Brasil

Memphis, Coutinho, Brasil e as coisas boas da vida

'Se fosse bom estava na Europa', mas e quem nunca foi? Precisa?

Está mudando aquela impressão sobre a carreira dos jogadores sul-americanos baseada apenas em suas prateleiras europeias, final e tardiamente, com um pouco de mérito do futebol local, mais ajeitado que dez, quinze anos atrás, e também um tanto de desgaste de uma suposta superioridade dos campos do continente mais rico, melhor em dinheiro, óbvio, mas não automaticamente mais brilhante em termos esportivos, valendo uma lupa caso a caso, história a história.

Gabriel Barbosa talvez seja um ponto de ruptura importante, menos por escolhas planejadas – conta a história que ele não teve a mínima paciência em construir sua carreira em Milão ou Lisboa, sem tempo, irmão, para ser reserva depois de artilheiro no Santos -, mais pela urgência de acontecer logo, o bastante para se tornar um dos maiores ídolos da história do clube mais popular de seu país.

O ônus, ser um fracasso na Europa ou uma perda de tempo na Internazionale, compensa para quem sentou na mesma mesa de Zico e virou o encanto de crianças de uma nação. Não há absolutamente nenhuma dúvida de que valeu a pena voltar para viver coisas muito provavelmente impossíveis de alcançar por lá.

Então nos resta o debate eterno, porque de certa forma, sim, se fosse bom mesmo estava na Europa, claro, o Vini Junior não tem porque vir jogar o Campeonato Carioca agora; mas, também… Dane-se a Europa? Justo. O futebol é de todos e de tantos jeitos, então por que tamanha hierarquia se, no fim das contas, ficarão a idolatria, os domingos para sempre, a emoção?

Pensemos em Gabriel Jesus: é melhor ser respeitado e valorizado em Manchester City e Arsenal ou um dos cinco maiores nomes que já vestiram Flamengo? É uma boa conversa, e se caprichar dá para fazer os dois. Uns vão perceber um dia que gostariam de ter feito mais por lá, enquanto outros podem sentir que deveriam ter estado mais aqui com os seus.

Luiz Henrique pode ser que alcance os maiores jogos do mundo, mas talvez o torneio de sua vida seja esta Libertadores pelo Botafogo. Filipe Luís que o diga, com o semestre que lhe eterniza reservado para o Rio de Janeiro, e tantos outros.

É complexo e, mais que isso, é bagunçado. Alex, que virou ídolo de Palmeiras e Cruzeiro antes de ser deus em Istambul, bateu na Itália, no Flamengo, queria ir para a Espanha… Aos trancos e barrancos, calhou numa carreira maravilhosa e cheia de vínculos, mais redonda do que se desenhava.

Philippe Coutinho Coutinho marcou o gol de empate do Vasco diante do Flamengo (foto: Maga Jr/Agência F8/Gazeta Press)

Coutinho, o meia-atacante brasileiro dessa geração mais brilhante na elite para além de Neymar, tocou de cabeça para empatar um Vasco x Flamengo no fim e aí, amigo, quem fez um gol num interclasses que seja já tem ideia: a vista embaça, o chão não alcança os pés, o coração dispara e a expressão perdida rumo à arquibancada vem junto da fita da vida rebobinando na cabeça, um lapso que faz voar ao mesmo tempo que aterra num instante presente e total.

O melhor lugar para ele estar, Liverpool, Barcelona e sei lá mais onde depois, era aquele pedacinho de Maracanã, sem concorrência. São só 32 anos. Felipe Melo voltou mais tarde e teve tempo de três Copas Libertadores, em busca da quarta. Olha o tamanho de Hulk, quem apostaria, em Belo Horizonte, depois de ensaiar um esquecimento na China. Arrascaeta e Veiga nunca foram… Faz falta?

A chegada de Memphis é um barato, e não é fácil ser repórter no Brasil, porque se misturam muitas camadas enquanto se acumulam apaixonados numa madrugada de aeroporto de Guarulhos. É preciso falar de valores, dívidas, momento político do clube, situação do time, custo-benefício e risco de uma contratação, claro.

É também fundamental, parte fundadora do porquê de seguir futebol, se permitir o encanto de ver um holandês de Copa, Euro e time grande vir jogar em Itaquera, se dizendo chamado pela sensibilidade de que aqui seria feliz, tiraria uma onda, valeria a experiência. Uma grande atração nas palavras, na clara ideia que tem sobre as representações do futebol e, tudo indica, no campo.

Caro é jogador ruim com salário de clube gigante de Série A. E a vida é muito curta para recusar a ideia de jogar no Corinthians.

Esse papo não termina porque é baseada apenas numa subjetividade que resta a nós, conversadores de futebol. Tem aquela ideia famosa de que um jogo nunca acaba enquanto segue sendo debatido nas mesas redondas e colunas de jornal, e por esses dias tanto Coutinho quanto Memphis seguiram bagunçando um pouquinho algumas convicções de véspera, convenções estruturais que, no íntimo, nos contam muito pouco.

As coisas boas da vida estão à prova de certezas genéricas, mais ou menos num abraço dum torcedor fissurado por sua camisa, num gol de clássico improvável dum time que se recusa a topar o placar e convida seu filho ilustre a, enfim, celebrá-lo.

O resto fica para os almanaques, as playlists de YouTube, o que vamos contar daqui a duas décadas. Hoje também vale.

Foto de Paulo Junior

Paulo JuniorColaborador

Paulo Junior é jornalista e documentarista, nascido em São Bernardo do Campo (SP) em 1988. Tem trabalhos publicados em diversas redações brasileiras – ESPN, BBC, Central3, CNN, Goal, UOL –, e colabora com a Trivela, em texto ou no podcast, desde 2015. Nas redes sociais: @paulo__junior__.
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