Tricolor no divã: os teus fracassos vêm do passado

Por Rodrigo Figueiredo Mello
Organizando meus arquivos, encontrei cópia de um ensaio de Nuno Ramos para o Estadão, de 3 de setembro de 2006. O ensaio, intitulado “Lá está ele, trágico como a vida, rugindo como o mar: o futebol”, ainda repercutia a derrota da seleção brasileira para a França, em junho daquele ano, e a perda de uma das Copas “mais ganhas” entre todas as que disputamos – até os mais ponderados, como Tostão, se entusiasmaram antecipadamente com o elenco que veio a fracassar na Alemanha.
Em seu ensaio, Nuno Ramos relembra o elemento trágico do futebol:
“A vitória/derrota divide sua herança em herdeiros do placar (os vitoriosos), para quem o sentido trágico é aquietado, ou herdeiros das jogadas (os derrotados), para quem as chances perdidas ou os erros do juiz se agigantam. Para estes (e é entre eles que ainda hoje me incluo) o futebol revela os seus aspectos verdadeiramente trágicos, e talvez o célebre lugar-comum que fala de aprender com as derrotas possa assim ganhar um sentido mais interessante (…) a distância entre a quantificação do placar e o significado do jogo só pode ser vencida pela circunstância, pelo detalhe, pela ponta do dedo do goleiro, pelo milímetro que separa a curva da trave da curva da bola, por uma desatenção fatal, pela contusão do titular no treino da véspera, em suma: por uma minúcia decisiva, que faz o jogo parecer trágico. É sempre um detalhe que leva a culpa pelo placar (Roberto Carlos arrumando a meia, por exemplo); sempre parece que poderia ter sido diferente; sempre acaso, nunca necessidade. No entanto, o placar sobreviverá, enorme, no alto, iluminado, pairando sobre a cabeça dos torcedores. Ele é que ficará, não aquelas inúmeras chances de gol ou erros de arbitragem que, para sofrimento de quem torce, serão esquecidos”.
No final do primeiro turno do Brasileiro de 2020, Paulo Vinícius Coelho decretou: se o São Paulo não vencer o Atlético Goianiense, Diniz cairá. Vencemos por 3×0 e ali começou uma escalada que não víamos há muito tempo. Nos grupos de WhatsApp de tricolores, escrevi e li frases como “o Brenner está on fire como não víamos desde a primeira passagem do Luís Fabiano”; “estamos jogando o fino e acabou essa fase de insegurança…”; “sou mais Diniz que Renato Gaúcho”.
Porém (ah, porém), o futebol, como a vida, é marcado por acidentes de percurso que parecem criar uma linha do tempo paralela. Não nos reconhecemos nela. De onde vínhamos, como pudemos vir parar aqui? Para um são-paulino, disputar a última rodada contra o Flamengo sem chances de título, e ver nosso maior ídolo deste século ganhar o campeonato por um rival, em pleno Morumbi, foi como acompanhar Marty McFly voltando a 1985 em De Volta para o Futuro 2, e encontrando Hill Valley decadente e destruída, com Biff Tannen na prefeitura. Qual foi o desvio no tempo que nos trouxe a essa realidade distópica em que perdemos até para o rebaixado Botafogo, depois de termos alcançado a liderança e lá permanecido por algum tempo, jogando um futebol convincente? No filme, o desvio acontece quando o Biff do futuro volta ao passado e entrega o Almanaque ao Biff jovem, e assim o vilão se torna rico e poderoso num futuro alternativo. Na realidade são-paulina, quando teria acontecido esse desvio?
Proponho que façamos esse exercício. Defendo aqui duas teses, de que tratarei em conjunto: 1) só voltaremos a nos encontrar conosco, a nos reconhecer no espelho, se percorrermos esse doloroso caminho existencial de encarar nossos erros fundamentais; 2) os erros de 2020/2021 são mais visíveis porque recentes, na miopia do torcedor amassado por mais uma frustração, mas eles só foram decisivos para nosso destino porque ainda não encaramos as questões mais importantes, aquelas que são estruturais, identitárias. Não podemos começar mais uma nova temporada e repetir neuroticamente o que fizemos na última década. Aquilo que não se recorda e não se elabora acaba sendo repetido, diria a psicanálise.
Há um inevitável mergulho mais curto, na própria temporada de 2020. E se Brenner e Luciano tivessem feito os gols que perderam na Arena do Grêmio, no jogo de ida da Copa do Brasil? E se Luciano não tivesse se machucado naquela fatídica derrota contra o Corinthians em Itaquera (escrevi no grupo de WhatsApp nessa ocasião, no momento da contusão de Luciano: “esse estádio é um cemitério. Nenhuma contusão há meses. Nosso melhor jogador se machuca justo ali. Não é coincidência”). E se as eleições não tivessem, pelo inédito atraso no calendário, invadido o campeonato, trazendo o narcisismo voluntarioso do novo presidente para dentro do vestiário no pior momento? E se Diniz tivesse trancado o time quando a confiança foi abalada, para garantir um empate copero contra o Inter, ao invés de escolher um all-in naquele jogo? São muitos os momentos-chave que contribuíram para que tomássemos o caminho paralelo, sufocante, da derrota. Cada torcedor terá o seu momento, cada um se apropria da metáfora de “Match Point”, de Woody Allen, à sua maneira. Creio, no entanto, que a questão exige análise mais profunda. É preciso que nos deitemos no divã.
O desvio, proponho eu, aconteceu na era da Soberania. Seria preciso que Juvenal Juvêncio ou Marco Aurélio Cunha fossem especialistas em mitologia grega para saberem que a soberba – a húbris grega – provoca a ira dos deuses? E que a punição é o envio, pelos deuses, de um castigo – a nêmesis – que devolve o transgressor violentamente à sua condição humana? O avassalador quadriênio de 2005/2008 nos deixou soberbos. Arrogantes, espaçosos, invencíveis. Autossuficientes. Lembro da demissão de Muricy no primeiro semestre de 2009, em seguida à eliminação na Libertadores contra o Cruzeiro. Muricy nos levou ao tricampeonato brasileiro – um tri inédito na história do clube, diga-se – e o mandamos embora. Ouvi de um diretor: “o São Paulo é campeão brasileiro apesar do Muricy”. Não pudemos suportar o fato de que a realidade (as eliminações de Muricy na Libertadores) se impunha à fantasiosa ideia de soberania. Tínhamos três títulos continentais à época. O Santos, dois, bem antigos. O Palmeiras, um. O Corinthians, nenhum. Um torneio dificílimo, cheio de armadilhas, e mesmo assim mandamos embora um tricampeão brasileiro, talvez o mais são-paulino de todos os treinadores que já tivemos, porque não pudemos suportar um arranhão na imagem da soberania. Não se manda embora um tricampeão brasileiro impunemente.
Há detalhes, há detalhes. Disputamos o ano do tricampeonato vendo nosso maior rival disputar a Série B. E rimos, tripudiamos, apontamos o dedo e dissemos que éramos os maiorais e que eles estavam acabados. Enquanto nos sentíamos soberanos e demitíamos Muricy, nosso maior rival experimentava sua ressureição. Alguém se lembra do gol de Ronaldo Fenômeno no Morumbi, na semifinal do Paulista de 2009? É coincidência que a maior década da história rival pareça ter começado ali? Os deuses do futebol não poderiam ter sido mais sádicos e mandado castigo maior que esse. Nossa nêmesis sempre foi o SCCP, aquele que não deve ser nomeado.
Depois de experimentar a ira divina, não ganhamos mais nada – Lucas não merece que eu diga isso, mas a verdade é que não contamos aquela Sul-Americana em nossa aritmética pessoal, só a usamos para diminuir o tamanho da fila aos olhos rivais. Ela seria muito importante, retrospectivamente, se tivesse reaberto a trilha das vitórias, mas não foi isso que aconteceu. Assim, 2008-2021 já é do tamanho de 1957-1970, com a diferença de que no primeiro hiato ganhamos um estádio, e no segundo foram nossos rivais que ganharam.
Juvenal Juvêncio quebrou as regras do jogo para ser o Grande Pai – acabou se tornando apenas um previsível caudilho, e ainda fez o desfavor de nos deixar como legado Carlos Miguel Aidar, uma espécie de Nicolás Maduro tricolor. O rastro de destruição até hoje aparece no balanço patrimonial do clube. A penúria econômica e o corrosivo recalque são a base sobre a qual um treinador e seu elenco terão de construir um time vencedor. Há um Everest para se escalar, mais alto que o de 2005. E hoje estamos dentro de um Grand Canyon, de profundezas existenciais colossais. Sem o par “inferno-redenção” que uma Série B pode proporcionar a um grande clube, o São Paulo se perdeu na própria falsa ideia de superioridade. Um decênio depois, está menor. Precisará da Série B?

E é aí que os desvios do campeonato de 2020/2021 se encontram com o desvio histórico e fundamental de 2009. A derrota para o Corinthians em Itaquera e a arapuca de Renato Gaúcho e Diego Souza na Arena desmontaram nossa confiança, e então fomos ladeira abaixo. Não conseguíamos mais trocar dois passes. Volpi entregando o ouro, Sara com medo de arriscar, Reinaldo nervoso, Brenner encabulado. No vestiário, o ser humano decente que é Diniz descarrega no tímido Tchê Tchê toda a pressão que recebe, de modo um tanto covarde, como um pai sufocado pelos boletos e por um chefe sádico pode fazer com um filho ao chegar em casa.
Quando foi que Diniz virou um monstro? Ou é o caso de uma instituição doente, que extrai o pior de cada um? Fila é um negócio complicado, é difícil se levantar de um tropeço, a confiança de repente vira desconfiança e quase não há nada a se fazer. Ainda tivemos aquele soluço que foi a goleada sobre o Atlético Mineiro – a expressão de Igor Gomes no primeiro gol entrega tudo: havíamos sentido o gosto do desastre, e naquela noite o afastávamos momentaneamente, o berro ensandecido de Igor nos dizia. Dali em diante a tragédia foi o tom. E o pior de tudo: intuímos que isso ia acontecer. Aquela saída de bola na defesa? Uma hora vai parar de funcionar… Exigíamos do time que aproveitasse aquele embalo de novembro e ganhasse todos os jogos, para criar a maior gordura de todos os tempos, suficiente para nos proteger das derrotas que, sabíamos, iriam acontecer. Sabíamos? Sabíamos. São muitos anos de frustração. Só os torcedores de ocasião ousavam cometer a heresia de dizer “segue o líder”.
Keep calm and carry on, tricolores. Não podemos nos esquecer de que já queimamos alguns ídolos nesses últimos ansiosos anos. Queimamos Raí, meu maior ídolo depois de Careca, o único dirigente de clube brasileiro que teve a decência de criticar a gestão presidencial da pandemia. Queimamos Rogério Ceni no comando do time. Vimos Rodrigo Caio, Maicon, Diego Souza, Cortez, Jadson e até Paulo Miranda ganharem títulos por outras equipes. A cada derrota, a torcida grita “manda todo mundo embora”, apedreja ônibus, cobra a cabeça do treinador. A imprensa preguiçosa entra nesse discurso. E as diretorias, não suportando a pressão, apertam o reset a cada seis, doze meses.
Protejamos o elenco, protejamos Muricy, na fé de que se a realidade paralela começou com sua demissão, é no seu retorno que voltaremos a nos encontrar. Não precisamos de um Zé Roberto dizendo no vestiário que o São Paulo é grande. Precisamos é dizer isso a nós mesmos. Que 2020 tenha sido nosso novo 2004, até para que possamos nos lembrar das partidas contra o Flamengo como lembramos daquela contra o Rosário Central: vitórias que não nos levaram a títulos, mas que nos fizeram voltar a acreditar no Clube da Fé. Saudações tricolores.
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Rodrigo Figueiredo Mello, 44, é psicólogo e são-paulino. O texto foi construído a partir de incontáveis conversas, desabafos e dores ao longo da última década, sofrimento vivido em quarteto (como sempre foi com as alegrias), com o pai, Roberto, e os irmãos, Fernando e Felipe.
*Este texto não representa necessariamente a opinião da Trivela