Brasil

Mário Jorge Lobo Zagallo, contraditória personificação do pachequismo, deixa amarelinha vazia

Velho Lobo nos deixou na última sexta-feira, aos 92 anos

A eliminação na Copa do Mundo de 1966 bateu mal no país do futebol. Na esteira da derrota dos bicampeões para o que se resumiu como futebol-força na Inglaterra, Mário Jorge Lobo Zagallo, jovem técnico do Botafogo que venceu os estaduais de 1967 e 1968, era um entusiasta do fim da era dos atletas não formados num rígido processo das categorias de base, em movimento de maior valorização da preparação física e da disciplina como necessidades primeiras para lapidar o jogador brasileiro moderno.

Gérson, na flor da idade, era a grande figura daquele elenco; Afonsinho, revelação dos juvenis, representava a nova geração. E o novo momento do jogo encontrou vazão no esquema tático do onze inicial: não cabiam dois armadores na ideia do treinador, e o jovem talentoso acabava renegado ao banco de reservas sem poder atuar ao lado do craque do time. Afonsinho queria jogar. Até teve seus momentos, mas, de personalidade forte e comprando brigas inclusive fora de campo, passou a viver em conflito com a diretoria e o técnico. Acabou emprestado ao Olaria e, pior, quando voltou com a barba preenchendo o rosto, foi repreendido pelos comandantes.

Zagallo, o homem que estreou em Copas do Mundo como soldado da polícia do Exército trabalhando no Maracanã no maior trauma do país, em 1950, não bancou Afonsinho, preferindo tratá-lo como rebelde, não craque. Meses depois, outro desobediente, João Saldanha, não fora amparado por seus superiores, e demitido da seleção brasileira deixou espaço para o Velho Lobo assumir o time à beira do Mundial. Acomodou o talento com rara capacidade de leitura de jogo e ganhou de todo mundo, goleando a Itália na final e celebrando Pelé, que andava sob dúvidas para o antecessor.

Mário Jorge Lobo Zagallo iniciava e firmava ali, tricampeão do mundo, seu lugar de maior personificação do pachequismo, termo cunhado só anos mais tarde, mas que já parecia ter nascido para o alagoano criado no Rio de Janeiro décadas antes. A alcunha que representa o encanto fervoroso, cego e irredutível em relação ao time nacional cabia muito bem para esse apaixonado em exagero pelo futebol brasileiro, uma exaltação que misturava um interesse genuíno pelo jogo com um certo conservadorismo disciplinador. Um fio da navalha entre a autoconfiança necessária aos grandes vencedores e algo que pode soar como a soberba míope que precede os tombos, mas que agora, mesmo com toda essa contradição, deixa a amarelinha carente de seu mais fiel defensor, morto aos 92 anos nesse início de 2024.

Aquele time de 1970 deixou o Azteca, 4 a 1 fechado com um gol de pé em pé direto para as redes da história, como sua mais notável elaboração, cravando algumas das características que podem ser tratadas como pontos de uma possível tradição futebolística brasileira. Para ter os melhores juntos, ele topou ter dois meias-armadores, Gérson e Rivellino, este último deslocado à ponta-esquerda, e três pontas-de-lança, Pelé, Jairzinho e Tostão, o terceiro fazendo às vezes de centroavante. Próximos e solidários, eles se potencializaram e se combinaram com as subidas do volante e dos defensores pelos lados – mais uma regrinha brasileiríssima, quando um lateral sobe, o outro segura e fecha com os zagueiros.

Zagallo vira referência

Desde então, virou a grande influência do orgulho local diante dos rivais da bola mundo afora. Juntou numa só figura o ponta-esquerda que deu seu jeito de ser bicampeão mundial como titular absoluto do time mesmo sem ser necessariamente o mais talentoso de sua geração, mas com muita capacidade de entender o campo e servir aos craques ao seu redor (de novo, o talento: o Zagallo de 1958, a “Formiguinha”, é o atacante que recompõe para ajudar e ser o coadjuvante ideal de Didi e Zito, no meio, de Pelé, Vavá e Garrincha, na frente); o treinador que refinou e deu o equilíbrio ideal às feras do Saldanha em 1970, conseguindo de alguma forma encontrar o ponto entre a liderança autoritária típica daqueles tempos e a liberdade de pensamento e decisão de seus craques; e, por fim, o torcedor maior, a própria euforia ufanista e emocionada de todo um país sobre e diante do futebol produzido e jogado por aqui, aquele que é o melhor por si só, e ponto.

É claro que nem sempre essa onipresença fez sentido, e muitas vezes Zagallo foi uma figura confiante que beirou apenas o pitoresco, pura imagem nostálgica diante de um mundo (e um futebol) em transformação. Em 1974, tomou um choque de realidade ao, mesmo com uma geração qualificada, entregar uma Copa sem brilho no pós-Pelé, inclusive subestimando e ironizando a Holanda, grande time do momento e que venceu o Brasil na semifinal. Em 1998, alçado a técnico depois de ganhar o tetra como coordenador, já chamava mais atenção pelas bravatas que pelas ideias do time, ainda que os resultados tenham aparecido principalmente no ano anterior, na genialidade da dupla Ronaldo e Romário.

Em seu último ato, em 2006, fazia parte da comissão técnica que foi cúmplice de uma preparação midiática e pouco produtiva com um elenco fora das condições adequadas, numa delegação que viveu dias mais de peça de propaganda que de time de futebol: na primeira entrevista coletiva na famigerada Weggis, na Suíça, aquela das rodas de bobinho para milhares de turistas, o homem de confiança de Parreira mostrou uma estátua de Santo Antônio e destacou que o Brasil iria estrear na Copa logo num dia 13, seu número cabalístico. O time não jogou nada.

Mas não deixa de ser curioso que as lembranças das hipérboles de Zagallo venham nessa circunstância de uma seleção brasileira atualmente tão vazia. O Brasil perdeu a Copa do Mundo com o técnico já avisando que sairia; colocou lá o do time de novos, convocando às pressas no meio de um torneio sub-20; disse ter um acerto de boca com um figurão, e chamou o treinador do Fluminense para um ano interino; o presidente da CBF caiu, o gringo ficou mesmo no Real Madrid, o presidente da CBF voltou, e demitiu o interino. Não tem diretor, não tem cara, não tem ninguém nem para fingir dizer se o time vai para cima ou na retranca, se quer alguma coisa da vida, se ao menos está repensando as coisas em casa. O camisa 10 está machucado (de novo), os jovens ainda não estão maduros, os mais velhos não são lá aquela liderança toda, os laterais poderíamos dizer que mal seriam reconhecidos na rua. O time tomou quatro de Senegal, perdeu para Colômbia, Uruguai, Argentina, e se duvidar muito ninguém sabe onde está a chave da gaveta dos coletes.

Passada a derrota por 7 a 1 há uma década, muito se falou que o Brasil tinha de cair na real, deixar uma suposta arrogância para lá, esquecer a barriga cheia das cinco Copas do Mundo na estante. A crítica convocou o futebol nacional para um banho de humildade, quase uma lavagem de livramento dessa coisa que tinha em Zagallo seu maior expoente, o ato de tratar e jogar a bola como os maiores. Não ganhamos nada com isso, e restamos nem com a autoestima do peito estufado, nem com um time que consiga responder nos grandes momentos, numa mediocridade cinza, um meio de tabela insosso e desinteressante.

No fim, Mário Jorge Lobo Zagallo, essa contraditória personificação que encarnou o pachequismo, morreu no momento menos Zagallo da camisa que ele mais amou e projetou. Renegamos seus exageros, muitas vezes contraproducentes, é verdade, mas hoje nos despedimos sem caminho na esquina. Nunca estivemos tão distantes de sermos o que ele dormia imaginando em suas epifanias de treze letras. Ao menos deveríamos pensar em como a camisa amarela em que ele via tudo deu para virar esse eco de sala vazia.

Foto de Paulo Junior

Paulo JuniorColaborador

Paulo Junior é jornalista e documentarista, nascido em São Bernardo do Campo (SP) em 1988. Tem trabalhos publicados em diversas redações brasileiras – ESPN, BBC, Central3, CNN, Goal, UOL –, e colabora com a Trivela, em texto ou no podcast, desde 2015. Nas redes sociais: @paulo__junior__.
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