As dores do futebol e seus exageros viris em xeque
'É só um jogo': muitas vezes é bom lembrar disso, mas o campo grita sobre a gente e deve ser isso que nos prende ali
Uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas tem, porque estão ali meio juntas, atravessando jogos de futebol que a gente para e assiste desde que se reconhece por gente e depois viram conversas repetidas na manhã seguinte, no programa do almoço, nos grupos de celular com os amigos.
É só um jogo, muitas vezes é bom lembrar disso, mas o campo grita sobre a gente e deve ser isso que nos prende ali, dia após dia, desde antes do nada.
Quando morre um jogador de futebol assim, num mal súbito aos nossos olhos no meio de um campo de sonho como o MorumBIS, o choque bate direto nas nossas viagens de criança, onde todos queríamos ser um Juan Izquierdo, viver da bola, vestir a camisa dum grande clube, fardar por um campeão do mundo numa noite fria de Copa Libertadores.
Esses caras, uns mais coadjuvantes que outros, são co-autores de nossas emoções e de nosso calendário pessoal. A particular comoção são-paulina, da retaguarda no Brasil a pegar o voo para a última homenagem no Uruguai, não é trivial, mas bem mais que isso, e muito comovente.
Da tristeza brota um lapso, por que não, de um lugar mais amigável, carinhoso, um tanto mais perto do que gostaríamos que fosse a vida, afinal.
No fim, e é impossível não se lembrar do que fizeram os colombianos enquanto destino do vôo da Chapecoense, esses dias extremos e atípicos nos escancaram como poderíamos ser. Não, não acho que a morte precise nos ensinar alguma coisa, e o que resta é o conforto da família e dos amigos do rapaz que só saiu de casa para trabalhar como zagueiro.
Mas o futebol, essa gritaria brigada que beira o convívio insuportável entre gente de camisa diferente, podia fazer o bem de respirar, acalmar, abrandar os ânimos. Não precisamos viver de guerras em todas as quartas e domingos.
Porque a gente não vê jogo de futebol para assistir funcionário de clube brigando com jogador, nem para árbitro ir ao vídeo depois do apito final para monitorar marmanjo trocando soco com marmanjo.
Que coisa dispensável ficar compartilhando milionário de bola apontando dedo na cara de adversário em túnel para vestiário. Outro dia um até comentou: moram no mesmo condomínio! Que a gente faz acompanhando tanta bobagem nessa disputa de quem é mais valente que o outro?
Não deveríamos saber o nome do segurança do Vasco da Gama (temos mais o que fazer, não?), e seria melhor se ele não precisasse ter virado cântico de torcedor nem piadinha na transmissão do jogo posterior.
Tudo bem, um certo folclore faz parte, mas essa virilidade semanal em pontos corridos cansa. Tem quem goste, mas tenho certeza: o rame-rame da masculinidade, esse espaço aberto para ser brigão (ou parecer ser), afasta muita gente.
Era rodada de aniversário do Palmeiras, um século mais uma década de história para o atual bicampeão brasileiro, logo vencendo por cinco numa goleada implacável, mas seu treinador, outra dessas figuras que adora viver uma copa de grosserias paralela, cometeu um dos comentários mais misóginos que vamos nos lembrar por algum tempo.
Abel Ferreira, por favor, não há mal-entendido algum quando há ruptura do diálogo com uma mulher porque o gênero oposto lhe causou repulsa. A nota escrita na sequência traz essa fragilidade no subtexto, porque não assume os próprios fantasmas.
Quando clube e presidente se calam, a caravana do machismo passa. Nada surpreendente, já que a única bandeira que interessa no esporte é a do próprio umbigo, o clubismo, e não se vai comprar briga contra um dos seus. Pobreza que não está à altura do espaço que ocupam.
E ainda há o Brasil
Dorival Júnior convocou sete nomes do campeonato local – William, Arana, Gerson, André, Estêvão, Luiz Henrique e Pedro –, o que me parece uma boa proporção, entre valorizar características do jogo praticado aqui e também concluir que em algumas posições não tem tanta gente assim voando lá fora.
Sinto falta da seleção ter um meia mais meia de fato, e sinceramente tem hora que parece que esse jogador nem faz mais falta para os treinadores, que desistiram. Daqui, seguimos sem perder um jogo de Paulo Henrique Ganso, um dos últimos.
A maioria dos debates sobre futebol seriam mais claros e interessantes se as pessoas falassem sobre os seus gostos, suas preferências, o que lhes atrai, que lances e jogadores valem um arrepio.
Existe uma tendência do analista atual de se propor a ler o jogo sob o viés do plano do treinador, o que é valioso do ponto de vista do entendimento estratégico e de um desejo de destrinchar cada detalhe do espetáculo.
Mas, sem perder o respeito por quem toca o futebol de fato, sinto falta de esbarrar com preferências fora do senso comum.