Sucesso de Álvarez é prêmio à inquietação de Scaloni que transformou a Argentina em camaleão
O técnico da Argentina teve a coragem de adaptar a sua escalação a cada adversário que enfrentou e colheu os frutos: está na final da Copa do Mundo
Quando uma seleção tem vida longa na Copa do Mundo, é comum o espectador atento chegar às fases finais sabendo os 11 jogadores de cor. É aquela história: por que consertar o que não está quebrado? Mas essa não é a única maneira de conduzir uma campanha em uma grande competição. Lionel Scaloni optou pela inquietação. Por se adaptar a cada adversário. Acertou mais do que errou, mesmo quando os efeitos desejados não apareceram tão bem. E, se existe uma grande ilustração da sua coragem para tomar decisões difíceis, é Julián Álvarez, o garoto de 22 anos que decidiu uma semifinal de Copa do Mundo.
O principal problema de mudar constantemente as escalações é o risco. O conservadorismo costuma ter mais aceitação popular. Se o técnico é ousado e erra, as críticas costumam ser pesadas. Existe também um fator psicológico, de buscar segurança no que é familiar, no que tem dado certo. Por isso, errando ou acertando, existe um louvável fator de coragem nas decisões que Scaloni tem tomado ao longo da Copa do Mundo, desde que precisou salvar a da Argentina logo depois da derrota para a Arábia Saudita na primeira rodada.
Evidentemente, o resultado é um fator determinante na percepção das ações de Scaloni. Ele mudou cinco jogadores para a segunda rodada contra o México, o que poderia ser tomado como sinal de pânico, e foi em alguns setores. Até sair a vitória. Por outro lado, também é impossível ignorar completamente os efeitos práticos das decisões em suas análises. Então é melhor avaliar se o que foi proposto faz sentido. A defesa argentina foi péssima contra os sauditas. Scaloni mudou três peças ali, e entrou com Guido Rodríguez e Alexis Mac Allister nos lugares de Leandro Paredes e Papu Gómez, outros que fizeram jogos apagados ou ruins.
As decisões mais ousadas vieram na terceira rodada contra a Polônia. A Argentina havia recuperado um pouco de margem de manobra, o que pode tê-lo deixado mais confortável, mas ainda precisava de um resultado. Romero e Molina retornaram na defesa, e Scaloni não teve medo de lançar uma dupla de garotos que estava até outro dia defendendo o River Plate. Enzo Fernández foi, enfim, promovido a titular no meio-campo. Julián Álvarez entrou no ataque, barrando Lautaro Martínez. Eles ajudaram a decidir a vitória por 2 a 0.
Esse foi um momento crucial da campanha da Argentina. Não era fácil barrar Lautaro Martínez, que havia chegado à Copa do Mundo como um dos grandes centroavantes do mundo, mesmo se não estivesse em sua melhor fase na Internazionale. Foi um parceiro importante de Messi ao longo do ciclo e esperava-se que pudesse aliviar um pouco do fardo ofensivo sobre o craque. Menos fácil ainda era substituí-lo por um garoto que tem apenas alguns meses de experiência, como reserva, no futebol europeu. Scaloni bancou a sua decisão, o que foi ficando cada vez mais fácil à medida em que Álvarez retribuía com lances decisivos. Marcou contra a Polônia e em dois dos três jogos da Argentina no mata-mata.
O duelo contra a Austrália nas oitavas de final foi provavelmente o que as tentativas de Scaloni menos deram certo. A principal foi o retorno de Papu Gómez na linha ofensiva. Deve ter pensado que a dinâmica de ataque contra defesa que era esperada exigia um meia-atacante capaz de quebrar linhas com passes apurados e criatividade. Não funcionou. Gómez não fez muita coisa antes de ser substituído por Lautaro no começo do segundo tempo. A vaga saiu no brilhantismo de Messi e em um erro crasso do goleiro australiano Mathew Ryan. E a Argentina ainda passou por um sufoco nos minutos finais. Quase precisou disputar a prorrogação.
Nas quartas de final, novo jogo, novo sistema. Problemas físicos limitaram a participação de Di María no mata-mata. Sem o seu principal jogador de lado de campo, Scaloni optou por espelhar os três zagueiros de Louis van Gaal e liberar seus laterais para darem a famosa amplitude na frente. Os laterais, aliás, merecem um parágrafo à parte: o técnico argentino tem variado bastante entre Molina e Montiel pela direita e Acuña e Tagliafico na esquerda e geralmente tem cravado as suas escolhas. Contra a Holanda, por exemplo, quando Montiel infiltrou para receber o passe de Messi e abrir o placar, antes de Acuña sofrer um pênalti pelo outro lado para o segundo gol.
Diante do que a Croácia apresentou na Copa do Mundo, especialmente contra o Brasil, a escolha de Scaloni ficou clara: reforçar o meio-campo. É ali que os europeus conseguem controlar suas partidas, com Brozovic, Kovacic e Modric, mesmo que tenham tido dificuldades para transformar esse domínio em chances claras de gol. Scaloni retornou com Leandro Paredes – outro que foi importante no ciclo e não era tão fácil de barrar – ao lado de Enzo Fernández, Mac Allister e Rodrigo de Paul.
A ideia era boa, a ideia era certa. Não funcionou tão bem. A Argentina não ganhou o meio-campo no primeiro tempo contra a Croácia. Teve seu período de menor posse de bola do Mundial, junto com a etapa final contra a Holanda. Mas, novamente, os croatas não souberam criar a partir desse volume, e a Argentina teve o contra-ataque. Se o encaixe tático que Scaloni buscou não deu tão certo, aquela decisão que ele tomou na terceira rodada da fase de grupos deu bastante, porque Álvarez foi decisivo. Sofreu o pênalti e depois completou um arrancada à bumba meu boi para ampliar.
É verdade que ele deu sorte nas duas jogadas. Estava prestes a perder o gol antes de levar a trombada de Livakovic – ou estava tentando um drible ambicioso – e aproveitou os erros dos defensores croatas para continuar com a bola na sua arrancada. Mas essa foi uma sorte que Scaloni fez por merecer pela decisão corajosa de trocar um atacante consagrado por um garoto. Pelo mérito de reconhecer quem estava na fase mais iluminada, independente do nome e do status. Pela inquietação de mudar constantemente o seu time, ciente de que um passo em falso pode transformar o gênio em louco. Pela condução até aqui quase impecável que colocou a seleção argentina a uma vitória da apoteose.