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Dez anos depois da epopeia na Champions, o Málaga é rebaixado à terceirona do Espanhol

O Málaga teve um projeto megalomaníaco que durou poucas temporadas, enquanto a dilapidação afunda os boquerones nos últimos anos

Há dez anos, o Málaga vivia o momento mais relevante de sua história. Os boquerones alcançavam as quartas de final da Champions League e só não foram além por causa da virada insana do Borussia Dortmund no Signal Iduna Park. Era um time muito forte dos andaluzes, que reunia nomes como Joaquín, Javier Saviola, Isco, Martin Demichelis, Júlio Baptista e Roque Santa Cruz, além do técnico Manuel Pellegrini. Foi um período de sonho que contrasta demais com o pesadelo atual. Neste sábado, o Málaga foi rebaixado à terceira divisão do Campeonato Espanhol. A torcida bem que tentou abraçar os albicelestes nesta reta final e proporcionou grandes mobilizações, mas o desempenho em campo não foi suficiente. Pela primeira vez desde 1998, a agremiação não estará nas duas principais divisões de La Liga.

O Málaga é talvez o maior exemplo de um clube transformado em brinquedo por um dono milionário. Os boquerones eram um time de história relativamente recente em La Liga, com o acesso inédito conquistado em 1999, que resultou em sete temporadas seguidas na primeira divisão. Já a nova promoção alcançada em 2008 abriu as portas para que, dois anos depois, o clube fosse comprado por Abdullah ben Nasser Al Thani. O membro da família real catariana prometia transformar os albicelestes em uma potência em pouco tempo. Despejou milhões no mercado de transferências e trouxe grandes figuras, como Ruud van Nistelrooy e Joaquín. Os resultados vieram, com a quarta posição em La Liga 2011/12 e a classificação inédita para a Champions.

O problema é que o magnata se cansou cedo do brinquedo rapidamente e os investimentos cessaram. Sua intenção era iniciar também uma série de empreendimentos na cidade de Málaga, sobretudo na rede hoteleira e na área portuária, mas desistiu ao não receber a abertura esperada. E o clube pagou o pato, com situações mais graves. Os jogadores passaram a reclamar de salários atrasados, enquanto outros times apontavam calotes nas transferências. O elenco da Champions ainda ganhou medalhões em fim de contrato (como Diego Lugano, Javier Saviola e Roque Santa Cruz), mas aquele mercado de 2012/13 tinha servido bem mais para lucrar com as vendas de Santi Cazorla, Nacho Monreal e José Salomón Rondón. Aqueles milhões não foram redirecionados em novos reforços. Apesar do desmanche, Manuel Pellegrini fez muito ao colocar os albicelestes entre os oito melhores times da Europa e vender caro a eliminação para o Dortmund.

Em 2013/14, o Málaga deixou de fazer suas contratações bombásticas e vendeu grande parte de seus destaques, ganhando ainda uma bolada com a saída de Isco para o Real Madrid. De novo, não reinvestiu o dinheiro no elenco. Pior ainda, a agremiação seria punida pelo Fair Play Financeiro da Uefa por causa das pendengas e o clube não pôde disputar a Liga Europa naquela temporada. Consequentemente, o Málaga despencou na tabela de La Liga e passou a fazer campanhas medianas. Os protestos pela saída de Al Thani se tornaram costumeiros, embora o proprietário não largasse o osso. Sequer comparecia ao estádio e pagava salários a funcionários fantasmas que, coincidentemente, eram seus filhos. Um tanto por birra, seguia no cargo.

O apequenamento do Málaga resultou no rebaixamento em La Liga 2017/18, com uma campanha na qual o time não saiu da zona de rebaixamento a partir da terceira rodada e terminou na inquestionável lanterna, a 23 pontos da salvação – quando só tinha acumulado 20 pontos nas 38 rodadas. A amargura dos boquerones na segundona seria longa. O time até alcançou os playoffs de acesso em 2018/19. Terminou em terceiro e caiu nas semifinais para o Deportivo de La Coruña. Depois disso, os andaluzes despencaram para a metade inferior da tabela. Tiveram um 14° lugar, depois um 12°, antes de terminarem em 18° a temporada passada – só dois pontos acima da zona de rebaixamento. Os péssimos resultados em campo refletiam o caos nos bastidores.

O proprietário do Málaga ainda é Al Thani. Além de diminuir ainda mais os investimentos na segundona, o catariano passou a direcionar dinheiro do próprio clube para seus negócios em outras áreas e a usá-lo para bancar despesas pessoais. A má conduta administrativa levou a uma intervenção judicial, com a abertura de um processo contra o magnata. Desde agosto de 2020, um gestor externo dirige o Málaga – e também não faz um trabalho exatamente elogiável. Dispensas no elenco se tornaram comuns para contornar os débitos e salvar o caixa. As consequências disso passaram a se notar na tabela, com as campanhas cada vez mais fracas.

E as pendências judiciais impedem a chegada de novos compradores ao Málaga. Em 2013, Al Thani negociou parte da propriedade do clube à Blue Bay, uma empresa com investimentos em hotéis que era parceira do catariano. A relação se rompeu e a companhia passou a reivindicar 49% dos direitos do clube. Enquanto isso não se resolver, os boquerones ficam à deriva. E não que Al Thani deseje vender. Muito pelo contrário, ele já declarou publicamente que o Málaga “é sua família” e que não o venderá pela melhor oferta. Enquanto isso, todos perdem.

Nesta temporada, o Málaga tinha certas esperanças ao conseguir aumentar seu caixa graças à redução das dívidas e apostou em medalhões. Foi um grande tiro n'água. O time passou apenas duas das 41 rodadas da segundona realizadas até o momento fora da zona de rebaixamento. O começo da campanha já foi péssimo, com seis derrotas e uma vitória em sete rodadas. A partir de então, os boquerones já estavam afundados. A equipe ocupou a lanterna em grande parte do tempo, com fases pontuais em que as derrotas eram menos frequentes.

Apenas nas rodadas mais recentes, com a corda no pescoço, é que o Málaga cresceu. Os albicelestes chegaram a registrar cinco vitórias e um empate num intervalo de oito rodadas, até o início de maio. Com isso, saltaram três posições na tabela, da lanterna ao 19° lugar. Existia um fio de esperança de que os albicelestes poderiam driblar os riscos do descenso. Mesmo assim, somente com um milagre viria a salvação. Não aconteceu.

Neste sábado, o Málaga teria um compromisso dificílimo fora de casa, ao visitar o Alavés, que briga pelo acesso direto. A derrota por 2 a 1 condenou o rebaixamento dos andaluzes. A sete ponto de sair do Z-4, a equipe não poderá mais se safar na rodada final. Será um duelo contra o Ibiza, também rebaixado, em La Rosaleda. Apesar da melancolia, dá para acreditar que a torcida albiceleste abraçará o time. A média de público é de 18 mil pessoas a cada partida em casa. Apenas o Las Palmas, que briga pelo acesso, possui uma média superior nessa edição da segundona. E o detalhe é que a média do Málaga se manteve acima do 10 mil espectadores ao longo dos últimos anos, mesmo com a derrocada e ponderando as limitações causadas pela pandemia.

Dirigido por Sergio Pellicer desde janeiro, após as passagens frustradas de Pablo Guede e Pepe Mel pela casamata, o Málaga ainda conta com algumas figurinhas carimbadas dentro de campo. Nomes como o goleiro Manolo Reina, o zagueiro Jonás Ramalho, o ponta Lago Júnior e o centroavante Fran Sol possuem boa rodagem no futebol espanhol. Já o protagonista da campanha é um nome histórico de La Liga: o atacante Rubén Castro, futebolista espanhol com mais gols e mais jogos disputados entre as duas primeiras divisões do país. Os dois recordes foram batidos na atual campanha, na qual o centroavante de 41 anos contribuiu com dez gols, muitos deles na tentativa de reação no final. Mesmo assim não bastou.

Diante da queda, o Málaga publicou uma nota em suas redes sociais pedindo desculpas à torcida. Os boquerones admitem que o planejamento da temporada não deu os frutos esperados e isso culminou na queda. Não houve responsabilização sobre Al Thani e sua falta de compromisso. A atual administração reconhece que também não faz um trabalho suficiente – especialmente na parte esportiva. A exaltação foi ao papel da torcida, que sustentou as esperanças até quando pôde nesta reta final. O recomeço será mais duro, já que a terceira divisão do Campeonato Espanhol sequer é totalmente profissional, com sua disputa regionalizada.

Será a primeira vez em 25 anos que o Málaga não jogará as duas principais divisões de La Liga. A luta pelo acesso pode ser muito dura, vide as dificuldades que o Deportivo de La Coruña tem passado nos últimos anos. Os boquerones sabem que podem contar com sua torcida, mas não mais do que isso, e tal mobilização é o que fica de orgulho. As quartas de final da Champions podem soar como uma epopeia, mas também simbolizam a forma como os albicelestes foram usados durante poucas temporadas por um aventureiro. A dilapidação se torna mais duradoura do que a curta glória.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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