Paulo Junior: Brasil, ‘mais arte que ciência’, empolga na sutileza das intenções
Na estreia à frente da Seleção, Fernando Diniz reafirmou sua aposta de ver mais arte que ciência no futebol

O novo técnico da seleção brasileira, de contrato mínimo mas negado à alcunha de interino diante duma projeção incerta da CBF, falou depois da goleada em sua estreia, 5 a 1 ao natural e obrigatório contra a vice-lanterna da última edição das eliminatórias, que o futebol, tal qual a vida, é mais arte que ciência, redobrando a aposta que marca sua carreira tanto quanto os times em campo, firmando no discurso e nas palavras a construção da imagem sobre o jogo.
Elaborar o significado no entorno da bola também importa. Está no pacote da vitória sobre a Bolívia o encanto do elenco em relação ao carinho visceral recebido dos paraenses em Belém, assim como as entrevistas de Danilo e Casemiro, estruturas fundamentais do jogo de posicionamento mais rígido de Tite e que, uma década de Europa depois, se viram provocados à mudança. Está também um tuíte de Neymar, há um ano, em que escreve que gosta muito de Diniz como treinador, e que agora tem o comandante lhe oferecendo os maiores superlativos num momento de justo questionamento da sequência de sua carreira como jogador.
Há uma certa emoção no ar, ainda que terá razão o torcedor mais aterrizado ao dizer que era só um jogo em casa contra a pior defesa do continente, que também levou cinco nos caminhos às Copas da Rússia e do Catar. Mas há, apenas na sutileza das intenções de uma primeira partida acessível, lampejos de um time que renova a autoestima e apresenta novas soluções em relação às vistas principalmente no último ciclo, quando de um certo endurecimento do modelo que deu num jogo previsível e frustrante contra a Croácia, terminado em eliminação precoce no Mundial.
Primeiro a aproximação típica dos times de Diniz, que surgiu logo na posse inicial do jogo, quando Neymar dominou no centro do campo e viu Rodrigo cruzando da esquerda para receber como um ponta que não só tem a liberdade de variar a posição como é obrigado a fazê-lo. Outra evidência é um maior protagonismo dos defensores na criação, com laterais que não se resumem a fazer a bola girar até o ponta, e zagueiros que podem (ou melhor, devem) construir para valer, dando o tapa na frente e avançando até o ataque se surgir o espaço à frente.
Curioso inclusive para ver o novo momento de Casemiro, pouco influente no jogo da seleção com a bola ao longo dos últimos tempos ainda que primeiro homem de meio-campo da maior prateleira do mundo, simplesmente ícone no Real Madrid e referência no Manchester United. “Porque ele tem muito jogo que às vezes fica numa situação de mais proteção e não aparece tanto”, disse o próprio Diniz após a partida, provocando seu camisa 5 a jogar mais com a bola e, quem sabe, reencontrar lampejos ofensivos de seu início de carreira. Bruno Guimarães, de 8, dá essa mobilidade que o treinador também deseja.

Voltando a Neymar, parece importante firmá-lo como jogador livre para criar do jeito e por onde o jogo permitir. Ele ainda é o mais capaz para dar ritmo às escolhas, entre as tabelas curtas e o controle para enfiar a bola mais precisa, e segue com o gesto técnico mais apurado do elenco, desde julho de 2010. Vale lembrar que a seleção viajou à última Copa do Mundo ainda buscando sua formação ideal. Fez amistosos com Vinicius Jr. no banco, e Neymar se alternando com Paquetá pela esquerda, e depois teve o próprio camisa 10 na frente, sem centroavante de ofício, ao lado de Vini e Raphinha. Na última partida antes do Mundial, Tite foi sem ponta-esquerda aberto, e só se decidiu para a estreia. Os pontas no Catar, aliás, exclusivamente grudados à linha lateral, pareciam sempre muito distantes de Neymar. Diniz dá fim nessa discussão clareando que a ideia é seu principal jogador circulando por todo o campo, e o entorno que trate de se aproximar.
É claro que isso pode ter variações de acordo com a necessidade e as peças. A seleção não deve empilhar atacantes numa linha ofensiva esperando a bola girar feito o handebol posicional atual, mas também usou Raphinha dando largura para abrir a linha boliviana no Mangueirão. A diferença é que a posse não está voltada para encontrar o ponta no mano a mano enquanto o time torce e aguarda por um drible, e sim há uma expectativa maior de que o lateral e o volante se juntem, estejam por perto. A tabela do primeiro gol com Danilo mostrou isso – é outro coadjuvante de Tite que pode, e deve, finalmente, mostrar mais jogo a partir de agora.
Uma questão é o comando de ataque. Richarlison é um degrau abaixo que seus colegas tecnicamente, e não dá essa combinação toda, esse apoio nas tabelas e soluções de uma equipe que se projeta mais móvel e insinuante, menos encaixada peça a peça com os defensores. Com Tite, muitas vezes empurrou para dentro nesse amasso posicionado, mas com Diniz, que tratou de dar uma justa moral ao jogador que saiu abalado por perder uma chance clara, o lugar parece em disputa. O Brasil não tem um camisa 9, típico e craque, que senta na mesma mesa de Vini, Rodrygo e Neymar. Ainda acho que Gabriel Jesus é o mais capaz de acompanhá-los. Difícil entender por que não ter Vitor Roque.
A tendência do Brasil é melhorar, já que suas grandes ideias foram apenas pequenos desejos, possibilidades num cenário favorável, abraçado por Belém contra uma seleção que engrossa muito pouco nas suas visitas ao vizinho, mesmo com a atuação notável de seu goleiro no primeiro tempo. Mas o técnico da seleção tem direito ao sonho, os jogadores ao sorriso, assim como a racionalidade pode encarar a goleada como mero protocolo. Terça é no Nacional de Lima, em outubro no Centenário de Montevidéu, em novembro contra os campeões do mundo… Em julho de 2026, contra um europeu qualquer, valendo a semifinal em alguma cidade dos Estados Unidos. A seleção, no fim das contas: poucos jogos para muita imaginação e frustração. Um símbolo muito grande que não se basta por intervalos de 90 minutos aqui e ali.
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Neymar é um craque, o maior desta camisa em seu tempo e sem concorrência, mas Pelé fez 95 gols pela seleção. O jogador do Al Hilal tem 79. Vai passar o Rei como artilheiro máximo, não é preciso que essa institucionalidade frouxa e superficial rasgue a história nem crie hierarquias sobre a memória. Bonito o soco no ar, tanto como lindos os 95, não só os 77, gols do Maior de Todos.
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Ana Moser, mulher séria na valorização do esporte como protagonista da formação educacional e social do país, não resistiu à rotatividade dos afagos inerentes à ideia de governo, tão efêmeros e oportunistas quanto a escolha de um técnico de Brasileirão. Faz parte do jogo, mas Ana era, e segue sendo, a utopia, não o rame-rame de Brasília. Respeito. Temos o direito de inventar, enxergar longe, apesar dessa pressão por uma vida de baixas expectativas.