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Há 40 anos, o Deus da Raça provocava o big bang rubro-negro: Rondinelli e o gol que tudo mudou no Fla

Para muitos torcedores rubro-negros, Zico incluso, aquele foi o gol do Flamengo mais arrepiante já testemunhado. A conquista também é considerada o verdadeiro “big bang” da geração mais vitoriosa do clube, que partiria dali para o topo do mundo. Reafirmou talentos, fez justiça a craques, enterrou traumas. A cabeçada do zagueiro Rondinelli, que decretou a vitória por 1 a 0 sobre o Vasco aos 42 minutos do segundo tempo e deu ao clube da Gávea o título carioca de 1978, entrou para a história do futebol brasileiro há exatos 40 anos.

Tempos de angústia

Maracanã, dezembro de 1974. Com um time repleto de garotos, o Flamengo levanta o título carioca segurando um matreiro e tarimbado Vasco (campeão brasileiro quatro meses antes) e apresenta geração promissora. Entre os que participam da campanha, titulares durante toda ela ou em algum momento, estão o goleiro Cantarele, o lateral-direito Junior, os zagueiros Rondinelli e Jaime, o meia Geraldo e o ponta-de-lança Zico. Todos com idades em torno dos 20 anos.

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Com os meninos comandados pelo técnico Joubert – ele próprio, ex-lateral criado no clube – há a expectativa de que o Flamengo já tenha um bom time para os próximos cinco, dez anos. Mas o que se segue começa a incomodar. No ano seguinte, sem ganhar nenhum dos três turnos do Carioca, o time fica afastado das finais. No Brasileiro, engrena na reta final e chega a liderar seu grupo, à frente do Internacional, faltando uma rodada para as semifinais. O adversário é o Santa Cruz no Maracanã. O time joga pelo empate. Mas perde por 3 a 1 e é desclassificado.

O ano de 1976 é ainda mais frustrante. O Flamengo decide a Taça Guanabara em jogo extra com o Vasco, mas perde nos pênaltis. No segundo turno, o título fica com o Botafogo. E o terceiro, disputado cabeça a cabeça com o Fluminense, vai para os tricolores. O Fla é o segundo na soma total de pontos. Mas fica de fora do quadrangular final. O mesmo se repete no Brasileiro. Só o Inter, futuro campeão, faz mais pontos que o Fla. Mas os rubro-negros não vão às semifinais.

Nesse mesmo ano, um outro drama calou muito mais fundo no peito dos rubro-negros, jogadores e torcedores: a morte precoce do meia Geraldo, vitimado por um choque anafilático durante uma simples cirurgia de retirada das amígdalas no fim de agosto, aos 22 anos. A perda do armador de futebol refinado, que desfilava uma classe exuberante em campo, e que chegara à Seleção antes mesmo de Zico, mergulhou tudo num luto que custaria a ser superado.

Chega 1977, e uma nova diretoria é empossada. A chapa Frente Ampla pelo Flamengo (FAF) elege o tabelião Márcio Braga como presidente do clube e inicia uma grande reformulação na gestão do futebol do clube. Valoriza a base e complementa com reforços pontuais, como o lateral Carlos Alberto Torres, o meia Paulo César Carpegiani, o ponta Osni e o centroavante Cláudio Adão, mas o time volta a viver o drama de perder um jogo decisivo nos pênaltis para o Vasco no Carioca. No Brasileiro, após bom começo, o time de novo naufraga antes das semifinais.

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A campanha do Brasileiro de 1978, que vem logo a seguir, é medíocre do começo ao fim. Sem contar com Zico – preparando-se para a Copa do Mundo da Argentina com a Seleção Brasileira – durante todo o torneio, o Fla se perde em meio a um elenco inchado, mas muito desnivelado. A necessidade de parar, refletir e mudar muita coisa é urgente. Zico, às voltas com lesões, retorna com a moral em baixa da Copa do Mundo. Mas não menos que o técnico da Seleção, o gaúcho Cláudio Coutinho, também treinador licenciado do Fla.

Um treinador em busca de reconhecimento

Coutinho já contava com um bom currículo no futebol. Integrante da aclamada equipe de preparação física da Seleção campeã do mundo em 1970, era um dos maiores peritos brasileiros no assunto, inclusive com estágio na Nasa. Trabalhara ainda como supervisor no Vasco, no Botafogo e no Olympique de Marselha, dirigira a seleção peruana e também assumira, de última hora, o comando da Seleção Brasileira olímpica nos Jogos de Montreal em 1976. Logo depois do torneio, recebeu o convite para substituir o também gaúcho Carlos Froner no Flamengo.

Estudioso dos esportes, Coutinho viu no Fla um terreno interessante para experimentar suas ideias táticas. Fluente em cinco idiomas, participara de congressos no exterior e conhecera de perto muitas das novidades europeias. Embora não conquistasse títulos num primeiro momento, o estilo aplicado no Flamengo de jogo ofensivo com ideias pouco usuais no futebol brasileiro de então agradava. E ele acabaria chamado para treinar de novo na Seleção Brasileira, mas agora a principal, no lugar do veterano Oswaldo Brandão, demitido no começo de 1977.

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Após uma breve trégua inicial, Coutinho começou a ser bombardeado pela imprensa esportiva, em especial a paulista. Era criticado por suas novidades táticas tidas como invencionices, pelo que se considerava uma falta de critério nas convocações e escalações e até por seu vocabulário. De fato, o Brasil apresentou um futebol um tanto engessado em meio a um Mundial onde o brilho, de um modo geral, andou em falta. E, para piorar, o treinador deu mostras de falta de pulso, ao acatar todo tipo de interferências em seu trabalho.

Copa do Mundo encerrada, o Flamengo iniciou sua reconstrução. Aparou arestas, enxugou o elenco, trouxe reforços pontuais – o mais expressivo deles era o experiente goleiro Raul, que então já planejava sua aposentadoria – e embarcou para a Europa, onde disputaria os prestigiosos torneios de verão no continente. Mesmo sem Zico, ainda se recuperando de um estiramento sofrido no Mundial da Argentina, cumpriu ótimas atuações e levantou o Torneio Ciutat de Palma, em Palma de Mallorca em uma atuação épica, antológica, diante do Real Madrid.

Na Europa, uma conquista encorajadora

No acanhado estádio Lluís Sitjar, o Flamengo abriu 2 a 0 no campeão espanhol ainda no primeiro tempo, com gols de Cláudio Adão e do meia-atacante Cléber. Até que o árbitro Alsocúa Sanz começou a aprontar contra o Fla. Marcou impedimentos inexistentes, inverteu faltas e, na etapa final, apitou pênalti duvidoso de Raul em Aguilar (convertido pelo próprio atacante merengue) e expulsou, por reclamação, o lateral Toninho e os atacantes Cléber e Eli Carlos, mais o técnico Cláudio Coutinho, o supervisor Domingo Bosco e todo o banco de reservas rubro-negro.

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Com apenas oito homens em campo contra os 11 do Real Madrid, o Flamengo ainda viu o árbitro esticar o segundo tempo até os 50 minutos, prática incomum na época. No último lance, o atacante Juanito conseguiu superar Raul com um toque de cobertura. Mas Cláudio Adão surgiu para salvar o empate em cima da linha. Alsocúa Sanz apitou o fim do jogo, e o estádio inteiro, que já se virara a favor do Flamengo, aplaudiu de pé, assim como fez a imprensa espanhola. A atuação memorável dava motivos para acreditar que as coisas seriam diferentes naquele ano.

Logo a seguir começaria o Campeonato Carioca – aliás, o último realmente “carioca”. Embora a fusão dos antigos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara tivesse acontecido no início de 1975, no futebol ela ainda não havia se concretizado: havia duas federações e dois campeonatos que corriam em paralelo. Em 1976 e 1977, porém, três clubes do interior (os campistas Americano, Goytacaz e o recém-criado Volta Redonda) haviam disputado o campeonato da capital como convidados. O que não voltaria a se repetir em 1978.

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O Conselho Nacional do Desporto (CND) obrigou a fusão das federações (e dos torneios). Antes disso, no entanto, seriam disputados os últimos campeonatos, que valeriam também como classificatórios para o primeiro estadual “unificado” a ser disputado em 1979. O Carioca começou então com os 12 times da capital e tinha o Vasco, atual campeão, apontado como grande favorito. Os cruzmaltinos haviam perdido dois titulares, o meia Zanata e o ponteiro Dirceu, vendidos ao futebol mexicano. Mas se reforçaram trazendo do Palmeiras o goleiro Leão.

Embora terminasse de desmantelar o que sobrara da Máquina bicampeã carioca em 1975 e 1976 com a venda de Rivelino ao futebol árabe, o Fluminense também havia investido alto para trazer a dupla Nunes e Fumanchu, do Santa Cruz. O Botafogo, embora em atrito constante com o ponta Paulo Cézar Caju, também tinha uma equipe de respeito. Havia ainda o America, com um bom time, azeitado e sempre perigoso. Entre os pequenos, o destaque era o São Cristóvão, que firmara um convênio com o Cruzeiro, recebendo 12 jogadores e dividindo as rendas.

A Taça Guanabara

O time cadete, no entanto, foi presa fácil para o Flamengo logo na primeira rodada, sendo goleado por 6 a 0. Em seguida, o Fla voltou a golear, fazendo 5 a 0 no Campo Grande. Depois de bater com dificuldade o Madureira (2 a 1) e derrotar também a Portuguesa (2 a 0), o time de Coutinho teria seu primeiro clássico pela frente, diante do Vasco. Com mais de 120 mil pagantes no Maracanã, o empate em 0 a 0 persistiu, mas não tirou os rubro-negros da liderança. Depois de bater o Bangu em Moça Bonita por 3 a 0, veio a vez de enfrentar o America.

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Naquele momento, o Flamengo enfrentava um pequeno, mas incômodo tabu diante dos rubros. Não os vencia desde setembro do ano anterior. Pelo Brasileiro de 1978, os dois times haviam se enfrentado três vezes, com o America vencendo as três. E a escrita acabou persistindo: o Fla esteve duas vezes à frente no placar, mas acabou cedendo o empate com dois gols do ponta Silvinho, que estenderam o jejum rubro-negro a seis jogos.

Um tranquilo 5 a 0 no Olaria foi seguido por mais um empate, 1 a 1 diante do Botafogo. E uma vitória fácil diante do Bonsucesso por 3 a 0 na penúltima rodada serviu para manter o time na ponta. O último adversário seria o Fluminense. Mas graças ao empate em 2 a 2 entre Botafogo e Vasco no dia anterior, o Fla entrou em campo no domingo podendo até perder por cinco gols de diferença para levantar a Taça Guanabara. Os tricolores marcaram duas vezes nos cinco minutos finais e venceram por 2 a 0. Mas a taça do turno foi mesmo para a Gávea.

Foi uma conquista importante: depois de oito turnos de frustrações, o time voltava a garantir vaga na decisão do Carioca. Porém, outro dado fazia ligar o alerta: o time não havia vencido nenhum clássico. E a tabela do returno já marcava, de saída, o confronto com o America. O Fla abriu o placar com gol de Zico após ótimo lançamento de Adílio, mas os rubros empataram no início da etapa final com o centroavante Mário. A nove minutos do fim, Tita foi à linha de fundo, cruzou e o zagueiro Heraldo desviou contra as próprias redes, encerrando o tabu.

A goleada de 5 a 2 sobre o Campo Grande na reinauguração do estádio de Ítalo del Cima serviu para manter o time na ponta, mas a bruxa andou solta pela semana seguinte. Raul se lesionou num treino e teve de ceder o posto ao antigo titular Cantarele. Na quarta-feira, o time foi a Moça Bonita e novamente sofreu contra o Madureira, parando num empate em 2 a 2, no qual foi salvo por um gol de Junior a três minutos do fim. Agora o Vasco liderava isolado. E no fim de semana, o Fla teria novo clássico pela frente, contra o Fluminense.

Lavando a alma

A chuva insistente que caiu sobre o Rio naquele 5 de novembro afastou uma grande parcela do público do Maracanã (pouco menos de 40 mil pagantes se aventuraram). Mas também serviu para lavar a alma rubro-negra e carregar para longe as más notícias: cumprindo atuação primorosa, tanto do ponto de vista técnico (mesmo com gramado um tanto pesado) quanto do coletivo, o Flamengo engoliu o rival, sapecando uma goleada de 4 a 0, com dois gols de Zico e outros dois de Cláudio Adão, pagando com juros a derrota sofrida no primeiro turno.

Três dias depois, o time voltou a enfrentar o Bangu em Moça Bonita e venceu por 1 a 0, com gol de Tita cobrando falta no fim. As chances criadas e desperdiçadas no alçapão da Zona Oeste foram devidamente compensadas no jogo seguinte, uma acachapante goleada de 9 a 0 sobre a pobre Portuguesa da Ilha do Governador, no Maracanã. Após vencer o Bonsucesso por 2 a 0, foi a vez de encarar o Botafogo, num jogo de muitas ausências e retornos.

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No dia seguinte à vitória sobre o Rubroanil da Leopoldina, o time perdeu Cláudio Adão, artilheiro disparado do campeonato com 19 gols, lesionado num treino. Por outro lado, Toninho e Adílio, ambos fora de time desde depois do Fla-Flu, estavam recuperados e jogariam. De última hora, o time perdeu também o zagueiro Nélson, fazendo voltar ao time um antigo titular que só ali estrearia no campeonato, reabilitado de um longo afastamento por lesão: Rondinelli.

Em campo, o Flamengo enfrentou um Botafogo cauteloso, com o zagueiro Renê adiantado ao meio-campo para marcar Zico e o armador Mendonça encarregado de anular Carpegiani. Mas o Fla ainda contava com Adílio, que aos 24 minutos da etapa final serviria a Zico, que se livrara da vigilância alvinegra para vencer o goleiro Zé Carlos com um leve toque, apenas o suficiente para encobrir o arqueiro de um jeito desmoralizante, e dar a vitória ao Fla.

Os rubro-negros então bateram São Cristóvão e Olaria, ambos por 2 a 0, e ficaram à espera de um tropeço do Vasco, que enfrentaria o Fluminense pela penúltima rodada, um dia depois do confronto entre rubro-negros e bariris. Mas os cruzmaltinos venceram também por 2 a 0 e, com isso, levaram a vantagem de um ponto para a rodada decisiva do returno. O empate no clássico de 3 de dezembro encaminharia a taça do turno para São Januário e provocaria uma decisão em jogo extra entre as duas equipes. Ao Flamengo, restava vencer.

Um time contra seus fantasmas

E vencer significava também superar outro tabu: em jogos válidos por competições oficiais, o Flamengo não derrotava o rival havia seis partidas, nas quais não havia sequer marcado gol. Os quatro últimos clássicos haviam terminado 0 a 0 (resultado que, naquela ocasião, favorecia ao Vasco). Ainda ecoava a lembrança amarga das derrotas nos pênaltis em 1976 e 1977. E mais do que tudo, os rubro-negros jogavam ali o futuro daquele elenco, que poderia ser desmantelado no caso de um eventual novo fracasso ao fim daquele campeonato.

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Mas assim como haviam os traumas, também havia a vontade de superar desconfianças. O desejo de Coutinho – que abandonara algumas ideias, mantivera outras e aperfeiçoara outras tantas – de ser reconhecido como estrategista brilhante que era. A vontade de Zico de recuperar seu prestígio perante o futebol brasileiro perdido na Argentina. E, mais modestamente, de Rondinelli, zagueiro de estilo raçudo e bom no jogo aéreo, pré-convocado para o Mundial no início daquele ano, mas que sofrera com lesões e buscava se recolocar como titular do time.

Sem Raul e Cláudio Adão, definitivamente fora do jogo, o time para a partida começava com Cantarele, goleiro prata-da-casa que vivera altos e baixos nos cinco anos em que integrara o elenco principal até ali. Nas laterais, os ofensivos Toninho e Junior. O primeiro, mais do que tudo um portento físico, bom marcador e apoiador vigoroso. O segundo, o lateral com técnica de meia que Coutinho se arrependera confessadamente de não ter levado para a Copa.

Na zaga, Rondinelli fazia dupla com Manguito, trazido do Olaria para aquele campeonato, beque de técnica limitada, mas igualmente sério e duro. À frente deles, jogava Carpegiani, homem de referência não só do meio-campo como de todo o time. O carimbador de todas as bolas nas transições ofensivas. Na criação estava Adílio, que começara a despontar no time no fim de 1976, quando se revelara uma grata novidade, perfeito nos passes e na condução de bola.

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A ausência de Cláudio Adão como homem de referência na frente levou Coutinho a escalar um trio com o prata-da-casa Tita e a dupla vinda por empréstimo do Atlético Mineiro, Marcinho e Cléber. Nenhum deles tinha posição fixa, girando por todo o setor. Tita aparecia pela direita e pelo meio, Cléber ia do centro para a esquerda e Marcinho flutuava por todo o ataque, especialmente pelas pontas. Isso fazia com que Zico se tornasse o jogador mais agudo, chegando à frente em tabelas com Adílio ou carregando a bola da intermediária até a área vascaína.

O Vasco, favorito apontado pela imprensa e treinado pelo veterano Orlando Fantoni, tinha Leão no gol, os experientes Orlando “Lelé” e Marco Antônio nas laterais e uma dupla de zaga também vigorosa com Abel e Gaúcho. No meio, dois volantes: o incansável Helinho, encarregado de ser a sombra de Zico, e Paulo Roberto, tendo à frente o armador Guina, tão talentoso quanto explosivo, como o principal responsável pela criação.

O trio de ataque teria o veloz e driblador ponteiro Wilsinho pela direita, o goleador Roberto Dinamite (que se igualara a Cláudio Adão e Zico na artilharia com 19 gols) pelo meio e o também experiente Ramón, ex-Santa Cruz, mais aberto pelo lado esquerdo. A surpresa era a permanência de Paulinho – artilheiro do Brasileirão daquele ano, quando substituiu Roberto – na reserva. Mas era uma boa arma para o segundo tempo à disposição de Fantoni.

A decisão

O público de pouco mais de 128 mil pagantes é considerado abaixo das expectativas, mas há uma explicação: numa época em que as rendas dos jogos tinham peso fundamental na arrecadação dos times muitos torcedores resolveram não ir por acreditarem que os dois times se poupariam para que acontecesse o jogo extra, o que proporcionaria outra casa cheia. Mesmo assim, os mais de Cr$ 6,6 milhões arrecadados naquele domingo batem o recorde nacional de renda, fazendo justiça mais uma vez o apelido de “Clássico dos Milhões”.

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O Flamengo assustou logo aos dois minutos numa cabeçada firme de Zico defendida por Leão. Teria outras duas ótimas chances de abrir o placar no primeiro tempo aos 14 minutos num chute de Zico de fora da área, também contido pelo arqueiro vascaíno, e aos 23 numa tentativa de corte de Gaúcho, que quase marcou contra. E os rubro-negros ainda reclamaram de um pênalti não marcado, num carrinho de Helinho em Tita ao final da etapa.

Apesar de segurar os laterais e atacar mais pelo meio, o Fla era mais incisivo diante de um Vasco que procurava cozinhar o jogo, gastar tempo e tentar os contra-ataques, mas que sofria com a falta de “punch” ofensivo. No intervalo, o técnico Orlando Fantoni colocaria Paulinho, o artilheiro do Brasileirão daquele ano quando substituiu o convocado Roberto Dinamite, no lugar de Ramón, visivelmente fora de forma. E ele cria a primeira grande chance do Vasco no jogo, ao desviar na primeira trave um cruzamento de Wilsinho.

Mas o Fla mantém o domínio das ações e empurra cada vez mais o Vasco para o campo defensivo. Aos 26, tem sua maior chance naquela etapa até ali, em que uma triangulação rápida na entrada da área coloca Zico frente a frente com Leão, mas o camisa 1 da Colina faz outro milagre. Mais tarde, aos 38, é a vez dos vascaínos desperdiçarem sua maior chance no jogo, surgida de um lance fortuito: bola espirrada na defesa do Fla, Roberto ganha a disputa de Rondinelli e cruza. Sozinho na área e diante de Cantarele, Paulinho erra o domínio e deixa a bola escapar.

O instante em que tudo mudou

Aos 41, Junior recebe de Manguito na meia esquerda, avança, tabela com Tita e cruza alto, procurando Zico, que avançava pela outra ponta. A bola aparentemente sairia em lateral ou tiro de meta, mas Marco Antônio, temendo a chegada do 10 rubro-negro, prefere não arriscar e faz o corte pela linha de fundo, cedendo escanteio. Nesse lance um tanto prosaico, estamos diante do momento capital do jogo, aquele que mudará muito mais do que apenas a história da partida.

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Atrás do gol de Leão estava o fotógrafo Rubens Walter Etcheverria, o Che, uruguaio radicado no Rio e amigo dos jogadores rubro-negros, especialmente do lateral Sergio Ramírez, aquele que correra atrás de Rivelino num Brasil x Uruguai no mesmo Maracanã dois anos antes e que agora era reserva de Toninho e Junior no Fla. Quando a bola cortada por Marco Antônio parou perto de sua bolsa de trabalho e Zico apareceu para busca-la, Che entregou em mãos com um pedido apressado: “Vai lá, ainda dá! Bate logo que está acabando!”.

Zico não batia escanteios no Flamengo, tarefa mais comum aos pontas. De fato, aquele fora o único que ele cobraria em todo o jogo. Rondinelli também não estava na área. Estava no meio-campo discutindo com Carpegiani sobre se devia ou não ir ao ataque. Roberto, que costumava marcar o zagueiro rubro-negro nos escanteios, também se dispersou com a discussão e ficou onde estava. Até que Zico levantou o braço e Rondinelli pressentiu: “É agora”.

Foram cerca de dez passos largos até a área e um salto, num daqueles instantes em que o tempo parece parar, congelar. A bola passou alta por todos os outros jogadores do Flamengo que estavam na área e veio para onde Rondinelli se encontrava, entre Abel e Orlando Lelé. A cabeçada foi inapelável, no canto esquerdo. Nem que se esticasse todo Leão alcançaria, finalmente batido. Não houve rubro-negro que segurasse mais o enorme grito contido pela tensão no Maracanã. Aos 42 minutos, enfim, num misto de alívio e êxtase, era a hora de extravasar.

O fim do jogo, no entanto, demorou um pouco mais que o esperado. Guina e Zico se estranharam no meio-campo, o vascaíno acertou um pontapé no rubro-negro que, furioso, só não conseguiu revidar porque foi contido por companheiros e adversários. A confusão foi o estopim para uma gigantesca invasão de campo, típica do estádio naqueles tempos, e que paralisou a partida por cerca de seis minutos. Os dois jogadores acabaram expulsos. E o jogo terminou pouco depois, iniciando de vez a agora incontida festa da massa rubro-negra.

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A sensação foi de se mudar o curso da história. Acabavam o tabu, o jejum, os traumas, os questionamentos. Agora definitivamente consagrado como o “Deus da Raça”, Rondinelli emulara Agustín Valido, o ponta argentino que, em 1944, marcara também de cabeça e também nos minutos finais o gol de um título dramático diante do Vasco. Só que o gol de Valido completaria um tricampeonato. E o de Rondinelli iniciaria outro, que seria seguido nos anos posteriores pelas conquistas do Brasileiro, da Copa Libertadores da América e do Mundial Interclubes.

Quinzenalmente, o jornalista Emmanuel do Valle publica na Trivela a coluna ‘Azarões Eternos’, rememorando times fora dos holofotes que protagonizaram campanhas históricas. Para visualizar o arquivo, clique aqui.

Confira o trabalho de Emmanuel do Valle também no Flamengo Alternativo e no It’s A Goal.

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Emmanuel do Valle

Além de colaborações periódicas, quinzenalmente o jornalista Emmanuel do Valle publica na Trivela a coluna ‘Azarões Eternos’, rememorando times fora dos holofotes que protagonizaram campanhas históricas.
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