A classificação foi tirada de suas mãos, mas ainda assim Schmeichel deixa a Euro 2020 como um super-herói
Kasper Schmeichel teve uma das melhores atuações de um goleiro nesta Euro, mas precisou lidar com o amargor da eliminação e da injustiça

O pai fechou o gol na Euro 1992. O filho, igualmente, parecia intransponível na Euro 2020. E se a história não se repete para a Dinamarca, a diferença não está entre Peter e Kasper Schmeichel, porque o herdeiro do talento de um dos maiores goleiros da história teve uma atuação lendária nesta semifinal em Wembley. Apenas um gol contra e o rebote de um pênalti pra lá de forçado venceram o camisa 1 dinamarquês. Uma pena, porque o arqueiro merecia melhor sorte por tudo o que vinha fazendo e pela própria história de superação de sua seleção. Por vezes, o futebol não é tão justo, especialmente quando acaba submetido a decisões tão questionáveis. Mas é justíssimo reconhecer a enorme exibição individual de Schmeichel na derrota contra a Inglaterra e aplaudi-lo na despedida do torneio.
Peter Schmeichel tinha 29 anos quando disputou a Euro 1992. Vivia sua segunda edição do torneio e tinha se transferido para o Manchester United na temporada anterior. Se a Dinamarca conquistou aquele troféu inacreditável, a responsabilidade do goleiro é enorme. Operaria uma coleção de defesas fantásticas já na fase de grupos, em especial contra França e Inglaterra. Quando falhou na semifinal contra a Holanda, se redimiu pegando um pênalti do melhor do mundo, Marco van Basten. E só não faria chover diante da Alemanha na final, com direito a uma defesa estupenda em cabeçada de Jürgen Klinsmann. Kasper ainda não tinha completado seis anos na época. Talvez não se lembre dos detalhes dos jogos, mas certamente festejou com o pai super-herói.
A história de Kasper Schmeichel na seleção dinamarquesa começou também numa Eurocopa, em 2012. O menino cresceu convivendo num Manchester United multicampeão, mas iniciou sua carreira no Manchester City. Renegado pelos celestes apesar do claro talento, construiu sua trajetória nas divisões de acesso na Inglaterra. Jogaria até na quarta divisão, antes de chegar no Leicester para fazer história a partir de 2011/12, ainda na Championship. O bom momento no clube foi exatamente o que abriu os olhos de Morten Olsen para a convocação. Porém, ainda seria reserva naquela Euro e veria do banco a eliminação dos dinamarqueses ainda na fase de grupos.
Os últimos nove anos foram transformadores a Kasper Schmeichel. Não assinou com uma potência do futebol inglês – por mais que alguns clubes tenham batido em sua porta. Preferiu trilhar seu próprio caminho e sua história, com outras nuances, é tão encantadora quanto a do pai. Seu Leicester conquistou o acesso, evitou um rebaixamento milagroso, faturou a Premier League mais improvável da história. O camisa 1 sempre esteve lá, liderando os times nos principais momentos e impulsionando os resultados. Fez uma campanha absurda na Champions 2016/17 e, nesta temporada, levou as Raposas ao inédito título da FA Cup. As traves de Wembley já conheciam o paredão, pela maneira como brilhou diante do Chelsea. Chegou à Euro 2020 em ótima forma.
O crescimento com o Leicester se refletiu na seleção. A partir de 2014, o ano do acesso, Kasper Schmeichel se tornou titular absoluto na meta da Dinamarca. Seu 2015/16 não seria perfeito por conta da eliminação para a Suécia na repescagem da Eurocopa. Em compensação, sua Copa de 2018 foi até melhor que a Copa de 1998 feita pelo seu pai. Parou uma fase antes, nas oitavas de final, mas deixou o Mundial como o melhor goleiro da competição até então. Durante a fase de grupos, fez defesas cruciais para a classificação diante da Austrália e principalmente do Peru. Já na eliminação para a Croácia, os dinamarqueses ganharam sobrevida porque o camisa 1 pegou um penal de Luka Modric na prorrogação sem nem dar rebote. Pegaria dois na disputa de pênaltis depois, mas Danijel Subasic conseguiu defender três e levar os croatas mais longe.
Schmeichel se tornou muito maior nestes últimos três anos. Não apenas pela experiência adquirida em campo, mas também pela vivência pessoal. Após a trágica morte do dono do Leicester, seu grande amigo, assumiu uma liderança maior dentro do clube e passou a usar a braçadeira de capitão. Já na seleção, seu nome se tornava ainda mais respeitável para projetar a boa campanha que a Dinamarca poderia fazer na Euro 2020. As comparações entre Kasper e Peter, ainda que naturais, cada vez não tinha mais razão de ser. Impossível não admirar a grandeza do filho sem se lembrar da lenda construída pelo pai, e vice-versa.
O primeiro Schmeichel a aparecer na Euro 2020 seria exatamente o líder. Ao lado de Simon Kjaer, o goleiro segurou a barra durante o colapso sofrido por Christian Eriksen na estreia. Organizou a roda dos companheiros, acompanhou o resgate com uma firmeza impressionante, conversou com a esposa do meia enquanto o desespero parecia inescapável. A experiência do goleiro foi mais que necessária, depois puxando a conversa com os demais jogadores quando acabaram obrigados a entrar em campo. Se poderia fazer melhor no gol da Finlândia, num momento em que a cabeça certamente pensava em muita coisa além do futebol, o erro técnico no gesto não diminuía em nada a assertividade em cada ato durante a pausa forçada.
A Dinamarca cresceu na Eurocopa, diante das boas notícias ao redor de Eriksen. Schmeichel também cresceu. Não evitou a derrota para a Bélgica, mas seria importante contra a Rússia. Durante o primeiro tempo, uma ótima intervenção com os pés impediu o tento de Aleksandr Golovin, antes que os dinamarqueses abrissem a goleada. E se nas oitavas contra Gales o arqueiro foi um mero espectador, teria que trabalhar mais nas quartas diante da República Tcheca. As melhores defesas de Schmeichel aconteceram no início do segundo tempo, pouco antes que os tchecos descontassem. Pegou uma bola belíssima no cantinho, de Antonín Barak. No entanto, precisaria também manter a segurança pelo alto e orientar sua defesa diante da pressão dos adversários. Seria igualmente importante na classificação às semifinais, a primeira dos escandinavos desde 1992.
O bom início da Dinamarca no jogo contra a Inglaterra manteria Schmeichel fora de ação. Foi apenas depois do gol de Mikkel Damsgaard que os Three Lions resolveram responder e o goleiro entrou na partida. Seria brilhante logo em sua primeira ação, ao se agigantar diante de Raheem Sterling e bloquear um chute à queima-roupa dentro da área. Porém, logo depois precisaria buscar a bola no fundo das redes, num bom lance dos ingleses que contaram também com a infelicidade de Kjaer ao tentar fazer o corte. O segundo tempo seria ainda mais duro ao camisa 1.
A Inglaterra martelou, a Dinamarca cansou e o duelo se travou nos arredores da área de Schmeichel. Uma hora ou outra ele precisaria intervir e realizou uma das defesas mais espetaculares desta Eurocopa aos nove minutos, talvez a mais difícil de todo o torneio. A cabeçada de Harry Maguire saiu com endereço e o goleiro se esticou todo para desviar com a ponta dos dedos. Milagre, que mantinha os dinamarqueses vivos no confronto. Ainda se desdobraria para desviar com um cruzamento fechado de Mason Mount, que quase entrou. Suas saídas de gol seguiam necessárias.
Na prorrogação, contra uma Inglaterra mais inteira, o gol parecia questão de tempo. Não foi por causa de Schmeichel. Buscou uma batida rasteira de Harry Kane e depois rebateu uma pancada de Jack Grealish da entrada da área. Até que o pênalti visto apenas pela equipe de arbitragem colocasse o camisa 1 diante de Kane na marca da cal. Como em 2018, numa prorrogação, o dinamarquês enfrentaria o craque adversário nos 11 metros. Como em 2018, pegou a cobrança. O diferente é que quase agarrou. Deixar a pelota escapar não foi falha, longe disso, mas o rebote se tornou fatal.
Depois disso, a partida praticamente morreria. A Inglaterra se contentou em se fechar e gastar o tempo. A Dinamarca não teria mais pernas para exercer uma grande pressão. Schmeichel já tinha virado um líbero na intermediária para cortar os lançamentos. Ainda faria sua última grande defesa no finzinho, bloqueando Sterling num chute sem muito ângulo. Mas não pode nem tentar o gol desesperado dentro da área, como fez contra a Bélgica. Os dinamarqueses não teriam a oportunidade de uma bola vadia.
A frustração de Schmeichel em 2021 é o sentimento de 2018 potencializado. Cumpriu sua parte e a classificação escapou de suas mãos. Daquela vez, porém, não houve a sensação de injustiça misturada. E também não teve o gosto de chegar tão perto de disputar ao menos uma final. Schmeichel, em compensação, sai como herói tal qual seu pai em 1992. Se não provou na pele aquele êxtase que presenciou quando tinha seis anos, pelo menos sabe o que a aura do ídolo representa a seus compatriotas. Kasper Schmeichel deixa a Eurocopa ainda mais adorado pelos dinamarqueses, e como um dos principais responsáveis por essa história tão bonita, também por seus contornos fora de campo. É um goleiro com peso histórico à sua seleção, um orgulho que ninguém tira da família, embora pudesse ter sido maior por questões que fugiram de sua alçada.