamente, finalizando, mas mandou em cima de Peruzzi.
No lance seguinte, a Juventus chegou com perigo pela esquerda. Di Livio deu um passe em profundidade para Inzaghi, que girou bem para cima de Stam e forçou Schmeichel a fazer uma boa defesa. Por fim, aos 39 minutos, uma bola longa de Neville quase se converteu no gol da virada aos ingleses: depois da tentativa de afastar a redonda da área, ela sobrou para Yorke, que chutou rasteiro, carimbando a trave direita de Peruzzi.
Diferentemente do jogo de ida, Davids teve um jogo bem quieto no primeiro tempo, preso às instruções de marcar Keane e Butt. O mesmo foi observado com Zidane, pouco criativo em decorrência da estratégia adotada por Carlo Ancelotti.
Segundo tempo
Com o resultado desfavorável, o técnico sabia que era preciso mudar. Alterou algumas peças, tirando Mark Iuliano, zagueiro pela direita, e Birindelli, lateral direito, para as entradas de Paolo Montero – normalmente titular e que gozava de grande reputação – e Nicola Amoruso, logo no início do segundo tempo. Di Livio, que jogara a primeira etapa na ponta esquerda, foi então para a ponta direita na etapa final.
Sobretudo a mudança de mentalidade fez a diferença à Juve. O time se lançava mais ao ataque desde o primeiro minuto do segundo tempo, buscando ter a posse de bola no campo do adversário. Aos seis minutos, o primeiro lance de grande perigo: Pessotto tocou em profundidade para Inzaghi, que ficou sozinho na cara do gol. Porém, o camisa 9 parou em grande defesa de Schmeichel.
Na sequência, em disputa no meio do campo, Davids levou cartão amarelo por falta em Beckham e, caso os bianconeri se classificassem, estaria também suspenso da final.
O Manchester United alternava bem suas estratégias de ataque, e um dos recursos era a bola longa de Neville. Em uma delas, aos dez minutos, Yorke ganhou de cabeça, e a bola sobrou para Beckham. O camisa 7 executou um cruzamento milimétrico, mas Cole perdeu a oportunidade de fazer o 3 a 2.
Melhor nos primeiros dez minutos de segundo tempo, a Juve assustava o United. Aos 16 minutos, após bola cruzada na área e um bate-rebate, Inzaghi chegou a balançar as redes, mas estava claramente impedido, e o gol não foi validado.
Em alteração que já havia feito em outras oportunidades, Alex Ferguson decidiu sacar Blomqvist, mandou Nicky Butt para a ponta esquerda e colocou Paul Scholes em campo, para jogar ao lado de Keane e controlar melhor o meio de campo.
A movimentação constante de Inzaghi no ataque foi um problema constante ao United no jogo. Aos 24 minutos, Ferrara lançou a bola da zaga, e Pippo recebeu sozinho, na cara do gol. O domínio não foi do jeito que ele queria, e Johnsen aproveitou para afastar.
O United já havia equilibrado as ações àquela altura, e aos 26 minutos chegou muito perto do terceiro gol. Depois de toda a equipe girar bem a bola, Scholes tocou para Irwin, e o lateral viu espaço para subir ao ataque. Sem ser parado, levou até a entrada da área e chutou de direita. A bola acertou a trave esquerda de Peruzzi e sobrou novamente para Irwin, mas a finalização foi na rede pelo lado de fora.
Aos 32 minutos da segunda etapa, o segundo desfalque se desenhava ao United. Scholes, que entrara menos de dez minutos antes, deu um carrinho forte e desnecessário em Deschamps, levou amarelo e, em caso de classificação, seria mais um importante nome indisponível à Alex Ferguson na decisão em Barcelona.
Insatisfeito com seu jogo ofensivo, Ancelotti tirou Di Livio aos 35 minutos da etapa complementar, colocando o atacante Daniel Fonseca. Em um de seus primeiros lances, o uruguaio já criou perigo. Recebeu uma linda bola de Zidane e tocou rasteiro para o meio da pequena área, onde Inzaghi quase alcançou.
A entrada de Scholes, aliada à grande partida de Keane, conferiu ao United controle suficiente do meio de campo para trocar passes com paciência, controlando o ritmo do jogo sem pressa para definir as jogadas. No entanto, tinha em sua equipe jogadores capazes de a qualquer momento criar perigo. Como Beckham, aos 39 minutos: com um lançamento primoroso, de esquerda, deixou Neville sozinho na ponta direita, perto da área. O lateral então acertou lindo passe de primeira para Yorke, que tocou para Cole. O camisa 9 foi para a finalização, mas pegou mal na bola.
Na sequência, Davids tentou lançamento para o ataque, mas a bola ficou nas mãos de Schmeichel. O dinamarquês deu um chutão pra frente, Paolo Montero se atrapalhou todo, deixou a bola bater em sua coxa, e Yorke ficou com a sobra. Então, veio a mágica do atacante: drible desconcertante entre Montero e Ferrara, deixando os dois no chão; drible em Peruzzi, sendo derrubado. Suficiente para um pênalti, mas Cole, atento, chegou para pegar a sobra e fazer o último gol da noite: era a virada do United, 3 a 2.
Derrotada mentalmente e precisando de dois gols para ir à sua quarta final seguida de Champions League, a Juventus pouco pode fazer. O United, enfim, depois de 31 anos, estava de volta à final da principal competição continental do mundo.
Quem comeu a bola
Roy Keane é muito lembrado pela raça com que jogava e pela relativa violência com que entrava em algumas jogadas. Até mesmo por sempre dar a cara a bater durante uma confusão, como na troca de ataques verbais com Patrick Vieira em duelo no Highbury. Entretanto, naquela noite de Champions League em Turim, viveu uma de suas melhores atuações, mas com outra faceta de seu jogo: sua capacidade técnica com a bola.
Seus passes davam ritmo ao jogo do United. Mesmo com o 2 a 0 a favor da Juve no placar, o irlandês manteve sua equipe no duelo ao controlar a velocidade do confronto. Seu gol de cabeça, plástico, é seu lance mais icônico daquela noite, o momento de refinamento técnico que recolocou os Red Devils na contenda. Mas tudo o que fez ao longo de toda a partida valeu ainda mais que o tento.
Atuação subestimada
Naturalmente, como parte da equipe eliminada, Inzaghi não ganhou tanto as manchetes, mas sua atuação, por si só, vale grande destaque. Pippo infernizou a defesa do Manchester United com a maneira como atacava os espaços. Mesmo visivelmente menos corpulento que Stam, dificultou a vida do zagueiro em basicamente todas as vezes em que dominou a bola de costas para o oponente. Desperdiçou, sim, algumas oportunidades, mas muito por mérito do goleiro Schmeichel. Para quem apenas assistiu ao crepúsculo da carreira do camisa 9, como é o caso do redator que vos fala, foi uma experiência completamente reveladora ver o que o atacante era capaz de fazer ao longo de toda uma partida por volta de seus 25 anos de idade.
Quem pisou na bola
Os momentos que antecediam o terceiro gol do United já tinham no placar um resultado que classificava o Manchester United, mas o erro de Paolo Montero ao tentar afastar a bola no chutão de Schmeichel, terminando por presentear Yorke, foi a grande falha técnica da partida, que fica maior diante do status de Montero à época.
Momento decisivo
O gol de Keane não só recolocou o Manchester United na disputa como também transmitiu ao time a percepção de que a classificação era apenas questão de tempo. Por meio da própria contribuição do irlandês quando a equipe tinha a bola, os Red Devils atuavam sem afobação, ainda comprometidos com seu plano de jogo. O tento do meia foi, por fim, a validação de que tudo ainda estava sob controle ou ao menos ao alcance.
Os melhores cinco minutos
De Schmeichel a Yorke, passando por Johnsen, Beckham, Keane e companhia, o United teve uma grande atuação coletiva, e isso se condensa nos poucos minutos entre o cartão amarelo para Keane, aos 32 do primeiro tempo, e a boa defesa de Schmeichel aos 39. Entre isso, tivemos exemplos dos elementos que definiram o confronto: o gol de Yorke que empatou a partida, a contribuição defensiva e depois criativa de Beckham, mais uma bola longa bem-sucedida de Neville, e, por fim, a movimentação perigosa e a finalização de Pippo Inzaghi, parado, por fim, por Schmeichel.
Pérolas da narração
Instantes após o segundo gol de Inzaghi na partida, Clive Tyldesley cravou: “O Manchester United precisa de um pequeno milagre agora. Imediatamente, eles perdem de 2 a 0 aqui”. Em retrospecto, uma narração para ilustrar com perfeição a história que se escrevia. O cacoete premonitório do ícone da TV inglesa deu as caras novamente nos segundos antes do primeiro tento do United na partida. “E, como você diz, o próximo gol é sempre o maior gol da temporada… Beckham no escanteio, para KEEEEANE!”
Prancheta
Carlo Ancelotti foi presenteado com dois gols cedo no jogo e pecou no cuidado. Recuou toda a equipe, dando campo para o United. Deixou Zidane e Inzaghi isolados na frente, matando a criatividade de Davids e do próprio francês durante todo o primeiro tempo. O United, por sua vez, não perdeu tempo em explorar essas circunstâncias: se plantou no campo de defesa italiano, com apenas Johnsen e um dos laterais permanecendo no próprio campo inglês nos momentos ofensivos. Mesmo Jaap Stam funcionava como um meio-campista para fazer o time girar a bola.
Vestiários
Andy Cole, em descrição que ficou famosa para falar daquela noite, elogiou a atuação de Keane:
“O Roy foi enorme. É como se ele tivesse dito para si mesmo: ‘Não vou para a final, mas vou garantir que meus companheiros estejam lá’.”
Alex Ferguson lamentou os desfalques para a final contra o Bayern de Munique:
“É uma noite fantástica para nós. Mas o que aconteceu com Keane e Scholes é uma tragédia. Tudo que posso dizer é que os únicos jogadores com lugar garantido (na final da Copa da Inglaterra) são Scholes e Keane.”
Roy Keane, perguntado se havia chorado por causa da suspensão – notavelmente, Paul Gascoigne chorara no mesmo Delle Alpi na semifinal da Copa de 1990, também por um cartão que o tiraria de uma possível final, que não se concretizou à Inglaterra:
“Estou chateado, mas não vou ponderar sobre isso. O mais importante é que vamos para a final. O Manchester United é maior do que qualquer indivíduo.”
Ancelotti admitiu que os dois gols no início do jogo deram a falsa segurança à sua equipe de que o confronto estava definido:
“Curiosamente, talvez a nossa vantagem de dois gols tenham favorecido eles. Nossos dois gols cedo nos deram a impressão de que seria fácil, e puxamos o freio de mão e não jogamos agressivamente o bastante. Depois do 2-1, eles começaram a nos dar dificuldades. Demos muito espaço a eles. Quando tivemos a posse, jogamos bem, mas a única vez em que fomos verdadeiramente perigosos foi nos contra-ataques. A bola longa nunca funcionaria com os dois grandes zagueiros deles na beira da área. Deu para ver por aqueles últimos 20 minutos que o United é um time muito forte.”
Nos livros de história
A inesperável vitória representou ao Manchester United a primeira classificação para a final da Liga dos Campeões em 31 anos. Quebrou a hegemonia italiana para alcançar um feito que, no clube, apenas o lendário técnico Matt Busby havia conseguido, no longínquo 1968. Por fim, abriu caminho para que, no Camp Nou, Alex Ferguson desse o último passo em sua trajetória de adorado pela torcida a lenda da história dos Red Devils.
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