Fernando Diniz tem o DNA do Cruzeiro e a história comprova
Historiador, jornalistas, dirigentes e o próprio Diniz entendem que a junção entre clube e treinador compartilham filosofias semelhantes
“Em 2007, quando fiz um curso de futebol com o então treinador da categoria de base do Cruzeiro, Enderson Moreira, ele me disse que, para jogar no clube, o jogador tem que ser bom de bola.
— Jogador que mata a bola na canela não serve para jogar no Cruzeiro — afirmou ele.
Essa exigência sempre existiu desde o início da história do clube, que começou com a academia Palestrina e se estende até o Cruzeiro, tão vitorioso ao longo de sua trajetória, das Alterosas até a conquista da América.”
Estas são palavras ditas à Trivela pelo professor Fabio Militão, pesquisador e editor do Projeto Jornada Cruzeirense, que publica, diariamente, a história sobre um jogo marcante do Cruzeiro.
Mas esse tipo de opinião não se limita a Militão. Em um famoso texto do jornalista André Rizek entre torcedores cruzeirenses, publicado na antiga revista do Cruzeiro, o atual apresentador do SporTV endossa:
— Desde moleque penso isso do Cruzeiro: são os caras que levam a bandeira do jogo bonito, limpo, donos de uma torcida educada como poucas no mundo. (…) Porque se tem torcedor que vê futebol como guerra, o cruzeirense, para mim, é o cara que vê o Cruzeiro como uma cachaça artesanal, daquelas envelhecidas em boa madeira. Para saborear devagar. Algo que desce sem esforço. Que faz sorrir e não sofrer — escreveu Rizek.
Leia o texto na íntegra clicando aqui.
Até mesmo os últimos projetos vendidos, como o de Ronaldo Nazário, quando este comprou a SAF do clube, o discurso era “Sempre ser um Cruzeiro que joga como Cruzeiro”.
Inclusive, o icônico ex-presidente atleticano, Alexandre Kalil, classificou o Cruzeiro como um “Time de camisa 10”.
— O Atlético, por característica, não me pergunte o porquê, eu não sei, não é time de camisa 10. O Cruzeiro sempre foi. O Atlético é time de camisas 9, o Cruzeiro nunca foi. Não tira o Ronaldinho do Atlético e o Ronaldo no Cruzeiro. São exceções — afirmou Kalil em entrevista ao Charla Podcast.
Por tudo isso, a chegada de Fernando Diniz ao clube celeste aponta os rumos de um casamento perfeito. Mineiro, ex-atleta do time, filho de cruzeirense e com gosto pelo futebol bonito, bem jogado e corajoso, o técnico surge para conquistar o resgate ao “Ser Cruzeiro”, abalado nos últimos dez anos.
Fernando Diniz e a coragem
— Coragem é talvez o que a gente mais precisa no futebol, é essencial e não pode faltar — afirmou Fernando Diniz, durante uma visita ao Sfera, time que atua na formação de atletas, com sede em Jarinu, interior de São Paulo, ainda em 2024.
Parte da torcida cruzeirense que exaltou Fernando Seabra quando este terminou o jogo contra o Fortaleza, na segunda rodada do Brasileirão 2024, com um zagueiro, dois laterais e seis homens de frente, já que o volante Lucas Romero havia sido expulso — o time celeste buscou o empate na reta final do jogo —, criticou o agora ex-técnico estrelado por jogos em que o clube não conseguiu atacar.
‘Faltou coragem”, muitos disseram após partidas de pouco sucesso. Para esse grupo da torcida, muitas vezes, a honra está em ter coragem, mais que na vitória propriamente dita. Afinal, jogar como Cruzeiro, já é vencer.
De rica história, o Cruzeiro triunfou de várias formas, como não podia ser diferente, afinal, são 103 anos de existência. Mas, certamente, os times que jogavam para frente, como toque de bola, movimentação e improviso, ficaram marcados.
Ainda que a década de 1990 seja a mais vitoriosa do clube, quando uma veia “copeira” surgiu forte, nomes específicos e as próprias conquistas marcaram mais que as equipes como um todo.
Sim, o Cruzeiro já venceu sem ‘ser Cruzeiro’
O bicampeonato de 2017/18, conquistado no suor e sangue, também marcou, por sua alta carga emocional, e foi imensamente celebrado.
Mas é comum ler e ouvir de cruzeirenses que o Cruzeiro não jogou como Cruzeiro. E mesmo com dois grandes títulos, não é incomum ver torcedores reclamando do “Manismo”, apelido dado ao futebol altamente reativo praticado por Mano Menezes, e da cultura resultadista implantada no clube. A qual, desde o retorno à Série A, em 2022, o clube tenta se afastar.
Os times marcados pelo futebol ofensivo
Por outro lado, pensando nos clubes campeões das décadas de 60, 70, de 2003, e 2013/14, todos aqueles que marcaram história e vivem no imaginário do torcedor foram baseados na ofensividade.
— O Palestra alcançou o tricampeonato da Cidade (nos anos 1928, 1929 e 1930), registrando a maior média de gols da história do campeonato. O campeonato de 1928, com 93 gols, uma média de quase 6 gols por jogo. Ninão foi o maior artilheiro da história do Campeonato Mineiro, com 43 gols, e a maior goleada da história dos mineiros ocorreu com um 14 x 0 contra o Alves Nogueira. Ninão fez 10 gols nessa partida, estabelecendo outro recorde histórico — relembra Fabio Militão, mostrando que a veia ofensiva está presente no Cruzeiro antes mesmo dele ter esse nome.
Diniz, assim como grande parte da torcida cruzeirense, gosta de toque de bola, de improviso, da vontade de vencer ser maior que o medo de perder.
A inovação
Historicamente, o Cruzeiro gosta de buscar o diferente, inovar, buscar formas de melhorar seu jogo, ainda que sejam não-ortodoxas em relação ao que já é praticado.
— Filpo Núñez, o argentino que criou a Academia do Palmeiras nos anos 1960, teve duas passagens rápidas, mas marcantes, pelo Cruzeiro. Em 1955, sem muito sucesso, e em 1970, quando implantou o sistema de losango, fazendo com que Tostão jogasse como falso 9. Assim, Zé Carlos pôde jogar ao lado de Piazza e Dirceu Lopes.
Segundo meus estudos, até então, apenas a Hungria de 1954 havia utilizado um meia como falso 9. O sistema tático foi tão inovador que Tostão foi convocado para a Copa de 1970 — conta Fábio Militão, apontando uma ruptura criada em Belo Horizonte e utilizada até os dias atuais, que ainda sofre com olhares reticentes de quem não aceita tão bem o “novo”.
Fernando Diniz vai em um caminho parecido ao não aceitar se dobrar aos chutes que garantem o 1 a 0 em casa e o 0 a 0 fora.
— O futebol para mim nunca foi mecânico, apartado da vida, do sofrimento, do choro e da alegria. Vou continuar assim, não vou me dobrar ao sistema. Sofri muito para ser quem eu sou. O sistema do futebol faz mal a muita gente — afirmou Diniz, ao deixar o Fluminense, em junho de 2024.
E o que pensa Fernando Diniz?
Em sua coletiva de apresentação, realizada nesta terça-feira (23), Fernando Diniz respondeu à Trivela sobre o tema. Segundo o próprio treinador, ele e o Cruzeiro “têm tudo a ver”.
— Eu acho que, nesse sentido, tem tudo a ver aquilo que eu penso sobre futebol e a história que a gente pode chamar de DNA do clube. Os times que marcaram a época no Cruzeiro, além de ganhar os títulos, produziram algo a mais que ganhar os campeonatos. Isso é uma coisa para mim muito importante, que marca de maneira especial a vida do torcedor do Cruzeiro e quem não torce para o Cruzeiro.
Vou citar dois: o time da década de 60. Quem não é cruzeirense vai saber qual é o time. Foi fã do Tostão, foi fã do Dirceu Lopes e gostava de ver o time jogar. E o time de 2003, e depois acabei jogando aqui em 2004. Marcou uma época, ganhou todos os títulos, vale lembrar do Alex, gostava de ver o Cruzeiro jogar. Inclusive os adversários gostavam de ver o Cruzeiro jogar — afirmou Diniz.
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O futuro
Fábio Militão termina a conversa com um contexto histórico, que traz esperanças para o futuro do Cruzeiro.
— Ao longo de nossa história, o Cruzeiro sempre teve em seu elenco três pilares: um grande camisa 10, um atacante habilidoso e treinadores que defendiam uma academia de futebol técnico. Essa tradição resultou em várias conquistas ao longo dos anos — aponta.
Com Matheus Pereira e Diniz, o time de 2024 parece ter alcançado dois desses pilares. O que o futuro reserva?