Fomos Campeões: O Deportivo de La Coruña que estragou o centenário do Real Madrid
Dépor jogou muita bola e faturou a Copa do Rei em pleno Santiago Bernabéu, em seu último título
No ano da graça de 2022, a Galícia está dividida entre um clube de primeira divisão e um que está preso no inferno da terceirona, inclusive perdendo o dérbi local para o time B de seu rival. O torcedor do Celta está rindo à toa porque, além de não correr risco de descenso, ainda pode tirar uma onda com o pessoal de La Coruña, que vê o acesso à segundona como um sonho, não uma questão inevitável e iminente.
Estamos mesmo ficando velhos. O penta do Brasil está prestes a completar duas décadas, bem como o auge do time dos Galácticos. Nesse auge, houve um tropeço doloroso, que culminou no último título do Deportivo de La Coruña. Pois é: vinte anos nos separam do inesquecível ano de 2002, aquele que teve Cafu levantando a taça e mandando um beijo para a esposa; Zinédine Zidane marcando um golaço de voleio para definir a final da Liga dos Campeões contra o Leverkusen; Robinho pedalando em cima de Rogério para fazer o Santos campeão brasileiro, entre outros memoráveis acontecimentos. Duas décadas, vinte anos. O tempo passa rápido demais. Que loucura.
O ano de 2002 também era a celebração do centenário do Real Madrid, que já apostava alto em grandes craques para dominar o futebol mundial. E esse elenco, treinado por Vicente del Bosque, tinha “apenas” caras como Roberto Carlos, Luís Figo, Zinedine Zidane, Raúl González, Fernando Hierro, Claude Makélélé, Fernando Morientes e Iker Casillas. Ainda estavam por vir Ronaldo e David Beckham, posteriormente, mas era inegável que Del Bosque tinha uma super seleção e podia fazer uma baita limonada.
Hoje é festa lá no meu apê
Assim sendo, a festa estava toda armada para o dia 6 de março de 2002, data de fundação do clube madridista. Enquanto se preparava para alcançar a decisão continental, o time merengue ficava atrás do Valencia (campeão espanhol) e do La Coruña na tabela de La Liga. A frustração pela campanha não pesou, já que o Real ainda tinha duas outras chances de se consagrar. Em jogo, naquele dia, estava a finalíssima da Copa do Rei contra o Deportivo, que ainda vivia um rescaldo de seus grandes anos e reunia jogadores históricos para tentar manter o prestígio do após a conquista de La Liga em 2000. Javier Irureta tinha, entre os destaques, o lateral Lionel Scaloni, o volantão Mauro Silva, os meias Víctor, Juan Carlos Valerón e Fran, além do goleador Diego Tristán. Um bom elenco, mas que não deixava de ser um azarão.
A aparição na final da Copa não era uma novidade para o Dépor: em 1995, venceu o Valencia em circunstâncias bizarras. Por conta de uma forte chuva, a partida foi interrompida aos 79 minutos, quando o placar estava 1 a 1. Três dias depois, no Santiago Bernabéu, os minutos restantes foram jogados e Alfredo marcou o gol que deu o primeiro título no torneio ao clube corunhês. Portanto, não era uma final totalmente desequilibrada para o Real Madrid, que, apesar do favoritismo por ter tantas estrelas, não dava como certa a vitória diante do Deportivo.
A empolgação cessou quando a bola começou a rolar no campo. A excitação dos aniversariantes logo deu lugar à apreensão, conforme os galegos se engraçavam em campo, tentando abrir o placar logo de cara. Sem medo do bicho papão e demonstrando muita inteligência na hora de distribuir passes ao redor do campo, os visitantes se impuseram e desnortearam o Real com alguma facilidade. O Real demorou a despertar, e quando o fez, teve de buscar a bola no fundo das redes: Fran acionou Sergio, que recebeu a bola perto da meia-lua, ziguezagueou para tirar Hierro do lance com um drible de corpo e saiu na cara do goleiro Cesar Sánchez para concluir. Com um chute rasteiro por entre as pernas do arqueiro blanquillo, Sergio correu alucinado para comemorar um grande gol, logo aos seis minutos da primeira etapa. O pesadelo da torcida local estava só começando. A verdadeira carimbada na hipotética faixa de campeão veio aos 37, pelos pés de Tristán.
Essa festa virou um enterro!
Quase do mesmo jeito como saiu o primeiro gol, o Deportivo subiu a marcação e recuperou uma bola no último terço de campo. Os passes esbarraram em uma interceptação de Hierro. Mas o capitão madridista não encontrou ninguém na cobertura e a bola retornou para o Deportivo, com Víctor. O meia rolou para Valerón, que estava se movimentando para a linha de fundo. Inicialmente, a defesa do Real tentou forçar uma linha de impedimento, mas Valerón estava em condição legal, já que Michel Salgado dava condição do outro lado da área. Com um passe açucarado, Valerón achou Tristán na risca da pequena área. Salgado demorou para dar o bote e viu de perto o segundo gol dos galegos.
O golpe fez o Real sangrar ainda mais, tornando a reação uma questão de honra. Vestido de branco, o time da casa tinha uma enorme mancha no meio do peito, causada pelo gol de Tristán. E quanto mais branca a camisa, mais evidente fica a marca da facada. Quem achava que o primeiro gol havia sido pura sorte, não podia dizer o mesmo do segundo, que surgiu de uma jogada bem trabalhada e contou com rapidez de raciocínio e ótima tomada de decisão por parte do Dépor.
Com dois gols a favor, a zebra azul e branca sorria, contemplando o silêncio da torcida mandante. E quem trajava a camisa do La Coruña naquela noite limpa de Madri não tinha outra opção se não sentir o ápice da vida passar diante dos olhos, pois mesmo com 75 mil pessoas no Bernabéu, o som que mais se ouviu depois do apito final foi o grito de quem havia viajado da Galícia até a capital para quem sabe atrapalhar os festejos do gigante milionário de Florentino Pérez. Eles de fato atrapalharam, e a jornada entrou para a história.
Já dizia o sábio Johan Cruyff: sacos de dinheiro não marcam gols. Contudo, vamos além dessa máxima: sacos de dinheiro não marcam gols e nem dão carrinhos. Nessa toada, o Real Madrid ainda escapou de levar o terceiro, com a sua zaga colocada na roda, feito barata tonta. Valerón entrou na área, entortou a coluna de Salgado com um driblaço e acertou a trave. Intenso, o Deportivo brincava de passar de um lado para o outro, dando uma verdadeira canseira em Hierro e seus companheiros.
O estádio voltou a tremer quando Raúl diminuiu o estrago e marcou o primeiro dos madridistas, mas foi pouco, muito pouco. Apesar do abafa do Real, a defesa do Dépor soube afastar o perigo e se segurar com louvor para manter a vantagem no marcador. A pressão estava toda do outro lado para marcar. Os comandados de Irureta tinham em si uma leveza, a leveza de quem não jogava com a obrigação de vencer, o que tornou a circunstância ainda mais incrível para a comemoração, permitida após o apito final do árbitro Manuel Mejuto González.
Poucos times na história do futebol calaram estádios lotados e ousaram erguer a taça. Em 1950, o Uruguai protagonizou o Maracanazo ao derrotar o Brasil em pleno Maracanã para se sagrar bicampeão mundial. Meio século depois, o Deportivo derrubou o estelar Real Madrid para comemorar o seu Centenariazo no bicampeonato da Copa do Rei. O feito é considerado tão grande quanto o título de 2000, no qual, subvertendo a lógica e a concorrência de Barcelona e Valencia, a equipe de Irureta forçou sua chegada ao topo do futebol espanhol.
Para uma equipe tão modesta e que brigou entre os grandes nos anos 1990 e 2000, a situação do La Coruña é um drama quase incontornável. O estrago feito por más gestões ainda deve demorar para ser reparado. Enquanto o retorno à elite não vem (o Dépor está nos play-offs de acesso) e o clube acumula vexames longe dos holofotes, o passado serve de alento. Quem esteve no Bernabéu naquele 6 de março tem certeza: só se vive o Centenariazo uma vez.