Inglaterra

Abuso sexual, drogas, vida na África: Dele Alli revela traumas de infância

Dele Alli fala pela primeira vez sobre traumas da sua vida na infância, com um relato pesado, triste e que mostra a importância de falar e tratar de saúde mental

Alerta de gatilho: este texto trata sobre abuso sexual e vício em drogas

Um dos grandes talentos da sua geração, Dele Alli tem apenas 27 anos, mas parece já um veterano. Está há muito tempo no futebol e já viveu altos e baixos. O seu brilho pelo Tottenham o tornou jogador de seleção inglesa e de Copa do Mundo. Só que tudo isso passou. A sua queda de rendimento nunca foi muito fácil de entender. Até agora. Em entrevista reveladora, o jogador contou seus traumas de infância envolvendo abuso sexual, tráfico de drogas, vida na África, vício em remédios e uma saúde mental muito abalada.

Nascido em Milton Keynes, Dele Alli é filho de pai nigeriano e mãe inglesa, começou a carreira no MK Dons, em 2013. Foi lá que se profissionalizou e, em 2015, foi contratado pelo Tottenham por £5 milhões (£6,5 milhões, em valores corrigidos). Se tornou um jogador de destaque e chegou à seleção inglesa, pela qual fez 37 jogos. Parecia um talento geracional.

Talento de Copa do Mundo que perdeu o brilho

Dele Alli no Tottenham (Icon Sport)

Meio-campista com ótimo passe e com a visão de jogo como sua grande característica, virou um jogador de destaque da Premier League e parecia pronto para ser destaque por muitos anos, pela sua pouca idade. Só que o rendimento caiu. Apagado nos jogos, foi pouco a pouco perdendo seu espaço.

Sua última convocação para a seleção inglesa foi em 2019. E pouco a pouco, sequer sentiam falta dele. No documentário “All or Nothing”, do Prime Video, o técnico José Mourinho é mostrado falando com Dele Alli dizendo que ele tem talento, mas falta disposição.

Sua ida para o Everton aconteceu no último dia da janela de transferências de janeiro de 2022, o mercado de inverno europeu. O jogador saiu sem custos de transferência, foi a custo zero. Foram apenas 13 jogos com a camisa dos Toffees, sem impressionar. Parecia que Dele Alli não estava mais no seu melhor.

Sem conseguir jogar bem, foi emprestado pelo Everton ao Besiktas na última temporada, 2022/23. O número de jogos novamente não foi grande. Foram 17 jogos, três gols e um desempenho que não impressionou. Era difícil entender o que tinha acontecido e a suspeita de algum problema na saúde mental do jogador — algo que, enfim, sabemos melhor com as revelações feitas pelo jogador.

Os times pelos quais passou Dele Alli

  • MK Dons
  • Tottenham
  • Everton
  • Besiktas

Os traumas de infância de Dele Alli

Em entrevista dada ao podcast The Overlap, Dele Alli contou ao apresentador Gary Neville, ex-jogador, sobre as suas batalhas internas de saúde mental e física, inclusive com o vício em remédios para dormir, uma droga que é dada pelos clubes de futebol habitualmente aos jogadores. Mais do que isso: ele revelou traumas de infância envolvendo abuso sexual, tráfico de drogas e seu envio para a África, terra do seu pai, para morar com ele “para aprender disciplina”.

“Há alguns pequenos incidentes que podem te dar um pequeno entendimento. Aos seis anos, fui molestado pelo amigo da minha mãe que ia muito em casa. Minha mãe era uma alcóolatra. Fui enviado para a África para aprender disciplina. Então, fui enviado de volta”, contou.

“Aos sete anos, comecei a fumar. Aos oito, comecei a traficar drogas, vender drogas. Uma pessoa mais velha me disse que eles não iriam parar uma criança, então eu ficava andando com a minha bola e por baixo das roupas eu tinha drogas”.

“Aos 11, fui pendurado em uma ponte por um cara de outro estado. Aos 12, fui adotado. E dali em diante, fui adotado por uma família incrível, eu não poderia ter pedido por pessoas melhores para fazer o que eles fizeram por mim. Se Deus criou as pessoas, foram eles. Eles são incríveis e me ajudaram muito”.

A decisão de se internar em uma clínica para se tratar

Dele Alli contou que fez um tratamento por vício. Ele ficou internado durante o verão. “Eu fiquei viciado em remédio para dormir e é um problema que provavelmente não só eu tenho. Eu acho que é algo que está acontecendo mais do que as pessoas pensam no futebol”, revelou o jogador.

“Agora provavelmente é o momento certo para falar às pessoas. É difícil falar sobre isso já que é muito recente e algo que eu escondi por um logo tampo e que tinha medo de falar a respeito. Quando voltei da Turquia, voltei e descobri que precisava de uma operação”, continuou o jogador.

“Estava em um lugar ruim mentalmente. Decidi ir para uma clínica de recuperação moderna que lida com vício, saúde mental e trauma. Senti que era o momento para mim. Não podem dizer que você tem que ir para lá, você tem que tomar essa decisão por si mesmo”, declarou.

“Estava em um ciclo ruim. Estava confiando em coisas que estavam me causando mal. Estava acordando todos os dias, vencendo a luta e indo para os treinos todos os dias sorrindo, queremos mostrar que eu estava feliz. Internamente, estava perdendo a batalha e era tempo de mudar. Quando me disseram que eu precisava de cirurgia, podia sentir os mesmos sentimentos que tinha quando o ciclo começou”.

“O Everton foi incrível e me apoiou. Eu serei grato a eles para sempre. Para eles serem tão honestos e compreensivos, eu não poderia pedir mais nada no momento que eu estava tomando a maior decisão da minha vida, fazendo algo que eu tinha medo de fazer. Estou feliz que fiz isso”.

O vício em remédios para dormir

Dele Alli, do Besiktas (Icon Sport)

“Antes, quando eu parava, às vezes sentia aquela urgência de tomar, mas me mantinha sóbrio por um período e então sempre tinha um momento que algo acontecia, que sentia aqueles sentimentos voltarem e queria escapar. Eu estava tomando muitos. Não quero falar de números, mas definitivamente muitos”.

“E houve alguns momentos assustadores. Os times te dão por uma razão, para dormir. Não estava tomando para dormir, tomava durante o dia, às vezes às 11 da manhã se eu estava de folga. Nunca tomava quando ia jogar, mas eu começava cedo quando tinha o dia de folga, apenas para escapar da realidade”.

“Começou com um médico me receitando e depois se tornou isso. Quando você quer alguma coisa, você encontra um caminho. No começo, era uma para dormir e, para a maioria das pessoas, tudo bem. Você pode lidar com isso, é isso que você precisa. Mas, para mim, estava consertando algo que eu não sabia que podia consertar”.

Com saúde mental afetada, pensou em se aposentar

“Não me entendam errado, amo o futebol. Salvou a minha vida. Devo tudo ao futebol. Mas não é tão fácil quando as pessoas pensam que é. Sim, você tem dinheiro e você pode fazer muitas coisas que você não poderia fazer sem ele, mas mentalmente, até que você esteja vivendo isso, não acho que as pessoas irão nunca entender o que pode fazer com você”.

“Provavelmente o momento mais triste para mim foi quando José Mourinho era o técnico (no Tottenham). Eu tinha 24 anos. Lembro que teve um treino, quando ele parou de me colocar para jogar, eu estava em um lugar ruim mentalmente e lembro de olhar no espelho. Soa dramático, mas eu estava literalmente me olhando no espelho e me perguntando se poderia me aposentar agora, com 24 anos, fazendo o que eu amo. Para mim, era de partir o coração ter esse pensamento. Isso me doía e foi outra coisa que tive que carregar”.

O apoio do Everton

O Everton tem dado todo apoio a Dele Alli, o que tem facilitado o processo de tratamento. O clube divulgou um comunicado sobre o assunto e pediu que a privacidade do jogador seja respeitada. “O clube tem apoiado Dele tanto no retorno à forma como em superar os desafios pessoais ressaltados na entrevista”, diz comunicado do clube.

“Todo mundo no Everton respeita e aplaude a coragem de Dele em falar sobre as dificuldades que ele enfrentou, assim como em procurar a ajuda necessária. O bem-estar físico e mental de todos os nossos jogadores é de suma importância. O clube leva muito a sério a sua responsabilidade em proteger a confidencialidade dos jogadores e funcionários”.

“Dele não irá dar nenhuma outra entrevista sobre a sua reabilitação e pedimos que a sua privacidade seja respeitada enquanto ele continua a sua recuperação sobre a lesão e recebe todo o cuidado e apoio que ele precisa para o seu bem-estar físico e mental”.

Associação de Jogadores elogia Dele Alli

A Associação de Jogadores Profissionais (PFA) divulgou comunicado para apoiar e elogiar o comportamento do jogador. “É incrivelmente corajoso que Dele conte a sua história com tanta honestidade nesta importante entrevista a Gary Neville”.

“Ouvir Dele falar tão abertamente irá fazer a diferença e seu desejo de usar suas próprias experiências para agir como inspiração dos outros, dentro e fora do futebol, e é algo que ele deve ficar extremamente orgulhoso”.

Se você se sente afetado pelo texto, ligue 188 de qualquer lugar do Brasil para o Centro de Valorização da Vida para procurar apoio emocional.

Foto de Felipe Lobo

Felipe Lobo

Formado em Comunicação e Multimeios na PUC-SP e Jornalismo pela USP, encontrou no jornalismo a melhor forma de unir duas paixões: futebol e escrever. Acha que é um grande técnico no Football Manager e se apaixonou por futebol italiano (Forza Inter!). Saiu da posição de leitor para trabalhar na Trivela em 2009, onde ficou até 2023.
Botão Voltar ao topo