Leckie encontrou uma fenda para a história e proporcionou o grito de gol mais retumbante já ouvido na Austrália
Leckie chegou a pedir dispensa da seleção da Austrália durante a pandemia para ficar mais com a família e voltou para ser o símbolo de um momento único

A Copa do Mundo possui alguns instantes premonitórios. Basta a jogada se desenhar para o torcedor mais sensitivo perceber que um gol lendário está prestes a acontecer. Tal impressão começou a ser tecida pela Austrália desde a construção de seu contra-ataque – a jogada bem tramada de pé em pé, da fisicalidade do pivô ao refinamento dos passes de primeira. E quando Matthew Leckie recebeu a enfiada em profundidade de Riley McGree, era como se o campo de futebol tivesse se transformado numa passarela ao olimpo dos heróis de Copas. A história estava só mais uns passos à frente. Leckie costurou Andreas Christensen duas vezes, mas poderia dar 200 fintas que o zagueiro não o pegaria. O destino estava traçado, criava uma invisível redoma de proteção ao seu redor. E havia uma fenda aberta, para a bola mansa passar por entre as pernas do beque, para entrar inapelável no canto de Kasper Schmeichel. A apoteose de uma Austrália que se agigantou em meio às desconfianças. O gol que torna Leckie para sempre vivo nas melhores memórias dos Socceroos.
Se o nome de Matthew Leckie aparece entre as principais referências desse time da Austrália, é até um sinal das limitações da equipe treinada por Graham Arnold. Aos 31 anos, o atacante nunca realmente aconteceu para o futebol de clubes em alto nível, apesar de algumas oportunidades e de boa qualidade técnica. Leckie teve longa passagem pela Bundesliga. Defendeu Borussia Mönchengladbach e Hertha Berlim sem se firmar de verdade. Seus melhores momentos na Alemanha vieram na segunda divisão, com certo destaque no modesto FSV Frankfurt, antes de ajudar o Ingolstadt a se promover pela primeira vez à elite. Nada tão retumbante, mas suficiente para colocar o camisa 7 em evidência num país no qual o futebol sequer é o principal esporte, mas conta com fiéis apaixonados.
O próprio Leckie chegou a ter outros sonhos. Quando criança, queria mesmo ser jogador de futebol australiano, a modalidade mais popular do país. Entretanto, a febre do futebol da bola redonda o picou tão logo teve contato e ele se tornaria importante dentro da Austrália. Foi assim quando estourou no Adelaide United, num impacto inicial que abriu as portas na Alemanha. Continua assim no retorno mais recente ao Melbourne City, em sua cidade natal, bicampeão nacional como uma das principais figuras dos celestes.
E, para ser uma estrela na Copa do Mundo, todos sabem, disputar a Premier League ou a A-League não faz muita diferença. Há uma década Leckie se referenda como uma opção importante da seleção australiana, em diferentes ciclos dos Socceroos. O atacante foi titular no Mundial de 2014, em campanha na qual seu time perdeu as três, mas teve seus brilhos pontuais num dos grupos mais difíceis do torneio. Mais experiente, também se colocou como titular absoluto em 2018, de novo com a queda precoce dos australianos. Entre um Mundial e outro, Leckie seria indiscutível na conquista da Copa da Ásia de 2015. O título continental, mesmo assim, tantas vezes não tem o impacto de uma vitória que seja em Copa do Mundo.
Diante de uma renovação do elenco que não se indicava simples, Leckie se colocou como capitão da Austrália após a Copa da Ásia. Por sua bagagem, inegavelmente era um dos jogadores mais tarimbados de uma seleção que perdia referências no exterior. Todavia, a pandemia fez o atacante abrir mão da braçadeira e da seleção. Por conta das restrições existentes pela quarentena na Austrália, ele avaliou que os períodos obrigatoriamente isolados o afastariam demais da família. Pediu para não ser convocado.
“Eu estava devastado. Disse ao treinador que sempre amei mais do que tudo jogar pela seleção. Eu me comprometi com a Austrália mais do que com qualquer clube, sempre foi minha prioridade. Mas contei a ele minha situação de atuar no exterior por tanto tempo, de ficar longe da minha família. Não foi fácil, mas ele entendeu. Ele sempre entende quando se trata de família. Ficou desapontado, é claro, ele sentirá falta de alguns do time que jogam na Austrália”, afirmou Leckie, na época.
O afastamento de Leckie durou alguns meses, no início da fase decisiva das Eliminatórias. Porém, quando a situação sanitária melhorou e o atacante se colocou à disposição novamente, Graham Arnold o convocou sem retaliações e o utilizou em praticamente todas as posições do ataque. Participaria da reta final do qualificatório, embora uma lesão na virilha tenha o afastado das derrotas penosas contra Arábia Saudita e Japão. A Austrália precisou disputar a repescagem. Leckie estaria a postos na vitória contra Emirados Árabes, bem como na dramática classificação contra o Peru. Virava uma pronta liderança no Mundial de 2022, independentemente de perder a braçadeira pelo período distante.
A Austrália estava disposta a aprontar nessa Copa. Isso se notou logo nos primeiros minutos da estreia contra a França. E os Socceroos sabiam que poderiam contar com Leckie, vide o cruzamento perfeito que resultou no gol inicial contra os campeões do mundo. Os Bleus terminaram por provar sua força na sequência, mas o atrevimento dos australianos não ficaria limitado àquele instante. Foi um time aguerrido contra a Tunísia e mereceu o triunfo por 1 a 0. Leckie colaborou com transpiração, na maneira como sua equipe travou os adversários, por mais que tenha desperdiçado uma boa chance de deixar o seu.
E a atitude da Austrália seria ainda mais recompensada diante da Dinamarca. Foi um time muito mais consciente de seu jogo, que sabia o que precisava fazer para anular os escandinavos e buscar a vitória. O papel do camisa 7 na ponta esquerda seria fundamental. Não teve vaidades para suar a camisa ao lado dos companheiros. Também garantiu certo escape aos Socceroos, como homem mais acionado do ataque, alvo de lançamentos da defesa. E quando a porta se abriu, Leckie conhecia o caminho para a posteridade. Foi isso que fez aos 15 minutos do segundo tempo, com seu enorme gol.
Não é a primeira vez que a Austrália vence numa Copa do Mundo. Também não é a primeira que se classifica para as oitavas de final. Entretanto, esse time escreve a história mais bonita dos Socceroos nos Mundiais, pelo desdém que o circundava e pela forma como reverteu todos os prognósticos. A resposta dos australianos vem em campo, algo que a incensada Dinamarca não conseguiu. E se o elenco de Graham Arnold permanece abaixo de outras gerações do país, esses guerreiros devem receber até mais carinho pelas sensações que produzem nos compatriotas. A arrancada de Leckie simboliza aquele instante em que todos fecham os punhos e contraem o rosto, no aguardo da explosão de emoções prestes a vir. No aguardo do grito de gol que ecoa em todo o país. O camisa 7 será para sempre o responsável por esse sentimento único, só possível graças à Copa do Mundo.