Compra de Bale mostra como o futebol pode ficar alheio à sociedade
Para quem não acompanha futebol, a manchete causa espanto. O Real Madrid pagou € 100 milhões por Gareth Bale, uma quantia que, independente de ser Pelé ou Macula, é absurda. E as indagações se sugerem ainda maiores quando se considera a realidade econômica em torno dos merengues. A Espanha é um dos países mais afetados pela crise econômica europeia, com cerca de um quarto de sua população ativa desempregada – no último mês de agosto, o total de parados chegou a 4,7 milhões de pessoas.
Mas, afinal, até que ponto é moral um clube como o Real Madrid desembolsar € 100 milhões em um jogador, vivenciando uma realidade tão contrastante? Como o gasto descomunal poderia ser visto pelo governo e pela população? Para analisar as questões, conversamos com o professor-doutor José Renato de Campos Araújo, especialista em Ciências Sociais e Gestão de Políticas Públicas, além de autor do livro Imigração e Futebol: O Caso Palestra Itália. E a conclusão dele é a de que, por mais que as proporções do negócio possam ser estarrecedoras em um primeiro momento, elas não chocam quando se considera a realidade do futebol.
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“Relacionar a transferência com a realidade espanhola é forçar a barra. O futebol sempre beirou os limites da contravenção. Não são poucos os indícios de lavagem de dinheiro, de tráfico de influência e de outros crimes. O que impressiona mesmo é a forma como as autoridades europeias são permissivas em relação a esses problemas. É estranhíssimo que haja toda essa liberdade, mesmo sabendo como funciona a Fifa, como agem muitos dos dirigentes. Com muitos clubes falidos, grandes investidores de origem duvidosa aparecem. E ninguém faz nada para barrá-los”, ponderou Araújo.
A espetacularização do futebol é maior que o drama espanhol
A indignação com o paradoxo entre a compra de Bale e a crise da Espanha foi evidenciada pelo jornal inglês The Guardian. Em matéria publicada nesta semana, o periódico questionou: o que a Espanha poderia fazer com os € 100 milhões gastos em Bale? Segundo a publicação, 11.609 espanhóis poderiam ser empregados ganhando salário mínimo; o fundo de resgate aos bancos locais poderia ser aumentado em 0,1%; o investimento do governo em cultura poderia ser duplicado; e todas as crianças espanholas poderiam receber duas porções de patatas bravas, prato típico do país.
Vale comparar a realidade do futebol com o drama espanhol? Para o professor, não: “Uma reportagem como essa do Guardian beira a ingenuidade. Ver transferências fora da realidade não é incomum e os exemplos são fáceis de encontrar, como o Doni, o Hulk. Está dentro da realidade da indústria do entretenimento que tomou conta do futebol. Os jogadores se transformaram em astros de Hollywood, os salários são astronômicos, os meios de comunicação alimentam essa realidade. É só ver tudo o que foi criado para a apresentação do Neymar, beirou o ridículo. Essa situação faz a economia girar, com a venda de camisas, de produtos relacionados, de repercussão, de abertura de mercados”.
E se, ao invés de gastar tanto trazendo Bale, o Real Madrid decidisse investir em obras em prol do clube que beneficiassem a população com empregos? “Criticar é um falso moralismo, nas épocas de vacas gordas ninguém acha o valor absurdo. Os conflitos morais não interessam ao futebol. O Real Madrid é uma empresa, não uma instituição de caridade. Não é uma boa ação do clube que vai salvar a economia da Espanha. E nem é de responsabilidade dele. Eles estão pensando no que é melhor para o time, o impacto da contratação para a marca. O Real Madrid vive no capitalismo e faz novos investimentos para ganhar dinheiro, gerar mais riqueza em um intervalo de tempo menor. Dentro da lógica atual, é o grande negócio para gerar um grande retorno ”, analisou.
Fiscalizar é preciso
Mesmo com o histórico de pouco controle, a União Europeia está de olho na regularidade da transferência. A organização internacional promete investigar o crédito recebido pelo Real Madrid para bancar os € 100 milhões. Parte deste montante teria vindo do Bankia, um banco que foi nacionalizado e recebeu injeção de dinheiro da organização continental para evitar a bancarrota.
Perguntado sobre um possível clima de revolta no restante do continente, Araújo também afastou a hipótese: “As organizações europeias não estão conseguindo lidar nem com os problemas macroeconômicos, quanto mais com questões específicas como esta. A transferência pode até causar resignação em parte da população. Mas não vejo que esse tipo de situação possa gerar uma crise entre entidades. O benefício aos clubes faz parte da maioria dos países europeus”.
De fato, não é raro listar os episódios em que o Real Madrid foi ajudado pela relação com governantes – algo que não é exclusividade dos merengues, que fique claro. No primeiro mandato de Florentino Pérez, por exemplo, o clube se aproveitou da especulação imobiliária na região de seu centro de treinamentos para vender o terreno por € 480 milhões à prefeitura de Madri, em caso que levantou enorme polêmica. Além do mais, a dívida do Real Madrid é estimada em € 600 milhões, um valor que parece ignorado pelas autoridades.
“A Espanha tem uma taxa altíssima de desemprego e a contratação pode até ofender algumas pessoas. Mas o próprio governo é beneficiado, pois uma transferência dessas gera riqueza. Além do mais, há uma relação histórica de benevolência aos grandes clubes, com Real Madrid e Barcelona se aproveitando do governo. E esta benevolência não é uma exclusividade da Espanha, já que o mesmo acontece na Itália, na Inglaterra”, explica Araújo.
Questionado sobre a contratação de Bale pelo Real Madrid, o técnico do Barcelona, Tata Martino, foi categórico em clamar uma falta de respeito com o mundo. A realidade do futebol como negócio, porém, é esta. E, em meio a tantas questões eticamente discutíveis, a contratação de Bale pode, de fato, soar como algo menor.