La Liga

Xavi é oficializado como novo técnico do Barcelona: um símbolo do barcelonismo, mas também um treinador iniciante em árdua tarefa

Depois de uma longa novela para a liberação, Xavi foi confirmado pelo Barcelona e será apresentado na segunda

A novela se arrastou durante os últimos dias, mas o Barcelona confirmou a chegada de Xavi Hernández como seu novo treinador na calada da noite, durante o início da madrugada de sábado na Espanha. A lenda blaugrana em seus tempos de meio-campista viverá sua primeira experiência como técnico no futebol europeu, após pouco mais de dois anos à frente do Al Sadd. E logo chega com a missão de desarmar uma bomba, considerando o baixo rendimento do Barça durante os últimos meses sob as ordens de Ronald Koeman. Conforme o comunicado do clube, Xavi assina contrato por duas temporadas e meia, até junho de 2024. O comandante ainda não trabalhará no final de semana, com sua apresentação marcada para a próxima segunda-feira. O antigo cérebro em campo, agora, precisará se provar como um novo mentor fora dele.

“Não era um adeus, era um até logo. O Camp Nou sempre foi minha casa. Vocês são minha torcida, minha gente, o clube que mais amo. E agora volto para casa. Nos vemos em breve, culés. Força, Barça!”, afirmou Xavi, em sua primeira mensagem à torcida. O treinador foi liberado depois de uma intrincada negociação com o Al Sadd, que só aceitou a saída sob pagamento de multa. O Barcelona tentava negociar outros meios de compensar, seja com acordos comerciais ou amistosos, e chegou até a negar a nota publicada pelos catarianos no início do dia, dizendo que o treinador já estava liberado. Segundo o jornal El País, o Al Sadd receberá €5 milhões pela rescisão, montante pago integralmente pelo Barça em anos vindouros para não ferir o Fair Play Financeiro.

Por tudo o que Xavi representa ao Barcelona, não existiam dúvidas de que o veterano um dia assumiria o comando dos blaugranas. A dúvida era sobre qual momento seria mais oportuno. O espanhol chegou a ser cogitado para o cargo antes da contratação de Quique Setién e Ronald Koeman, mas muitos consideravam que ele não estava suficientemente talhado para a missão – inclusive o presidente Joan Laporta, em meio à sua campanha eleitoral. Sua rodagem não mudou tanto assim desde então, mas, diante da emergência no Camp Nou, Xavi virou a principal cartada do Barça para tentar solucionar a crise. É um cara que conhece muito bem o clube e tentará renovar essa identidade, em tempos de dificuldades.

Aos 41 anos, Xavi teve sua única experiência como treinador à frente do Al Sadd. Foram 91 partidas na direção do clube do Catar, com um aproveitamento respeitável de 73% dos pontos. Vale ponderar, contudo, que a força do Al Sadd no contexto doméstico impulsiona esses números. O clube conquistou uma edição do Campeonato Catariano no intervalo, além de levar seis copas nacionais. O desempenho na liga passada, sobretudo, foi excepcional e o time levou o troféu de maneira invicta, com 19 vitórias em 22 partidas, além de expressivos 77 gols marcados e só 14 sofridos. A lacuna ficou para as empreitadas internacionais, sem passar das oitavas de final em duas aparições na Champions Asiática (com a queda na fase de grupos da atual edição) e uma participação decepcionante no Mundial de Clubes de 2019.

O Al Sadd, todavia, evoluiu nas mãos de Xavi depois daquele Mundial. O treinador aplicou um modelo de jogo bastante ofensivo, recheando suas escalações de armadores e atacantes. Além disso, o material humano à disposição era bem acima da média dentro do Campeonato Catariano. Santi Cazorla e Gabi são os veteranos do plantel, que ainda reúne estrangeiros tarimbados no futebol local como Nam Tae-hee e Baghdad Bounedjah. A lista de destaques ainda inclui nomes importantes da seleção local, a exemplo de Akram Afif e Hasan Al-Haydos. O volante Guilherme e o meia Rodrigo Tabata são os representantes brasileiros.

Se dentro da realidade catariana Xavi conseguiu deixar sua marca, a situação no Barcelona será bastante diferente. O novo treinador pegará o bonde andando, com um elenco que possui sérios problemas de montagem e ainda sofre com as repetidas lesões – apesar das importantes voltas recentes. Além do mais, um dos principais obstáculos se concentra na própria confiança aos redor dos blaugranas, como se viu durante as últimas semanas. É uma equipe apática, que não parece acreditar em suas forças e se entrega quando fica em desvantagem contra adversários de mais peso. Ainda sofreu com a falta de estratégia de Koeman e infrutíferas escolhas, especialmente nas improvisações.

Torcida preparou belo mosaico em homenagem ao meia (Divulgação)

Imaginar uma revolução de Xavi em busca do futebol ofensivo é um passo bem mais adiante, que depende de muitas outras variáveis urgentes. No momento, ele precisará se centrar em botar ordem na casa. Talvez seu maior trunfo seja mesmo o conhecimento interno dos mecanismos do clube e a forma como poderá se associar com outros funcionários, assim como com outros antigos ídolos. Durante a semana, a imprensa catalã noticiou como o veterano buscava o retorno de Carles Puyol para um cargo na comissão técnica, exatamente pelo papel de liderança do antigo capitão. Xavi conhece muito bem os atalhos do Camp Nou, e nisso fica a aposta.

O Barcelona não tem a qualidade no elenco de outros tempos, mas ainda assim pode fazer mais do que as últimas atuações pífias no Campeonato Espanhol e na Champions League. Resta saber como Xavi irá injetar essa nova energia dentro da equipe, que muitas vezes se mostrava descrente em Koeman. Recuperar diferentes jogadores que rendem abaixo e encontrar uma estrutura mais clara dentro de campo são outras missões primordiais ao novo treinador. A partir disso, o Barça pode recuperar um pouco mais os créditos em si e também respaldar mais o novo comandante inexperiente.

Além disso, outro ponto importante ao redor de Xavi será o trato com as categorias de base. Até pelas limitações financeiras, o clube tem usado mais promessas que a média dos anos anteriores e alguns prodígios inclusive foram jogados na fogueira. De certa forma, Xavi passou por isso no infrutífero início do século do clube e certamente terá um tato para lidar com esses adolescentes. Nomes como Pedri, Gavi ou Ansu Fati podem mesmo representar bastante aos blaugranas, mas não devem ser tão exigidos como salvadores da pátria. E, na outra ponta, também pesa a relação de Xavi com os senadores dos vestiários. A velha parceria com Gerard Piqué e Sergio Busquets pode abrir portas, apesar da necessidade de uma ponderação em meio à renovação.

Outra experiência anterior favorável a Xavi é a própria maneira como pôde trabalhar com grandes treinadores, que realmente transformaram o Barcelona. Começou com Louis van Gaal, depois foi essencial a Frank Rijkaard na recuperação do clube, até Pep Guardiola elevar o patamar de desempenho do time e do próprio maestro. No fim, ainda conviveu por mais um ano com Luis Enrique na Tríplice Coroa, em sua temporada de adeus como jogador. O novo técnico não terá o processo de adaptação pelo qual Guardiola e Luis Enrique passaram, pelo time B. Também é inviável imaginar um impacto imediato próximo ao que Pep teve no time de cima. De qualquer forma, Xavi viu de perto tudo isso e contará com um nível de tolerância razoavelmente alto no Camp Nou, exatamente pela imagem que possui dentro do clube, como o símbolo em campo de tantos técnicos. A questão é que o momento ruim ao redor também pode chamuscar em pouco tempo seu status como ídolo.

Pelo sim e pelo não, o Barcelona decidiu gastar suas fichas em Xavi agora. A lenda será um escudo momentâneo ao clube e poderá inclusive dar tempo para que o presidente Joan Laporta busque alternativas na gestão. Fato é que, apesar de toda a aura, o antigo meio-campista não deixa de ser um tiro no escuro. Ele até aporta uma liderança e um conhecimento interno, mas isso não necessariamente o qualifica como treinador, ainda mais no cenário caótico atual. Por mais que as entrevistas do veterano sejam eloquentes, pregando um estilo de jogo baseado na posse de bola e na personalidade, incutir isso no atual Barça não será tão simples – principalmente se o apego às ideias for mais que a maleabilidade junto ao elenco.

Nesta nova caminhada, Xavi também coloca à prova seu próprio nome e seu futuro como treinador. Por sua devoção ao clube, prevalece a coragem de mergulhar no risco, como quem vive o Barcelona por dentro desde os 11 anos de idade. Entretanto, pegando o exemplo de Andrea Pirlo e Frank Lampard, outros ídolos testados recentemente em situações até mais brandas, o histórico em campo não é garantia suficiente. O próprio Koeman, embora mais rodado na casamata e mais antigo no clube, é prova disso. Não dá para achar que a classe do Xavi maestro em campo simplesmente se transmutará em classe de seus times dirigidos, por mais que as ideias estejam enraizadas nele. É um símbolo do estilo que eternizou um dos maiores esquadrões da história, mas que por vezes parece também ser um peso para os blaugranas se reerguerem numa nova época.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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