Palmeiras é puro Abel Ferreira, mas dessa vez foi de Endrick, demais
Campeão novamente, Palmeiras de Abel Ferreira teve Endrick em franca ascensão na reta final

Haverá para sempre o Palmeiras de Abel Ferreira, campeão de tudo quanto é jeito, mais fechado, mais aberto, no detalhe do jogo único, na goleada em ida e volta, na superioridade total, no limite com doses de sorte, liderando de ponta a ponta e agora, no campeonato mais absurdo da história recente brasileira, numa remontada que surge meio sem avisar, conta com constrangedora queda rival e mata no peito, pronto e sempre, sob a liderança de Endrick, o puxador da arrancada final ao título do Brasileiro de 2023.
O Palmeiras saiu destroçado da eliminação da Libertadores da América. Com o Botafogo embicando na reta do título brasileiro, a derrota para o Boca Juniors nos pênaltis provocava uma ressaca inédita e ingrata para um clube que vinha batendo campeão todo final de temporada. O ano estava fadado a terminar ainda na virada para outubro, e as duas derrotas seguintes não ajudaram. O pior público da campanha recebeu o time num pitoresco uniforme azul e rosa e assistiu a lesão de Gabriel Menino, a discussão entre Veiga e Rony e um revés incontestável para o Atlético-MG. Abel Ferreira, fora do banco por suspensão, foi dormir a 14 pontos da liderança, um mês sem vencer e distante 11 jogos das férias.
Mas aconteceu algo de novo nesse par de frustrações contra Santos e Galo. Endrick, 17 anos, reserva absoluto desde que foi trocado por Tabata para o mata-mata estadual em março, pela primeira vez esteve em dois jogos completos, e jogando menos preso entre os zagueiros. Sua presença tinha vários significados. Arejar o time com algumas novidades, procurando assunto naquele momento crítico. Preservar titulares que despencaram em rendimento – o próprio Abel admitiu depois que demorou a mexer do time. E de certa forma experimentar uma nova sequência ao seu jovem camisa 9 depois da boa atuação no segundo tempo contra o Boca.
Sem Dudu e Menino, machucados, e Artur e Rony, em má fase, Abel retomou um velho desenho com três zagueiros e uma dupla de ataque. A mudança melhorou demais a vida de seus três jogadores mais influentes na temporada: o lateral Piquerez, cada vez mais decisivo com a bola no pé, o meio-campista Zé Rafael, que ganhou mais espaço para sair para a caça e para o jogo, e o meia Raphael Veiga, bem alojado atrás dos dois da frente. Esse time amassou o São Paulo num clássico surpreendente, uma goleada por 5 a 0 em que demonstrou toda a fome escondida nas últimas semanas, pressionando até o precoce apito final sem acréscimos.
Mas seria reducionista demais creditar a arrancada de título a uma mudança tática. No seu principal teste, a visita ao líder Botafogo no Nilton Santos, essa mesma equipe derreteu. Tomou quinze finalizações no primeiro tempo e desceu para o vestiário perdendo por 3 a 0. Àquela altura, se a Estrela Solitária não era o furacão do primeiro turno, entregava ali sua mais notável atuação, um atropelamento sobre um gigante para retomar a confiança na reta final da campanha. Intervalos, pelo regulamento do jogo, duram 15 minutos. Aquele renderia um filme.
O treinador não mexeu, e Endrick, finalmente numa sequência de posição garantida, arrancou saindo do nada para limpar toda a defesa e diminuir logo no início. Um gol, um espasmo, até pode acontecer, mas a história desse lance só termina com a comemoração. O menino buscou sua amiga no fundo da rede e a carregou debaixo do braço até o círculo central enquanto falava para os colegas: dá a bola em mim. A bola nunca mais saiu de perto. Weverton pegou o pênalti de Tiquinho Soares. Endrick fez mais um, cruzou para o empate e conduziu o Palmeiras à virada. O atual campeão saiu da melancolia para a corrida do título da melhor forma possível, derrubando a moral de um estádio inteiro.
Protagonismo de Endrick só cresceu na reta final do Palmeiras
Nas quatro vitórias seguintes que encaminharam o título, Endrick marcou cedo contra Athletico e América-MG, e também fez um gol de alívio diante do Internacional. À vontade, seu protagonismo só foi crescendo, partindo da direita para dentro, finalizando com sua facilidade assustadora e convencendo os cabeças do time de que o comando do ataque está nas mãos do moleque. Poderia ter sido antes? Talvez sim. Agora, enfim, Veiga não demorou a encontrar seu parceiro de tabelas, Mayke, Zé, Piquerez e Rios ganharam uma ótima referência para o passe, e Breno Lopes tem o parceiro de ataque dos sonhos. O ajuste no desenho potencializou o fenômeno, claro, mas ele precisava, mais do que o lugar certo na prancheta, ser visto como quem tem o tamanho do jogo. Dá a bola em mim.
Abel Ferreira prepara equipes como poucos e conhece cada fiapo de possibilidade a ser testada com esse elenco enxuto e longevo. O grande jogo dessas suas quatro temporadas, o título da Libertadores contra o Flamengo em Montevidéu, tem sua assinatura cravada na história, surpreendendo com Scarpa de ala-esquerdo e abrindo o placar ainda antes do jogo esquentar numa jogada cantada nas véspera. Com ele no comando, o palmeirense sempre pode suspeitar que, no jogo seguinte, haverá a chance de um fato novo a garantir a vitória. Sua saída para buscar o empate em Fortaleza com um a menos é marcante e fora da média. É um inventor de time constante.
Mas, nessa temporada, prefiro destacar seu papel como craque do jogo mental. O time oscilou bastante e só bateu na frente porque a equipe a disparar da vez, o Botafogo, não deu conta de lidar com a ponta da tabela. O Palmeiras diminuiu muito sua força na recuperação defensiva sem Danilo, perdeu um pouco sua capacidade de ganhar jogo na bola parada sem Scarpa, teve Dudu machucado (e a primeira opção de Abel não funcionou), depois Menino também, mais a dificuldade de afirmação de Artur, as fases abaixo de Gomez, Rony. Apostas recentes foram ficando pelo caminho durante o ano, como Navarro, Merentiel, Tabata. Na cabeça, porém, é novamente o melhor do país, de ponta a ponta, sem tanta concorrência.
É verdade que essa habilidade psicológica tem seus ruídos. Abel, autor do trabalho mais consistente da história de um clube com tantos momentos vitoriosos, é também um chato. Beira o insuportável à beira do campo e normalizou as ausências por acúmulo de cartões. É um ótimo crítico diante dos gargalos do futebol no país, mas também muitas vezes usa o contexto local como muleta para suas frustrações: a imprensa brasileira, o torcedor aqui, “vocês…”, “eu sou europeu” etc. Compra brigas para firmar suas convicções e, como resultado desse caldo, protege os jogadores e chama toda a responsabilidade, forjando um time que sabe sempre o que quer. Alivia nas derrotas, tira o peso das vitórias e não deixa nada abalar os atletas. Pelo contrário.
Abel Ferreira segue dobrando a aposta e vencendo
Porque quando o Botafogo encolheu, o Palmeiras cresceu. Quando veio a pancada sofrida frente ao Flamengo, outro 3 a 0 correndo errado no Rio de Janeiro, pouco se deu importância. Quando criou-se qualquer expectativa de tropeço, o alviverde deu seu jeito de ter o resultado suficiente. O Palmeiras é puro Abel Ferreira, é ele quem materializa esse controle emocional ao mediar sua performance nas entrevistas e bancar, repetidamente, seu pequeno plantel. Ele dobra a aposta, o vestiário compra e o campo entrega, não importa quem jogue e quem vá para o banco. Ele foi campeão com gol de Breno Lopes, de novo, dessa vez depois do atacante mostrar o dedo médio para a torcida organizada. Ele mais uma vez ganhou os jogos que não podia deixar de ganhar, oito em dez do Coritiba até o Fluminense, para corrigir a rota e entregar um campeonato marcado, sim, pelo baixo aproveitamento, apenas na casa dos 70 pontos, mas à sua imagem e semelhança, de postura firme, resiliente e confiável.
Os debates nos últimos dias têm valorizado a estrutura do clube com toda a razão. O Palmeiras joga sério, não baixa a demanda de seguir com a corda esticada e parece à espreita para qualquer vacilo que passar ao lado. Então a impressão é óbvia: quando um campeão de turno histórico resolver fazer campanha de rebaixado na segunda metade da tabela, vai sobrar para quem? Interessante pensar também que essa estrutura é a que fez Endrick, aos 11 anos, ser acolhido pelas categorias de base do clube junto de um emprego formal a seu pai. A estrutura está a serviço do talento. O talento ganhou o campeonato, abraçado por um ambiente que lhe oferece as condições e a tranquilidade para brilhar.
Não haveria um Palmeiras sempre destinado a competir sem Abel Ferreira, então qualquer discussão já parte dessa premissa básica do grande líder dessa camisa na atualidade – a cara, a cabeça e a ideia de todo um clube. Não haveria um Palmeiras de título brasileiro se o Botafogo não tivesse caído tanto, o que permitiu virar um latifúndio de 14 pontos em título quase antecipado. Mas não haveria Palmeiras com qualidade e frescor para buscar os resultados e a vitória no Nilton Santos sem o chacoalhão dado por Endrick, o menino que pediu a bola, carregou o time e saiu com a taça. O português arquitetou uma fortaleza. O garoto deu o brilho que sacudiu a rotina.