Copa do Mundo

A linda história de Mehdi Faria, o técnico brasileiro que foi rei em Marrocos e pela primeira vez levou uma seleção africana aos mata-matas da Copa

José Faria, chamado Mehdi após se converter ao islamismo, realizou um trabalho fantástico no futebol de Marrocos e levou o time às oitavas de final da Copa de 1986

Texto originalmente publicado em novembro de 2017 e revisado

Marrocos é uma seleção de vários pioneirismos para os africanos na história das Copas do Mundo. A passagem inédita às semifinais em 2022 é mais um desses feitos. Em 1970, os Leões do Atlas se tornaram o primeiro time a vencer edições das Eliminatórias exclusivas para a África e voltaram a botar o continente no mapa dos Mundiais depois de 36 anos. Já em 1986, os marroquinos se eternizaram como os primeiros representantes africanos nos mata-matas de uma Copa. E aquela equipe inesquecível tinha um brasileiro à sua frente: o técnico José Faria, rebatizado de Mehdi Faria após se converter ao islamismo. O carioca foi considerado um “rei do futebol” no Marrocos, e isso pelo próprio Rei Hassan II.

À frente de Marrocos por cinco anos, de 1983 a 1988, Mehdi Faria não chegou a ser um revolucionário tático. Porém, soube montar uma equipe extremamente competitiva, na base de uma forte defesa e de bom toque de bola nas subidas ao ataque. O técnico prezava pelo trabalho técnico de seus jogadores, embora recebesse muito mais elogios pelo lado humano, visto como um “segundo pai” pelos veteranos daquele time dos Leões do Atlas. Foi um grande treinador e um personagem de histórias deliciosas, que merece ser relembrado diante do novo sucesso dos marroquinos em Copas – especialmente quando o trabalho de Walid Regragui possui vários paralelos, em estilo e pensamento, com aquilo que Mehdi realizou há quase quatro décadas.

Faria e seus pupilos de Marrocos

José Faria nasceu no Rio de Janeiro, em 1933, e cresceu em Ramos. Na sua juventude, o garoto se acostumou a jogar nos campinhos onde o goleiro Castilho, futura lenda do Fluminense, aprimorava suas qualidades sob as traves. Faria não chegaria a fazer carreira no esporte, mas praticou futebol de salão e vestiu a camisa do York, em Bonsucesso. Funcionário da Petrobrás como operador de rádio, dedicava-se ao futebol como paixão. Foi treinador na base do Bonsucesso, antes de receber um convite para dirigir os garotos do Fluminense no futebol de salão.

Era uma vida bem humilde a que tinha José Faria nos anos 1970. Morava numa quitinete em Laranjeiras, próxima do Fluminense. Até faltava espaço dentro de casa. A esposa e os dois filhos costumavam dormir na única cama, enquanto o treinador dormia no chão mesmo. Ávido por descobrir talentos, Faria rodava praias e campos de várzea à procura de promessas. Levava lanches, que oferecia aos garotos mais pobres. E foi assim que conseguiu achar alguns potenciais craques. Seu maior pupilo foi Edinho, então centroavante nas areias, que virou um baita zagueiro em suas mãos. Curiosamente, o ex-tricolor seria uma das referências da seleção brasileira naquela mesma Copa de 1986, dono da braçadeira de capitão.

Ao longo de sua passagem pelo Fluminense, José Faria ainda trabalhou com jogadores como Carlos Alberto Pintinho, Arturzinho e o goleiro Paulo Sérgio. Do futebol de salão, passou a ser promovido aos times de campo do Tricolor, subindo cada categoria até treinar os juvenis. Tinha o hábito de levar os garotos para jogar nas praias, a fim de desenvolver o domínio e os lançamentos. Preocupava-se bastante com a parte técnica, enquanto incentivava também os dribles. Era uma figura muito querida, não apenas pelo carisma natural, como também pela humildade. Ao Jornal do Brasil, Faria assim se definiu: “Sou um técnico de campo, não de quadro negro. Dou aulas de fundamentos de futebol, ensino como melhorar no drible, no chute, lançamentos e toque de bola”.

Em 1979, José Faria recebeu a oportunidade de melhorar as condições de vida da sua família e, enfim, tirá-la da quitinete em Laranjeiras. Por intermédio do amigo Sebastião Araújo, seria levado para o Catar. Dirigiu as seleções de base, numa época em que o time de juniores chegaria ao vice-campeonato mundial sob as ordens de Evaristo de Macedo. Após deixar o trabalho na federação, Faria assumiu o comando do Al-Sadd. Seria bicampeão nacional. E, depois de deixar o Oriente Médio, recebeu o convite para se mudar a Marrocos.

Zaki e Faria, com a camisa do Fluminense, na Copa de 1986

Na época, a monarquia marroquina procurava um novo treinador para o FAR Rabat, time das forças armadas que era bancado pelo estado. Aficionado pelo futebol desde a infância, o próprio Rei Hassan II se envolveu com o assunto. O monarca tinha três nomes em sua lista: Vavá, Esquerdinha e José Faria. Segundo os jornais da época, ao ser entrevistado pela majestade, Faria teria recomendado a Hassan II para que contratasse algum dos outros dois, “porque eram famosos e falavam outras línguas estrangeiras”. No fim das contas, o rei gostou mesmo do carioca e o contratou.

José Faria assumiu o FAR Rabat em 1983. Pouco tempo depois, seria convidado também para dirigir a seleção de Marrocos, no lugar de Jaime Valente, que precisava voltar ao Brasil para resolver assuntos pessoais. Deu liga. Depois de uma forte geração nos anos 1970, que garantiu a presença inédita em Copas e o título da Copa Africana de Nações, os Leões do Atlas passavam por uma entressafra. O primeiro sinal concreto de que Faria poderia realmente fazer um grande trabalho veio com a classificação para os Jogos Olímpicos de 1984, encerrando um hiato de 12 anos do país no torneio. A equipe caiu na fase de grupos, mas fez jogos parelhos contra o Brasil e a Alemanha Ocidental, além de derrotar a Arábia Saudita. O treinador ganhava confiança no cargo e começava a formar sua base.

Paralelamente, José Faria também emplacou no FAR Rabat. Na época, o futebol marroquino era semiprofissional e os jogadores de seu clube tinham empregos públicos no exército. Recebiam salários normais, apesar das gordas gratificações garantidas pela monarquia. Para incentivar seus atletas, o comandante falava que “nem Zico ganhava tanto em bichos”. E o dinheiro começaria a pingar com frequência sob as ordens do técnico. Em 1984, Faria levou o FAR à conquista do Campeonato Marroquino, encerrando um jejum que durava 14 anos. Já em 1985, a equipe conquistou a Copa dos Campeões da África. Era a primeira vez que um time marroquino chegava ao topo do continente.

Segundo relatou o Jornal dos Sports na época, o Rei Hassan II ficou tão contente que “mandou contratar um grupo de sambistas da Beija-Flor e a atriz Cláudia Raia” para as comemorações pelo título continental. José Faria pediria uma casa no Rio de Janeiro como presente, enquanto também recebeu o título de cidadão honorário. Já amado pelos marroquinos, o técnico era chamado de “O Mago”, pela forma como transformava os jogadores sob suas ordens. Era um pouco a sua maneira de ver o futebol, valorizando os aspectos técnicos e a parte individual. Os próprios torcedores o veneravam. “Não sou o Pelé, mas eles me tratam como se eu fosse o Pelé dos treinadores. Não posso caminhar tranquilo pelas ruas, porque tenho que ficar atendendo a pedidos de autógrafos, abraços, fotos e tudo mais que nunca tive no Brasil”, diria, ao Jornal do Brasil.

Charge de Faria na imprensa marroquina

Pelas ligações do FAR Rabat e da seleção com a monarquia, José Faria tinha contato direto com o Rei Hassan II. O governante conversava com o técnico frequentemente, inclusive durante as partidas. Como ele explicaria à Placar: “Nos jogos importantes, ele manda instalar um telefone no banco de reservas onde vou ficar e se comunica comigo várias vezes, enquanto assiste ao jogo pela televisão. Ele dá sugestões para trocar jogadores. Mas nunca aceito, cada um na sua. Eu sempre o convenço de que suas sugestões podem não ser as melhores. Às vezes ele quer ver o time mais ofensivo, quando o momento é de recuar para jogar no contra-ataque. […] Sou o intermediário do rei para recados aos jogadores como: ‘Não se envolvam com política. Política é comigo, vocês jogam futebol'. Isso acontece quando a partida é contra outro país árabe. Geralmente eles têm lá suas diferenças. Eu o adoro. Aprecio sobretudo, sua inteligência. Ele fala vários idiomas e é muito amado pelo povo”.

O grande momento de José Faria à frente de Marrocos estava por vir. O treinador liderou sua geração dourada à Copa do Mundo de 1986, o primeiro Mundial do país em 16 anos. Foi uma campanha imponente nas Eliminatórias, em que os marroquinos passaram por Serra Leoa, Malaui, Egito e Líbia. Cada jogador recebeu US$10 mil de prêmio pela classificação. A imagem do brasileiro como um gigante dos Leões do Atlas já estava consolidada ali, e sem perder a humildade. “Eu não teria conseguido nem a centésima parte do que consegui se os jogadores marroquinos não fossem técnicos, habilidosos e disciplinados. A prova disso é que pertencem a clubes franceses, belgas, suíços e holandeses”, diria, ao Jornal dos Sports.

José Faria estava tão aclimatado a Marrocos que decidiu se converter ao islamismo. Quando treinava no Catar, as autoridades locais tentaram convencê-lo a se tornar muçulmano e até ofereceram dinheiro para isso. O técnico recusou e sua postura inclusive teria acelerado a demissão. Entretanto, sua percepção sobre a religião no Marrocos o fez se converter de coração, sem qualquer gratificação financeira. Como declarou, em 2000, ao jornal La Nouvelle Tribune:  “Marrocos é minha segunda pátria. Como você espera que eu não seja como os marroquinos? Minha escolha foi uma questão de convicção. Quando cheguei ao Marrocos, encontrei outra face do Islã: a da tolerância, da ajuda mútua e da compaixão pelos outros. Eu me encontrei nisso”. Era praticante e respeitava todas as tradições, enquanto rezava os versos em português. O segundo casamento no país, com uma marroquina, também auxiliou nesse processo.

José Faria então se tornou Mehdi Faria, cumprindo uma promessa de que se converteria com a classificação para a Copa do Mundo. Já dentro de campo, como definia a revista Placar, ele era o “interlocutor do futebol moderno no Marrocos”. Seu esquema tático variava do 4-3-3 para um 4-2-4 no momento ofensivo. Montou uma defesa bem protegida, mas com um jogo baseado na mobilidade e nas boas trocas de passes. Não se negava que existia uma inspiração brasileira no jeito como os Leões do Atlas se portavam.

Abdelkrim Merry usa a camisa do Brasil, junto de Zaki e Mehdi Faria

Já depois da Copa, Mehdi Faria afirmaria à Placar: “A tática depende do estilo do futebol no qual você trabalha, das características dos jogadores. Tomemos como exemplo as equipes europeias, que jogam como se fossem times de laboratório. Todos os dias elas treinam a mesma coisa, ou seja, se você acertar a marcação direitinho, elas nunca farão gols. Se houve um erro, elas vão, exploram e marcam. Já os times brasileiros são mais inventivos e o treinador deve utilizar um repertório mais variado, que se adapte melhor à capacidade criativa dos jogadores. Se fosse técnico do Brasil, montaria uma boa defesa e escalaria no ataque jogadores com boa capacidade de improvisação. Aliás, armei a seleção do Marrocos dentro de um estilo brasileiro”.

Mehdi Faria trouxe Marrocos inclusive para um período de treinamentos em Teresópolis, antes da Copa do Mundo. Os Leões do Atlas haviam participado da Copa Africana de Nações em março de 1986 e tiveram um desempenho digno, com a caminhada até as semifinais, eliminados pelo anfitrião Egito. Depois, seria o momento de se concentrarem no Mundial. “Esse resultado na Copa Africana não mudou em nada nossa confiança e ambição: vamos conseguir a classificação para a segunda fase da Copa do Mundo. Os adversários não conhecem o atual estágio do nosso futebol, esta é a vantagem”, avaliou Faria, à Placar, na época.

A comissão técnica de Marrocos contava com outros brasileiros. Heitor, filho do primeiro casamento de Mehdi Faria, era um dos auxiliares. Entretanto, o grande braço direito do técnico era Jorvan Vieira, 20 anos mais jovem. O futuro técnico do Iraque, campeão da Copa da Ásia de 2007, era um jovem profissional de 33 anos. Encarregava-se da preparação física e de outras tantas tarefas. Na visita ao Brasil, por exemplo, chegou a se encontrar com Zagallo e com o médico Lídio Toledo para saber os melhores caminhos para preparar os jogadores marroquinos à altitude mexicana – tendo em vista as experiências do Brasil na Copa de 1970. Além disso, fluente em Francês, Vieira também atuava como uma espécie de tradutor de Mehdi – que só arranhava o idioma.

Ao jornal O Globo, na época da Copa, Jorvan Vieira contava algumas anedotas de Mehdi Faria: “O mais incrível nele é sua forma de se comunicar com os jogadores e com as pessoas em geral, mesmo sem falar o idioma do interlocutor. Um dia, num bar, ele botou a língua para fora, pôs o dedo na ponta da língua e fez uma cara feia. Em seguida, fez o mesmo gesto e sorriu: o garçom trouxe o que ele queria, o açucareiro. Outra história dele é a da máquina fotográfica. Ele esqueceu a máquina e queria comprar um motor. Então, chegou para o vendedor e disse: ‘my camera', e começou a girar o dedo indicador no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, ao mesmo tempo em que falava ‘zipt, zipt, zipt'. Não é que o vendedor pegou exatamente o motor que cabia na máquina dele? No intervalo, por exemplo, ele chega para o jogador e diz: ‘Fulano, você zipt. Beltrano, você zumpt, zapt'. Tudo isso acompanhado de gestos. E todos entendem. É incrível, mas é verdade”.

Heitor, Mehdi e Jorvan

Mehdi Faria não falava apenas por palavras, afinal. Seus gestos também ficaram famosos. O treinador conseguiu estabelecer um clima positivo e familiar nos vestiários de Marrocos. E uma atitude às vésperas do Mundial marcou. Num treino pouco antes da Copa, o meio-campista Abdallah Haidamou fraturou a clavícula e não poderia mais ser convocado. Jogadores e familiares estavam reunidos no apartamento do atleta, quando Faria chegou e deu um fraterno abraço que emocionou a todos. “Além do fato de ser um técnico fora de série, ele tinha um grande coração. Não via a gente como jogadores, mas como filhos”, relembraria Haidamou, ao site Lions de Atlas, em 2013.

Na época, o Estado de S. Paulo assim avaliava o trabalho de Mehdi Faria: “Faria transformou jogadores amadores num time equilibrado e seguro, com muito do estilo brasileiro de futebol. Como no trabalho com juniores, Faria corrigiu os defeitos dos marroquinos, preservando suas características originais. Em várias entrevistas, ele já disse que os africanos têm um talento nato para o futebol e só é preciso ensiná-los como aproveitar melhor essa capacidade – como no treinamento das categorias inferiores. Futebol, acredita Faria, não se ensina”.

Antes da Copa do Mundo, Mehdi Faria pedia respeito a Marrocos. Acreditava que o time pudesse fazer uma campanha surpreendente, mesmo num grupo contra Polônia, Inglaterra e Portugal. “Nós talvez sejamos os primos pobres desse Mundial. A equipe tem dificuldade até mesmo para arranjar material e equipamento para treinar. De vez em quando, eu tenho que botar do meu para comprar chuteiras e camisas. Se o rei não confiasse em mim, é provável que hoje não estaria aqui. Mas, com os bons jogadores que escolhi e o futebol de toque bem brasileiro, que ensinei a eles, vocês vão ver que surpresas faremos”, falou ao Jornal dos Sports.

Além disso, Mehdi Faria via uma grande vantagem para Marrocos: o clima do México. Imaginava que seus jogadores se dariam bem melhor com o calor do verão mexicano do que os adversários europeus. Conforme apontou ao jornal O Globo: “Em Monterrey pelo menos não teremos problema de altitude, e a temperatura também não será um elemento estranho para nossos jogadores, que estão habituados ao calor e ao deserto. Poderemos criar alguns problemas aos favoritos do grupo e não excluo a possibilidade de surgir até alguma surpresa. Vamos esperar para ver”.

A formação de Marrocos em 1986

Marrocos, de qualquer forma, tinha uma equipe forte o suficiente. O goleiro Badou Zaki chegou ao México visto como o melhor do continente africano. Os meio-campista Aziz Bouderbala e Mustafa El Haddaoui atuavam na Suíça, enquanto o ataque reunia os irmãos Mustafa Merry e Abdelkrim Merry, ambos em atividade na França. Isso sem contar a base cedida pelo FAR Rabat, com cinco jogadores. O mais elogiado era Mohamed Timoumi, dono da camisa 10 e apelidado de ‘O Pequeno Pelé’. O meia-atacante jogaria tanto no México que Sócrates o classificaria como o melhor jogador do torneio após as primeiras rodadas.

Mehdi Faria ganhava a imprensa pelo carisma de suas entrevistas, que misturavam francês, espanhol e português. Melhor ainda quando o time surpreendia em campo. Marrocos estreou com um empate sem gols diante da Polônia, que tinha uma base experiente de outras Copas. Depois, o placar de 0 a 0 se tornou ainda mais badalado, quando os Leões do Atlas seguraram a Inglaterra. Era uma revanche pessoal de Mehdi, que não tinha gostado nada de ser ignorado por Bobby Robson ao tentar cumprimentar o técnico inglês no hotel, antes do duelo.

Marrocos chegou à rodada final com a chance de poder se classificar com um empate diante de Portugal. Mehdi Faria se abria à possibilidade de jogar com o regulamento, pela igualdade, mesmo que se irritasse com algumas acusações de ‘retranqueiro’ recebidas até então. “Falam que o Marrocos joga defensivamente. Mas meu time é o único no grupo, e talvez na Copa, que usa três atacantes. Os outros todos têm quatro ou cinco no meio de campo. A Dinamarca joga com um só no ataque e chamam meu time de defensivo. Os dois empates com Polônia e Inglaterra foram conseguidos em circunstâncias de jogo. Nós somos pequenos, eles são mais fortes. Que venham para cima de nós”, afirmou, ao jornal O Globo.

Marrocos já tinha demonstrado um bom toque de bola contra Polônia e Inglaterra, mas o gol não saiu. Pior para Portugal, que sofreu com a grande atuação dos Leões do Atlas. Os marroquinos venceram por 3 a 1, num jogo que parecia resolvido logo na primeira meia hora, com os dois primeiros tentos de Abderrazak Khairi, aposta de Mehdi Faria para aquela partida. Na segunda etapa, Abdelkrim Merry ampliou, antes que Diamantino descontasse apenas na reta final. Se o técnico lusitano José Torres havia negado a possibilidade de jogar pelo empate, Faria mexeu com o brio de seus jogadores diante das declarações do adversário que sentiu como menosprezo. Segundo o livro ‘Lembrar um Mundial para Esquecer', de Rui Miguel Tovar, o carioca teria falado aos jornalistas na saída para os vestiários: “Este treinador português é burro. Meteu-se com os meus meninos e se fodeu”.

Faria no banco de reservas

Aquela foi a primeira vitória de Marrocos na história dos Mundiais e, mais do que isso, a primeira vez que uma seleção africana avançava aos mata-matas. De quebra, os marroquinos ficavam na liderança do incensado grupo cheio de europeus. Um feito gigantesco, que ainda eliminou os portugueses. “Vão se passar muitas gerações até que um feito como esse seja igualado. Meu Deus, nós chegamos à frente de três potências europeias, times de tradição, incluindo aí os criadores do futebol. Já nos consideramos campeões do mundo”, diria Faria, à Placar.

Marrocos ficou em êxtase com a classificação. O Rei Hassan II ligou para a seleção e, segundo os relatos da época, ficou mais de uma hora no telefone para parabenizar todos. As palavras mais carinhosas foram dirigidas a Mehdi Faria: “Aqui no Marrocos eu sou o rei na política, mas o rei no futebol é você. Nossa missão está cumprida. O que vier daqui para diante será muita bondade de Alá”. O monarca ofereceu à delegação uma viagem com tudo pago para Nova York depois da Copa, como reconhecimento à façanha. Além disso, teve um gesto bastante gentil, ao bancar viagens para quatro jogadores que participaram do ciclo e não puderam ser convocados após se lesionarem, para que assistissem às oitavas de final in loco.

Apesar da liderança, Marrocos teria um adversário indigesto nas oitavas: a Alemanha Ocidental. Mehdi Faria mantinha os pés no chão, como diria a'O Globo: “Não me preocupo com o adversário, mesmo que fosse a Dinamarca, porque, uma vez superada a primeira fase, podemos ter a esperança de causar sensação também na segunda. A Alemanha não representa um temor especial, pois será mais um adversário com 11 jogadores em campo, como nós. Marrocos ganhou o respeito de todos e vamos redobrar nossos esforços para a glória do terceiro mundo”.

Também existia um carinho especial dos brasileiros com Mehdi Faria. Pelé chegou a visitar a concentração de Marrocos antes do jogo contra a Alemanha Ocidental. E, numa troca de figurinhas, Faria teve um encontro com Telê Santana. A Seleção enfrentaria a Polônia nas oitavas de final. Como adversário na fase de grupos, o treinador dos marroquinos levou uma série de anotações sobre os europeus, para que o comandante do Brasil se preparasse melhor ao desafio.

Mehdi Faria comemora em 1986

“Não tenho dúvidas em afirmar que, evidentemente, ainda não nos aproximamos dos brasileiros em habilidade, mas creio poder afirmar que nosso toque de bola já cria quase tantos problemas como o da seleção de Telê”, disse um confiante Mehdi Faria, ao jornal O Globo, antes do embate contra a Alemanha Ocidental. “Meu time está conseguindo impor um estilo de jogo parecido com o brasileiro. Estamos marcando bem no meio-campo e também estamos mostrando harmonia nesse setor. Isso é muito importante numa Copa do Mundo”.

A Alemanha Ocidental, de fato, se classificou. Mas só venceu por 1 a 0, com um gol no final do segundo tempo. Lothar Matthäus cobrou falta e o morrinho artilheiro venceu o goleiro Zaki, que vinha operando milagres naquela partida e terminou eleito um dos melhores da Copa. Depois da derrota, Mehdi Faria seria ovacionado na sala de imprensa para sua entrevista coletiva. Inclusive, os jornalistas o convidaram para dirigir o time da imprensa internacional numa pelada contra mexicanos: “Este é o reconhecimento do trabalho sério que fizemos. Ser convidado para dirigir um time de jornalistas para mim é excelente. Aceitei imediatamente, mesmo porque sempre recebi muita atenção de todos vocês”.

E a impressão geral era de que o México como um todo sentiria saudades de Marrocos, bem como de Faria. Assim escreveu a reportagem da revista Placar: “Os mexicanos também fizeram festa para a delegação de Marrocos. Os jogadores conquistaram a torcida dentro e fora de campo. Formavam a única das equipes sediadas em Monterrey a sair para compras. Beijavam as crianças, posavam para fotos, davam autógrafos e, ao contrário das outras, não reclamavam de nada. Foram tão simpáticos a ponto de receber convites para jantar em casas de famílias mexicanas. Quando embarcaram para Guadalajara, onde fizeram sua última partida da fase inicial da Copa, muita gente sentiu saudade e chorou, pensando que não voltariam mais. E o aeroporto ficou lotado para despedidas”.

A queda não atrapalhou o moral dos Leões do Atlas. Depois da viagem a Nova York, a delegação foi recebida com enorme festa no país. Os jogadores desfilaram em carro aberto, antes do encontro com o Rei Hassan II no palácio. O monarca ficou tão empolgado que, nos meses seguintes, Marrocos se candidataria como sede da Copa do Mundo de 1994 – a primeira de suas cinco tentativas de receber o torneio. Enquanto isso, Mehdi Faria recebeu propostas para trabalhar em outros países. Segundo relatos da época, até mesmo o Milan estava entre os interessados, num momento em que Silvio Berlusconi passava a investir pesado nos rossoneri.

O elenco de Marrocos

“Acho que vão guardar meu passaporte no Marrocos e só me deixarão sair para passear, com a promessa de voltar. Isso me alegra também”, brincaria Mehdi Faria, primeiro ao Jornal do Brasil e depois a'O Globo: “Eu me sinto consagrado como técnico de futebol, pois com um time quase que exclusivamente amador conseguimos nos classificar em primeiro lugar num grupo que tinha Inglaterra, Polônia e Portugal. Não estou pensando, no momento, em deixar Marrocos, embora tenha recebido propostas da Itália, do Japão e da Arábia Saudita. Acho que o Rei Hassan II não me deixará sair, pois ele está muito satisfeito com o trabalho que fizemos na seleção de Marrocos”.

O treinador ainda mantinha a confiança de que Marrocos seguiria mais forte no ciclo seguinte, como analisou ao Estadão: “Tenho certeza de que na Copa de 1990 conseguiremos chegar pelo menos nas quartas de final. A equipe terá maior experiência. Estou confiante porque tenho a base de uma boa equipe. Todos permanecerão e, na próxima Copa, a situação será outra. O mesmo grupo participará dos Jogos Olímpicos de Seul, da Copa Africana e das Eliminatórias. E tenho certeza de que o rendimento da equipe crescerá muito”.

Um momento especial para Mehdi Faria aconteceu em dezembro de 1986, quando se converteu oficialmente ao islamismo e participou de uma cerimônia religiosa. “Para corresponder à amizade do rei e do povo marroquino, mudei até de religião. Agora sou islâmico. Meu Deus é Alá. Na volta ao país vou oficializar isto numa bela cerimônia em que o rei faz questão de participar. Quem diria eu, o Faria de Bonsucesso, amigo de um rei de verdade…”, apontou o técnico, ao Jornal do Brasil. Naquele culto, Faria afirmou que a religiosidade dos jogadores foi uma das fontes de inspiração. Também declarou que estudou profundamente o Islã e que abriu seu coração à nova fé.

Depois da Copa do Mundo, Mehdi Faria permaneceu por mais dois anos à frente do FAR Rabat e da seleção de Marrocos. Pelo clube, o treinador emendou um tricampeonato consecutivo da Copa do Trono, o principal torneio de mata-matas do futebol local. Já pela seleção, sua despedida aconteceu na Copa Africana de Nações de 1988, quando os Leões do Atlas alcançaram de novo as semifinais e perderam para um forte time de Camarões.

Mehdi Faria ainda trabalhou como treinador nas categorias de base do FAR Rabat. Já outro momento significativo ocorreu à frente do modesto Olympique Khouribga, nos anos 1990. O técnico levou o time para a primeira divisão, foi vice-campeão da Copa do Trono e ainda conquistou a Recopa Árabe. Depois de se afastar do futebol, ainda era visto com certa frequência nas arquibancadas em jogos do Campeonato Marroquino.

Mehdi Faria com familiares, ex-jogadores e Fernando Hierro na homenagem de 2013

Apesar da vida construída no Marrocos, Mehdi Faria preferiu não se naturalizar. Segundo a imprensa local, caso contrário, ele perderia direito à sua aposentadoria como funcionário da Petrobrás – um dinheiro importante depois que deixou de trabalhar com o futebol. Chegou a voltar para o Brasil após se divorciar de sua segunda esposa, com quem teve dois filhos, mas seu desejo era passar os últimos dias no país que tanto lhe ofereceu. Teria um apartamento na cidade de Kenitra, alugado pelas próprias instituições esportivas marroquinas, onde recebia visitas de seus antigos atletas. Mais importante, seria homenageado em vida. Em 5 de outubro de 2013, aos 80 anos, o velho Mago recebeu condecorações e aplausos antes de uma partida em Tanger, entre veteranos dos Leões do Atlas e do Real Madrid. Somente três dias depois, após longa doença, o treinador faleceu.

A família real de Marrocos prestou condolências à família de Mehdi Faria, através de uma nota oficial: “Relembramos as qualidades humanas do falecido técnico e seu amor por Marrocos, país que escolheu para viver, elogiando seu orgulho e abnegação pela seleção marroquina ao longo de sua carreira, bem como seu sucesso em elevar o nível do futebol marroquino e conquistar feitos, nacionais e internacionais, que serão lembrados para sempre pelos torcedores”.

Ainda assim, as palavras que mais ecoavam eram dos próprios jogadores, tão gratos a tudo o que Mehdi Faria construiu. Um sentimento resumido por Abdelmalek El Aziz, antigo atleta que depois virou técnico, ao jornal Les Temps: “Faria foi um professor, um esportista e um psicólogo. Eu perdi em Faria um irmão e um grande amigo. Devo muito a Faria, como técnico e como mestre. Ele me apoiou fortemente em várias ocasiões e me deu conselhos valiosos. Não só a mim, mas a tantos jogadores”. Ensinamentos que, 36 anos depois, parecem ecoar em uma nova Copa do Mundo.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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