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O adeus de Gordon Banks e os segundos que lhe garantem a eternidade

Há segundos mágicos no futebol, que, feito mandado do destino, parecem capturar toda a qualidade de um grande jogador e providenciar ao futuro um resumo imutável de sua excelência. Alguns joões de pouca classe até podem se beneficiar desses descaminhos da providência. Porém, às lendas do esporte, estas são as capas dos livros que introduzem suas carreiras a uma nova legião de fãs maravilhados. É o gol de Pelé contra a Suécia, o carnaval de Maradona diante da Inglaterra, o voleio do Zidane na final da Champions, o giro de Cruyff em plena Copa do Mundo. A naturalidade na execução é tamanha que, logo ao vermos estes lances, passam a impressão de que são corriqueiros na história desses caras. E são. A um goleiro, a benção não poderia ser maior do que a recebida por Gordon Banks. Afinal, se os olhos demoram a entender completamente aquele movimento de espetáculo no Bolshoi ocorrendo dentro de campo, o contexto aumenta o encantamento. Na Copa de 1970, diante de Pelé, num jogo que marcava a passagem de bastão entre os campeões do mundo. Qualquer defesa que se pretende a maior da história precisa passar pelo crivo do inglês, um selo inesquecível de suas virtudes que prevalece quase 50 anos depois. E que a terça-feira tenha guardado a triste notícia de que o mítico arqueiro faleceu, aos 81 anos, ele permanecerá voando por mais alguns séculos. O salto rasante sobre o Jalisco é a certeza de que Banks continuará vivo na memória por uma eternidade.

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“Foi a melhor defesa que realizei. Não tinha ideia da maneira como se tornaria famosa – e, para começar, eu sequer tinha noção completa do que eu a havia feito. Ouvi Pelé gritar gol assim que cabeceou e isso se seguiu por um massivo, quase ensurdecedor, barulho. Mesmo que minha mão tivesse tocado a bola, eu pensava que ele marcara o tento. Então percebi que a multidão estava gritando por mim. Eu não pude acreditar. Bobby Moore se aproximou e bagunçou meu cabelo – eu gosto de brincar com as pessoas que ele estava bravo comigo, por não conseguir agarrar a bola. Afinal, o placar ainda estava zerado e tínhamos que nos defender de um escanteio. Quando me levantei, tentei parecer o mais indiferente possível, como se dissesse que faço esse tipo de defesa o tempo todo. Mas não passa um dia em que não me perguntam sobre isso”, declarou em 2003, durante entrevista ao jornal The Guardian.

Aquela defesa monumental, especificamente, pode ser única a Banks. Ainda assim, poucos goleiros possuíam uma capacidade tão impressionante de colecionar milagres. O senso de posicionamento era o grande trunfo, mas a quantidade de defesaças também era possível por sua agilidade extrema e pela preparação intensa. Em tempos em que não existiam treinadores específicos para goleiros, ele retornava ao campo e fazia sessões extras para aprimorar suas qualidades. O empenho deu resultado. O garoto que despontou no Chesterfield logo faria parte de outro Leicester surpreendente, os chamados ‘Reis do Gelo', que brigaram seriamente pelo título em uma temporada de inverno rigorosíssimo no Campeonato Inglês. Seria a confirmação do arqueiro como um dos melhores do país. Manteve o seu nível altíssimo e, mesmo com os dirigentes em Filbert Street optando por um talentoso adolescente chamado Peter Shilton, o veterano ainda foi campeão no Stoke City. Uma carreira em clubes que, se carece de clubes maiores ou de títulos mais expressivos, não deixa de ser bastante respeitada por seus compatriotas.

De qualquer maneira, o sucesso na seleção inglesa é indissociável ao status de Gordon Banks como lenda. A Copa do Mundo, sobretudo. O rapaz que estreou pelos Three Lions em pleno Wembley, durante um clássico amistoso contra a Escócia, logo provou que era o nome certo para se tornar titular no Mundial de 1966. Passou quatro dos seis jogos que disputou sem tomar gols, realizou intervenções fundamentais e terminou eleito como o melhor da posição no torneio – mais importante, com a taça nas mãos. A saída do Leicester logo após o título não abalou seu moral e ele seguiria firme na meta da Inglaterra rumo ao México. Que não tenha sido campeão novamente, foi quando o destino lhe entregou os tais segundos mágicos. O sol escaldante de Guadalajara fazia tudo aquilo parecer uma miragem ou um devaneio. O replay insistente nega que aquela bola fulminante siga o caminho natural que o nosso cérebro manda, ao fundo das redes. De repente, sempre aparecem as mãos de Banks para salvá-la e (de uma forma tão impressionante quanto o movimento do corpo em si) despachá-la por cima do travessão.

“Carlos Alberto fez um passe incrível com a parte de fora do pé, lançando Jairzinho. Ele dominou e conseguiu passar por nosso lateral. Eu estava posicionado no primeiro pau, a um metro da linha, antecipando o cruzamento. Bobby Moore se movimentou para fazer a cobertura, o que deixou Tostão desmarcado e Rivellino no segundo pau. Jairzinho ignorou ambos, imagine isso, e escolheu Pelé, que vinha correndo rumo à área. Foi uma visão e tanto. Quando ele subiu para cabecear, comecei a me mover sobre a linha. Foi aí que meu treinamento valeu a pena. Trabalhei duro antes da Copa. O calor e a umidade do México significavam que a bola era mais rápida e os gramados, extremamente duros, então qualquer bola quicando em sua frente era difícil. Eu sabia que aquela cabeçada ia saltar bem alto, então eu não apenas pulei em direção ao solo, mas também um pouco para trás, para dar conta do movimento completo. Consegui tocar a bola com a ponta dos dedos e ela subiu, por cima do travessão”, relembrou Banks, ao mesmo Guardian.

Banks disputou nove partidas em Copas do Mundo. Aquele jogo contra o Brasil, o de sua marca registrada, também foi o único em que saiu derrotado. Nas quartas de final de 1970, a Inglaterra se reencontrou com a Alemanha Ocidental. O arqueiro não jogou. Durante sua folga, havia saído com os companheiros para tomar uma cerveja e começou a sentir um desconforto estomacal. Nas horas seguintes, os sintomas se ampliariam para enjoos, calafrios, diarreia e vômitos. Até melhorou no domingo, dia do embate, e apareceu inicialmente como titular. Mas voltou a se sentir muito mal durante a preleção, deixando o estádio. Viu a revanche contra o Nationalelf em VT, através da televisão do hotel onde os Three Lions estavam concentrados. Quando os companheiros chegaram, o placar na tela ainda marcava 2 a 0 e não acreditou quando soube da virada por 3 a 2. A atuação pouco confiante de Peter Bonetti, seu substituto, dava a impressão de que o resultado poderia ser outro com o camisa 1 na meta.

E a história de Banks na seleção só não é mais ampla porque em outubro de 1972, aos 34 anos, sua carreira acabou interrompida por um acidente de carro. A forma do veterano ainda era ótima, campeão da Copa da Liga com o Stoke City meses antes e também eleito o melhor jogador do país (independentemente da posição) pela associação de cronistas esportivos, a FWA. Contudo, a fatalidade custou a visão de seu olho direito, levando o arqueiro a encerrar sua trajetória em alto nível. A partir de então, viraria aplausos e boas lembranças. Principalmente daqueles segundos irrepreensíveis no México. “Serei sempre lembrado por essa defesa, mesmo tendo vencido a Copa de 1966. Não me importo, gosto de falar sobre isso, porque o time do Brasil é o melhor de todos os tempos. Eu já me encontrei com o Pelé várias vezes desde esse dia e ele sempre menciona a defesa, me dá um abraço cheio de afeto e um sorriso”, salientou. Uma amizade que começou logo após o impossível, com um tapinha nas costas do Rei. “Achei que tinha entrado”, disse o atacante. “Eu também”, ouviu do milagreiro, com um sorriso estampado no rosto.

Em 2015, Gordon Banks revelou sua luta contra um câncer no rim. E o que aconteceu no Jalisco ainda seria inspiração a mais este obstáculo. “Eu sou mais um no país que enfrenta essa situação. Eu tenho que batalhar e seguir em frente”, afirmou, em entrevista ao jornal Sunday Mirror. “Ter vencido a Copa de 1966 e feito a defesa contra Pelé me deu confiança para lutar contra a doença. As pessoas continuam falando sobre a defesa e eu às vezes penso sobre isso. Se eu pude fazer isso contra Pelé, o melhor do mundo, então eu serei capaz de batalhar contra este problema de saúde. Isso me ajuda. Espero que possa inspirar outras pessoas na mesma situação que eu”. Depois de três anos, o veterano não resistiu. Faleceu nesta terça, aos 81 anos. Em algum lugar, poderá sorrir novamente quando Bobby Moore lhe perguntar por que não agarrou aquela bola. A maioria dos humanos, entretanto, continuará se esforçando para entender como ele a pegou.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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