Espanha

‘Nos enche de orgulho’: Como Ronaldo transformou a vida do Valladolid

Trivela vê de perto como a gestão de Ronaldo mudou a estrutura do Valladolid – mas ainda não deu resultado em campo

O vento gelado era tão cortante, que nem mesmo o sol ou as muitas camadas de roupa o impediam de congelar até os ossos de quem chegava ao Estádio José Zorrilla em uma terça-feira de outono na Espanha. Mas isso pouco importava para as dezenas de crianças que se amontoavam diante de um dos campos de treinamento, sob os olhares zelosos de seus pais. Era dia de treino aberto durante um período de recesso escolar – chance de ouro para ver de perto os ídolos que eles costumam assistir à distância nas arquibancadas ou pela TV aquecia os corações dos pequenos.

Aos jogadores, coube fazer o mínimo e retribuir. Um a um, eles paravam diante dos muitos gritos por seus nome e atendiam a todos os pedidos de autógrafos e selfies antes de correr para se abrigar do frio no vestiário. Uma relação assim tão estreita entre equipe e torcida só é possível em um clube que pertence aos seus. Um clube que não deixou de ser propriedade dos torcedores, mesmo depois de ser comprado por um dos maiores jogadores de futebol da história.

O Real Valladolid existe sob essa “dupla identidade” desde setembro de 2018, quando Ronaldo decidiu pagar 30 milhões de euros (R$ 141 milhões à época) para adquirir 51% das ações e se tornar sócio majoritário da equipe que leva o nome da cidade. De lá para cá, o clube passou por uma revolução que transformou a sua gestão de um “negócio de família” em uma verdadeira estrutura de organização profissional e com pensamento global.

– Antes da chegada do Ronaldo, tínhamos uma estrutura muito pequena. Éramos um clube muito familiar. Com a chegada do Ronaldo, uma das primeiras coisas que foram feitas foi modificar essa estrutura para ter uma estrutura muito mais profissionalizada e adaptada aos tempos modernos para o futebol europeu – explica em entrevista à Trivela Jorge Santiago, diretor responsável pela área corporativa do Valladolid.

Ronaldo transforma o Valladolid em grande empresa

O quadro de funcionários deu um salto com 60 novos postos de trabalho em diferentes áreas distribuídas em um moderno escritório ali mesmo no Estádio José Zorrilla. O número de seguidores nas redes sociais também se multiplicou exponencialmente. Foi como se Ronaldo colocasse o Valladolid no mapa.

“Ter um presidente de clube como Ronaldo tem um impacto muito grande na imagem e a uma repercussão internacional que o Real Valladolid nunca teria chegado sozinho. Cada vez que ele faz um viagem a qualquer lugar, agora ele sempre é o presidente do Real Valladolid e vai com a imagem do clube. Para nós, isso nos enche de orgulho. É algo muito positivo”. (Jorge Santiago, diretor do Valladolid).

Mas este clube que conseguiu romper as barreiras do território espanhol para ser conhecido ao redor do mundo – especialmente no Brasil – se mantém um clube local. E até reforçou a sua relação com os seus. Sejam torcedores, ou funcionários. O quadro social saltou de 10 mil para 22 mil associados desde a chegada de Ronaldo. Durante a pandemia, o presidente fez um esforço para manter todos os postos de trabalho, com pagamento em dia e sem reduções. A Trivela ouviu durante uma visita às dependências do Valladolid que ele “poderia ter desaparecido”, não fosse a nova gestão.

E, ao mesmo tempo, a equipe nunca deixou de pertencer a sua gente. Em 2022, a diretoria decidiu alterar o escudo do clube, com um visual mais moderno. Foi uma decisão polêmica, e a torcida logo prevaleceu. Pouco mais de um ano mais tarde, os sócios decidiram em votação maciça pelo retorno do antigo símbolo, que voltou a estampar a camisa na temporada 2023/24.

Estádio José Zorrilla, a casa do Valladolid (Foto: Eduardo Deconto)

Nada no clube acontece sem Ronaldo saber (e participar)

Até hoje, o diretor de comunicação Mario Miguel Nieto se espanta sempre que encontra Ronaldo, e o Fenômeno o cumprimenta pelo nome, com a maior naturalidade possível. Parece simples, mas é motivo de um relato orgulhoso à reportagem da Trivela – e aos amigos em sua Valladolid natal. E é também uma prova de como o presidente tenta fazer parte do dia a dia de um clube tão familiar, mesmo à distância.

Ronaldo não escapa das críticas de parte da torcida por não estar presente fisicamente em Valladolid para acompanhar de perto o que acontece nos bastidores do time da cidade. Mas quem trabalha no clube garante que o presidente participa de todas as decisões da gestão e não apenas sobre o que acontece em campo.

– Ele não está fisicamente aqui porque obviamente ele é uma pessoa que tem seus negócios e tem que seguir com a sua vida. Mas ele está completamente ciente do que acontece no clube. Há um conselheiro, um delegado, um conselheiro de presidência, há alguns diretores de área, há um diretor esportivo, e ele tem as suas pessoas de confiança também aqui. Então, no final, ele está informado de tudo o que acontece em todo momento e participa nas decisões como se estivesse aqui. Ronaldo está completamente preocupado e a par do dia a dia do clube. Como não poderia ser diferente. Porque é o seu clube no final – assegura Santiago.

Jogadores do Valladolid lamentam rebaixamento (Icon Sport)

A estrutura do Valladolid

O Estádio José Zorrilla pode até parecer discreto visto de fora. Mas experimente botar os pés nas arquibancadas pintadas de roxo e branco, as cores do Valladolid, para mudar de opinião. Os 38 mil assentos dão um ar aconchegante e, ao mesmo tempo, intimidador à casa do clube – não tão intimidador, porém, quanto o vento que sopra (ou corta) por ali.

As paredes do estádio também abrigam toda a parte administrativa do clube, em um moderno escritório instalado a alguns poucos passos do gramado, um dos melhores da Espanha. A estrutura de treinamentos para a equipe profissional e as categorias de base fica ao lado do José Zorrila. São dois campos de grama natural e outros dois sintéticos, além de uma pequena arquibancada instalada para acompanhar os jogos do time B.

Mas e o futebol?

Quando desembarcou em Valladolid, Ronaldo fez duas promessas: transformar a estrutura do Valladolid e levá-lo às competições europeias em cinco anos. De fato. De 2018 para cá, o clube passou por uma revolução interna… Mas apenas na gestão. Em campo, os resultados são perversos para o Pucela.

Pois cinco anos mais tarde, o Valladolid voltou à segunda divisão de La Liga, após permanecer apenas um ano na elite. Não é à toa que Ronaldo e o técnico Paulo Pezzolano são alvos de críticas e protestos de parte da torcida. Apenas de parte dela.

– Se o seu time não ganha, alguém tem que ser o culpado. Tenho claro que o presidente está fazendo o que ele acha melhor para que tudo vá bem. Quando Ronaldo está aqui e vai pela cidade, só tem que ver a quantidade de pessoas que se aproximam dele. Ele não pode andar dois passos sem que lhe peçam uma fotografia, sem que lhe peçam um autógrafo. Eu nunca vi ninguém em Valladolid parar o presidente pela rua para dizer uma palavra inconveniente, nem nada do tipo. É verdade que, às vezes, no estádio alguém grita contra o treinador, contra o presidente, mas foi muito pontual – afirma o diretor Jorge Santiago.

A Trivela testemunhou como essa dualidade é verdadeira com os próprios olhos. Durante o treino aberto, muitas crianças e famílias encaravam o frio para tentar um registro com os jogadores e também para manifestar o seu carinho. Um torcedor, porém, cobrou o técnico Paulo Pezzolano, ex-Cruzeiro, aos gritos de “hay que tener huevos”. O treinador respondeu, e a discussão logo foi contida por um segurança. Seja na Espanha ou no Brasil, o único jeito de mudar isso é em campo.

Foto de Eduardo Deconto

Eduardo DecontoSetorista

Jornalista pela PUCRS, é setorista de Seleção e do São Paulo na Trivela desde 2023. Antes disso, trabalhou por uma década no Grupo RBS. Foi repórter do ge.globo por seis anos e do Esporte da RBS TV, por dois. Não acredite no hype.
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