Preparador mental de jogadores do Flamengo faz importante reflexão sobre a saúde mental no futebol brasileiro
Parceiro de Cebolinha e Matheuzinho, do Flamengo, Lulinha Tavares destacou a importância do profissional de preparação mental no esporte mais assistido do país
O lado mental no futebol está cada vez mais presente entre os clubes brasileiros, mas, sem dúvida, ainda é um grande tabu para os envolvidos. A demonstração de força entre atletas, comissões técnicas e diretorias é fundamental para manter uma boa imagem e, como consequência, só prejudica o ambiente interno. Por isso, existe um movimento cada vez maior pelo preparo mental de todos os envolvidos nos clubes.
A Trivela conversou com Lulinha Tavares, preparador mental ou Personal Mind, como ele gosta de chamar, para entender um pouco mais como funciona o trabalho desses profissionais com atletas. Ele abriu o jogo sobre as origens no esporte, comentou sobre a evolução do tratamento do aspecto mental no futebol brasileiro e, pensando no lado do Flamengo, exaltou Cebolinha, Matheuzinho e Tite.
As origens: de onde vem o termo Personal Mind?
Lulinha começou a trabalhar com o aspecto mental no futebol em 2008, mas, no ano seguinte, teve sua grande oportunidade. Ele fez parte do grupo que acompanhou os atletas do Fluminense na arrancada para fugir do rebaixamento e, sem dúvida, foi muito importante no processo. No fim das contas, o Tricolor completou a saga e não caiu para a Série B.
Formado em educação física, Lulinha fez pós gradução em psicologia esportiva para, depois, entrar na área do coaching, tão banalizada no Brasil, mas que foi crucial para o crescimento dele como profissional. Atualmente, as demandas são altíssimas, já que ele oferece um trabalho personalizado, ou seja, pensando no que é melhor para cada atleta.
— (Além do Flu) Também trabalhei no Palmeiras, em 2014. No total, foram 44 clubes. A minha função mudou conforme o tempo, porque os atletas acabavam se identificando mais e ficando comigo, independente dos clubes. Eu fiz parte do staff individual de diversos atletas, assim como preparadores físicos, por exemplo. O planejamento passou a ser cada vez mais individual, focando no que Cristiano Ronaldo e LeBron James, por exemplo, tiveram a visão de fazer com sua gestão de carreira.
— A gente planeja tudo, é como o trabalho de um personal trainer na academia. O objetivo é do aluno, quem malha é o aluno, o personal só vai fornecer as ferramentas e instrumentos para o aluno chegar no objetivo dele. O meu intuito é que o jogador se reconheça mais. Como é que ele se sente? Como ele reage, como se concentrar melhor, como lidar com o estresse de uma pressão de um jogo de futebol. Tudo isso é levado em conta, é algo personalizado mesmo.
O trabalho é feito em conjunto com os clubes?
Lulinha explicou que, atualmente, está mais focado no trabalho individualizado do que propriamente com os clubes. Ele não nega que já foi procurado por equipes para acompanhamentos, mas essa é uma decisão que vai da sua preferência. Atualmente, quem mais procura os serviços do preparador mental são famílias e empresários dos atletas, a fim de fortalecê-los desde cedo, no início da carreira.
— Cada clube tem o seu departamento. Na Europa, os treinamentos cognitivos, como o OMR M3, da M3 Academy, já são utilizados. O exemplo do Tchouameni (do Real Madrid), que faz treinamentos cerebrais, mentais, para melhorar a visão periférica, tudo feito com realidade virtual. Hoje, o meu trabalho é mais direto com os atletas, não lido tanto com os clubes em si.
— A demanda está cada vez mais, fico muito feliz com esse movimento de atletas, famílias. Nós teremos uma geração de jogadores brasileiros muito mais preparada, planejada, indivíduos com força mental, velocidade, intensidade, alimentação adequada. Tudo isso faz parte do processo. Os clubes até percebem esse movimento, mas ele é muito mais das famílias, empresários e até mesmo dos próprios jogadores.
E no Flamengo?
Pensando no Flamengo, clube em que Lulinha teve uma identificação nos últimos tempos, o trabalho está sempre ativo. Tudo começou com Andreas Pereira, depois do erro na final da Libertadores. O meia saiu do clube em meados do ano passado, mas também deixou um legado na forma de Matheuzinho. Amigos e naturais de Londrina, os dois fizeram parte do processo de adaptação do preparador mental com atletas no clube.
Atualmente, além de Matheuzinho, Lulinha cuida da preparação de Everton Cebolinha. O camisa 11 entrou recentemente, pouco antes da chegada de Tite e tem sentido os resultados dentro de campo. Mais concentrado e tranquilo para exercer seu estilo de jogo, Cebola é um dos melhores jogadores do Flamengo nessa reta final de 2023.
— O Cebolinha é mais recente, começou no mês passado, bem próximo à chegada do Tite. Ele veio de uma indicação do Matheuzinho, mas não me recordo como foi especificamente. A questão da confiança entre os atletas no trabalho é fundamental, por isso o início com o Everton foi tão leve. Ele confiou parte da vida e os resultados estão aí. É muito gratificante ver essa mudança, seja no comportamento, na autoestima, na ressignificação dos estresses. A vida do atleta não é fácil, embora muita gente ache, a cobrança interna é maior do que a externa, por mais que no Flamengo ela seja grande também. Só a cobrança interna dorme e acorda com o jogador. Ver ele diferente, para melhor, é de uma alegria muito grande — analisou.
Lulinha ainda detalhou como foi a preparação de Matheuzinho desde o ano passado. Pelo modelo do Personal Mind, ele conseguiu manter o atleta nos eixos quando esteve em período mais complicado, depois da fratura na tíbia da perna esquerda, que o afastou dos gramados por mais de três meses.
— O meu trabalho com ele (Matheus) se inicia em momento que o Flamengo tinha o Rodinei, que estava muito bem, e ele acabou perdendo a titularidade no time das Copas. Continuava jogando muito bem no Brasileirão, mas a chegada do Varela acirrou ainda mais essa competitividade. O esquema do Dorival também foi fundamental para manter todos motivados. Ele estava mais maduro, sob o ponto de vista mental comportamental.
— E aí veio a lesão e tem toda uma perda né? As vezes o atleta acha que o rendimento dele vai ser igual depois de voltar, mas não vai. Ele precisa de minutagem, superar o medo que fica lá no inconsciente com a questão da pancada, do empate. As coisas precisam ser processadas, mas a exigência pelos resultados é imediata. Foi um problema novo para ele, uma fratura, mas ele conseguiu se recuperar bem e recuperou a condição de titular agora na reta final.
A parcela de Tite no trabalho
É inegável que Tite mudou o ambiente do Flamengo, passando confiança aos atletas e fazendo com que o ambiente do clube ficasse integrado novamente. Na opinião de Lulinha, a memória afetiva, no caso de Everton Cebolinha, é fundamental para reestabelecer o bom futebol do atleta. Como trabalharam juntos na Seleção Brasileira, essa melhora não é repentina, muito menos infundada.
— É uma maneira de se pensar. A gente trabalha bastante com a questão da memória afetiva, algum lugar que o atleta tenha gostado de estar, alguém que o atleta tenha identificação. No caso do Cebolinha, o Tite é essa pessoa que traz sensações boas, eles trabalharam juntos na Seleção Brasileira. O Tite tem um modelo de gestão humanizada, semelhante ao do Fernando Diniz, cada um com a sua característica própria, claro. Juntos, isso contribui significativamente para o crescimento do atleta.
Psicologia no esporte é tabu no Brasil?
Para finalizar, uma pergunta que é feita para muitos profissionais da área: por que a saúda mental não é vista com mais seriedade no Brasil. Em setembro, a Trivela publicou um levantamento importante, que revelava que metade dos clubes da Série A não possuem um psicólogo contratado. Sobre isso, ainda que não seja a mesma profissão, Lulinha explicou que vê uma melhora significativa na procura.
— Eu vejo isso em evolução no Brasil. Estou há 15 anos no ramo, já vi estar muito mais atrás do que está atualmente. Vejo uma proximidade muito grande, integração total entre os setores, trocando informações entre eles. Assim como as ideias são passadas entre os analistas de desempenho, pessoal da fisiologia, a nossa profissão também está sendo mais valorizada. Vou destacar que o nosso trabalho se assemelha ao do psicólogo, mas não é igual. O papel do preparador mental e do psicólogo, as diferenças, que eu digo, é parecido com a do fisiologista e do médico. Cada um na sua, quem tem a ganhar são os clubes.
Lulinha ainda fez questão de promover uma reflexão importante: o tamanho da esperança que é depositada nos esportistas no Brasil. Para ele, essa mudança de paradigma, que mostra a fragilidade dos atletas e coloca eles em condições de cidadãos comuns, é crucial para melhorar o debate na questão da saúde mental no esporte mais praticado no país.
— Eu vejo que isso está evoluindo muito, justamente pelos próprios atletas estarem buscando o nosso atendimento. Vejo tudo como um processo, seja no Brasil ou no mundo. A questão mental sem foi um tabu, nós não temos heróis, nossos heróis são os atletas. O Brasil é um país sem heróis, lembra do Ayrton Senna? É ele que é o nosso herói, um esportista.
— Todo mundo tem receio de mostrar fragilidade nesse meio. Você não precisa estar doente para cuidar da sua saúde, essa ideia tem que ser, e está sendo, transformada. É uma mudança de paradigma. A preparação mental não vai consertar, mas sim fortalecer a sua mente. O atleta de alta performance precisa de preparo, periodização, treino, personalização. Ninguém é igual, o tratamento vai de cada um. Da mesma forma que você se prepara fisicamente, você precisa se preparar mentalmente, é o lugar de onde todas as decisões vão sair.